Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*
Comentário sobre a apresentação do músico japonês na Sala São Paulo
Em 16 de Abril, o pianista japonês Makoto Ozone se apresentou na Sala São Paulo, abrindo um ciclo de atrações da Festa Internacional do Piano, a FIP 2022.[i] Esta é a quarta vez do músico no Brasil, que tem construído uma íntima e profícua relação com a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), junto da qual já tinha tocado peças de George Gershwin – como o “Concerto em Fá”, em 2013, e “Rhapsody in Blue”, em 2014. Em sua última passagem, em 2016, apresentou-se com sua banda “The Trio”, composta pelo baixista James Genus e pelo baterista Clarence Penn. À época, a crítica especializada o celebrou por transitar com facilidade pelos repertórios da dita “música clássica” e do jazz. Entretanto, a apresentação deste ano mostrou que tal caracterização não é suficiente para compreender a música de Ozone. Desta vez, o pianista tocou uma seleção de composições próprias colhidas de diferentes momentos de sua extensa obra, expondo seu virtuosismo e versatilidade.
Makoto Ozone nasceu em 1961 na cidade de Kobe, num contexto de intenso desenvolvimento da linguagem jazzística japonesa. Inundado pelo gênero norte-americano no pós-guerra, o país foi ao longo da década de 1950 tomado pelas big bands e por demais tipos de conjuntos, bastante tributários da linguagem do jazz de Nova Orleans e do Swing. Entretanto, uma tendência mais moderna também era observada naquela cena musical – sob a influência do bebop e do cool jazz, os músicos locais também souberam absorver em sua música novas texturas, arranjos e instrumentações e se aventurar em possibilidades ainda pouco exploradas no ocidente. Destacam-se, por exemplo, o trompetista Terumasa Hino, o saxofonista Hidehiko Matsumoto, o baterista Hideo Shiraki e a pianista Toshiko Akiyoshi, da qual vale citar o álbum de estreia, Toshiko´s Piano (1953). Segundo o próprio Ozone, Akiyoshi exerceu uma forte influência em sua formação musical.[ii]
Embora tenha iniciado seus estudos em seu país de origem, Makoto Ozone completou seus estudos em solo norte-americano, deixando evidente que as fronteiras nacionais pouco importam em sua música. O contato com o jazz estadunidense foi bem precoce: segundo o próprio, a escolha do piano decorreu do contato que travou ainda criança com Oscar Peterson – músico que homenageou em seu álbum Dear Oscar (1998).
Ao longo de décadas de intensa produção discográfica, Makoto Ozone soube trabalhar tanto sobre pequenas como grandes formas, como na profícua parceria com o vibrafonista Gary Burton em Virtuosi (2003) e no álbum Jungle (2009), gravado com a big band No Name Horses. Ao longo de sua carreira, compôs mais de 300 peças, entre elas uma sinfonia e um concerto para piano. Desde 2003, quando foi convidado para interpretar Mozart pela primeira vez, aproximou-se da música de concerto e passou a incorporar novos elementos em seu peculiar estilo.
Talvez por ser em si mesma uma arte não representacional, a música impõe significados e expectativas no lugar que ecoa – reflete nele parte da imagem que não possui. No sábado, antes das primeiras notas irromperem, o silêncio do espaço tinha um quê de ritualístico e sacro. Acostumado a receber a volumosa massa da orquestra, o palco ocupado pelo solitário piano imprimia ao ambiente aquele típico e exacerbado contraste entre a grandeza do espaço e o vazio que tenta preenchê-lo, desequilíbrio que se desfaz quando a música começa. Makoto Ozone abriu sua apresentação com Gotta be Happy, uma música recheada das mais múltiplas e por vezes díspares referências, o que já apontava para o espírito geral de sua performance.
Nos primeiros compassos, temos uma melodia clara e de tom bucólico, com longas escalas crescentes e decrescentes, num toque sem pressa que por vezes nos lembra Debussy – algo também presente em Time Thread, tocada mais à frente. Quando Makoto Ozono parecia estar prestes a se entregar a uma forma específica, a música que abriu a noite se desviou de caminhos fáceis a partir de uma quebra abrupta que introduziu um ritmo sincopado, numa cadência que muito lembra o tema central de Fat Mama (1969), de Herbie Hancock.
Nesse ínterim, enquanto a mão esquerda repetia os acordes que organizavam a música, a mão direita deslizava sobre quase todas as teclas, em escalas que soavam como um blues reinventado e recheado de dissonâncias e tensões. Ao apresentar de forma conscienciosa suas composições, Makoto Ozone deixava entrever a fatura quase que artesanal de sua música, exteriorizando não só seu trabalho artístico, como também, nos termos de Jacques Rancière, algo para além de si próprio, de caráter coletivo – aquela espécie de “re-partilha” do sensível[iii] que desloca a práxis da composição solitária para a sua performance pública e sem intermediários.
Ao longo da apresentação, demais referências musicais foram colocadas em constante tensão, reformulação e até conflito. Struttin´ in Kitano soa ao mesmo tempo como um ragtime de Scott Joplin e como uma elaborada melodia de Duke Ellington. Oberek tem o ritmo do flamenco e a força expressiva das mazurcas de Chopin. Flores do Lírio, uma bossa do começo ao fim, parece ter saído de um Tom Jobim mais “jazzificado”. Já em Where Do We Go From Here? temos uma estrutura menos complexa, mas nem por isso fácil de se executar. Escrita depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001, Makoto Ozone fez questão de tocá-la em memória das vítimas de uma tragédia atual, a guerra na Ucrânia. Diferente da tensa e volumosa versão dessa música presente no álbum First Decade (2006), aqui a voz desacompanhada do piano parece ter feito ainda mais sentido.
A partir de uma análise de sua extensa discografia e de suas performances ao vivo, poderíamos arriscar caracterizar a música de Makoto Ozone como aquela que se funda a partir de um “hibridismo radical” das formas, no qual não só as fronteiras entre os gêneros se desfazem em detrimento da exploração de novas possibilidades sonoras, como também a própria ideia de hibridismo é revogada como categoria anacrônica. Ao longo de suas composições, nota-se como as diversas referências expostas ao longo dos compassos não se sedimentam como uma adição ou sobreposição de camadas, mas coabitam a fim de fazer surgir figuras, harmonias e melodias até então submersas, sendo indiferente à lógica interna da obra qual a origem ou o traço de nascença de cada referência trazida à baile.
Nesta suposta desfaçatez é que encontramos a radicalidade, a imanência do material musical e a busca pelo sentido imanente de cada obra. Num cenário musical cada vez mais regressivo e padronizado, tomado por formas pré-estabelecidas, renunciar à própria pretensão de alcançar uma forma final representa uma potente contratendência. Em vez de hierarquizar as influências que recebeu de diversos gêneros musicais, Makoto Ozone as trata como iguais – a primazia é dada aos problemas construtivos que abdicaram do fetiche da forma pura e das classificações da tradição, ideais fixos tão estranhos ao jazz.
A versão de Makoto Ozone ao “hit” jazzístico Autumm Leaves, quarta faixa do já citado álbum Dear Oscar (1998), permite entrever como o pianista se inspira na tradição e no cânon o trabalhando sem dogmatismo algum – principalmente se compararmos sua versão com a de Peterson, em Oscar Peterson Trio (1960). Menos frenético e sincopado que o norte-americano, porém mais atento à textura de cada passagem, Makoto Ozone se agarra ao tema ora como um eco distante e difuso, ora como uma linha mestra a ser seguida de forma mais disciplinada. Aqui e em tantos outros momentos de sua obra, a improvisação é o caminho pelo qual os problemas musicais se resolvem ou se afundam ainda mais numa busca desesperada em concluírem-se.
Nessa busca, Makoto Ozone geralmente evita atalhos, cerca dissonâncias e as atinge como ponto de não-retorno, como expressão renovada de um diabolos in musica. Mais um exemplo desse modus operandi do pianista pode ser visto em sua interpretação de Rhapsody in Blue (1924), tocada em Hamburgo no final do ano passado com a NDR Elbphilharmonie Orchester. Nessa excelente performance, Ozone contemporizou a peça com elementos típicos da prática improvisatória do jazz pós-bebop, tal como Gershwin tinha feito ao enervar sua música com as tendências do jazz daquele começo de século.
De todas as músicas apresentadas por Makoto Ozone na Sala São Paulo, Need to Walk se destacou. Definida pelo próprio como um “blues muito estranho”, a obra subverte a lógica cíclica desse gênero, inserindo de forma quase que obsessiva elementos imprevistos que, pouco a pouco, se avolumam numa espécie de desenvolvimento no qual o retorno ao tema principal sempre é mais vigoroso e potente que a retomada anterior.
Já em Pandora, outro ponto alto da noite, temos um exemplo do elevado nível de Makoto Ozone como compositor. De título sugestivo, seu percurso desemboca em regiões bastante inesperadas – de um começo lento, se desdobra num noturno que resulta em dissonâncias brutais e de extrema polifonia. Por vezes, é difícil crer que todo aquele som provém de um único instrumento. Depois do ápice, volta ao tema exposto no início e tende vagarosamente à própria dissolução, ao silêncio.
Embora executada num clima quase sacro, o desrespeito às classificações prévias e a suspeita perante a autoridade da música escrita tão características de Makoto Ozone repousam não sobre um pastiche sem critério, mas sobre decisões musicais conscientes e riscos sucessivamente assumidos. Como bom jazzista, Ozone sabe que uma nota “errada” pode ser a oportunidade anteriormente não prevista para se abrir novos caminhos, sem indicação alguma do destino. Porém, para proceder dessa forma sem cair numa mera aleatoriedade de escolhas, é necessário estar intensamente imbuído e familiarizado com as diversas possibilidades e reviravoltas da linguagem musical – numa espécie de preparo tal qual aquele dos repentistas e rappers que perseguem rimas para suas canções.
Dito de outra forma, Makoto Ozone opera como a figura benjaminiana do colecionador de livros, que ao desempacotar sua biblioteca encara cada um de seus volumes lidos como espíritos que dentro do próprio colecionador se domiciliaram, e não o contrário. A partir de tal imagem, poderíamos dizer que Ozone faz de sua relação com a tradição– seja clássica, popular ou jazzística – aquela da posse, entendida como a “mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que mora dentro delas”.[iv]
Em suma, contradizendo a interpretação que inicialmente formulei, é possível dizer que Makoto Ozone dá uma nova expressão àquela tendência de incorporar de modo caleidoscópico as referências e cânones previamente estabelecidos, negando-os para daí produzir algo de novo. Nesse caso, para além de qualquer hibridismo, seria melhor descrever Ozone como um agnóstico das formas – como aquele que na recusa das ideias pré-existentes, formula suas próprias questões e nem sempre oferece respostas.
Se a arte, nos termos de Marcuse, faz inevitavelmente “parte do que existe e só como parte do que existe fala contra o que existe”, é justamente sobre essa mesma contradição que se assenta a música de Makoto Ozone – um agnosticismo radical que se levanta contra a tirania da forma e dá “ao conteúdo familiar e à experiência familiar” aquele “poder de afastamento” através do qual “a forma torna-se conteúdo e vice-versa”.[v] Em vez de agregar o ritmo latino ao jazz e de fundir o “clássico” ao popular, Ozone os interpela numa tensão que não se resolve. Assim, rejeita “as promessas fáceis”, recusa “o aliviante final feliz”[vi], numa operação de mimese e antropofagia.
Em sua música, as convenções são dissolvidas para dar espaço aquilo que por vezes é paradoxalmente excluído do mundo da arte: a criação. Incessantemente renovada pela imediaticidade da execução, a música escrita se torna objeto do sujeito musical, uma matéria sensível à mercê do imponderável, sem imposições axiomáticas ou formais.
*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na USP.
Notas
[i] Apresentação disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=22YwxKRzbws&ab_channel=Osesp-OrquestraSinf%C3%B4nicadoEstadodeS%C3%A3oPaulo
[ii] “He Hears a Rhapsody” – Entrevista de Makoto Ozone, disponível em: https://www.berklee.edu/berklee-today/spring-2018/makoto-ozone
[iii] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: Estética e política. Editora 34, 2009, p.65.
[iv] BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionar. In: BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas, Vol. II. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.241.
[v] MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, p.44.
[vi] Ibid., p.48.