Por que Bolsonaro ainda pode crescer

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Com a nossa pasmaceira hesitante e paralisante, estamos pagando para ver o pior acontecer

Até pouco tempo atrás, as passeatas de esquerda encenavam uma predisposição para o embate físico. A característica se fazia presente na coreografia de todos os comícios anticapitalistas, e não apenas no Brasil. Punhos erguidos socando o espaço sinalizavam a vontade de esmurrar o oponente. As palavras de ordem jorravam carregadas de agressividade quase bélica. Com frequência, lá vinham os black blocs atirando pedras nas vitrines e coquetéis molotov nos policiais. Naqueles tempos idos, embora tão recentes, a voz e o corpo da esquerda se opunham à ordem estabelecida, e sua linguagem eram as jornadas teatrais contra o establishment, a autoridade, as regras de trânsito e as boas maneiras.

Agora é o oposto. A velha gramática dos protestos virou de ponta-cabeça. Ano passado, nos Estados Unidos, quem promoveu arruaças foi a extrema-direita trumpista, que chegou ao cúmulo de promover a invasão do Capitólio. O símbolo mais icônico do atentado foi aquele sujeito enrolado num cobertor que parecia pele de urso e coroado, usando um capacete com dois chifres hediondos. O tipo ganhou o apelido midiático de “viking” e ficou famoso (no Brasil, um imitador do tal “viking” tem animado os convescotes golpistas do bolsonarismo).

A esquerda seguiu por outra via. Nos Estados Unidos, por exemplo, andou mais preocupada em filiar eleitores na Georgia para garantir a vitória do Partido Democrata. Enquanto a extrema direita tomou para si o gestual, a coreografia e a torpeza dos vândalos, a esquerda se reagrupou na defesa da legalidade e do Estado de Direito. Em Paris, foi a mesma coisa. Agora mesmo, tão logo foi anunciada a derrota de Le Pen no segundo turno, seus cabos eleitorais (neonazistas e congêneres) saíram pelos logradouros públicos chutando portas e latas de lixo; os personagens da esquerda, de sua parte, preferiram ritualizar o congraçamento entre as classes. Num mundo em que ninguém tem mais endereço certo e sabido, a pancadaria mudou de lado, espetacularmente.

Essa inversão dá ao presidente da República, Jair Bolsonaro, uma oportunidade eleitoral explosiva. Não obstante seja o incumbente da vez, encarregado de cuidar da máquina pública, ele bombardeia a máquina pública todos os dias, sem tréguas. Seu lema é destruir a institucionalidade. Seu método é empregar o aparelho de Estado para demolir o aparelho de Estado. Com a aproximação das eleições, não rivaliza com os adversários ou com a oposição: sua guerra preferencial é contra as urnas eletrônicas e contra a Justiça Eleitoral. Ele não quer derrotar seus rivais, ele quer derrotar todo o sistema eleitoral.

Bolsonaro está em cruzada permanente. Na falta de um inimigo externo, elegeu o Supremo, a imprensa e os ecologistas, além de artistas, cientistas e intelectuais, como alvos prioritários. Ele não tem apenas uma “narrativa”, palavra mágica que seus apoiadores se comprazem em repetir: sua estratégia de comunicação consiste em convocar seus fanáticos para assumir o papel de protagonistas anônimos nas batalhas campais contra a lei e a ordem. Bolsonaro entrega às suas falanges, além das certezas feitas exclusivamente de mentiras (certezas que lhes acalentam a alma ressentida), a emoção de agir diretamente no combate discursivo, corporal e armado contra os inimigos da Pátria e de Deus. Esse combate não passa de um delírio, mas isso também não importa a mínima.

O que está vindo aí é uma onda, e essa onda pode crescer. Com sua lógica colada na dinâmica das redes sociais, o presidente aposta suas fichas na conflagração e no convulsionamento. O resultado não importa; o que lhe rende pontos é o movimento. Ele não tem nem precisa ter compromisso com a coerência ou com os fatos, pois sua fonte de energia política é a barulheira incendiária. Quanto ao mais, seus seguidores também não ligam para os fatos.

Estamos aprendendo, tarde demais, que não é por desinformação que muita gente o idolatra, mas por ódio a tudo o que seja informação. As multidões obcecadas pelo presidente abominam a verdade factual e, mais ainda, repudiam os que falam em nome da verdade factual. Para as massas ensandecidas e sedentas de tirania, a onda bolsonarista oferece uma paixão violenta e irresistível, que combina paixão e certezas irracionais, mais ou menos como se deu com o fascismo no século XX. O desastre quica na área.

“O trabalhador se sentirá autorizado a descontar no corpo de sua esposa toda a opressão vivida na cidade”, antecipa o cientista político Miguel Lago, um dos pouquíssimos que enxergam, ouvem e sentem o que está para desabar sobre a Nação. O alerta está no ensaio “Como explicar a resiliência de Bolsonaro?”, que faz parte do livro Linguagem da destruição (Companhia das Letras), que tem Heloisa Starling e Newton Bignotto como coautores. “O homofóbico se sentirá autorizado a espancar uma pessoa por sua orientação sexual”, prossegue Miguel Lago, desfiando a longa lista de “guardas da esquina”. Com a nossa pasmaceira hesitante e paralisante, nós estamos pagando para ver o pior acontecer.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Walnice Nogueira Galvão Celso Frederico Everaldo de Oliveira Andrade Rodrigo de Faria Luiz Renato Martins Maria Rita Kehl Henry Burnett José Machado Moita Neto Marcus Ianoni Gilberto Maringoni José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Ronald Rocha Vinício Carrilho Martinez João Carlos Salles Tadeu Valadares Bernardo Ricupero Mariarosaria Fabris Andrew Korybko Lincoln Secco Paulo Martins Atilio A. Boron Leonardo Boff Bento Prado Jr. José Luís Fiori Jorge Branco João Lanari Bo Antônio Sales Rios Neto Airton Paschoa Gilberto Lopes Flávio R. Kothe Dênis de Moraes Manuel Domingos Neto Luciano Nascimento José Costa Júnior Daniel Afonso da Silva João Feres Júnior Priscila Figueiredo Jorge Luiz Souto Maior Antonino Infranca Valerio Arcary José Geraldo Couto Ronaldo Tadeu de Souza José Micaelson Lacerda Morais Leonardo Sacramento Tarso Genro Marilena Chauí Luiz Werneck Vianna Caio Bugiato Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Igor Felippe Santos Manchetômetro Matheus Silveira de Souza Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Michael Löwy Elias Jabbour Ronald León Núñez Carla Teixeira Gerson Almeida Antonio Martins João Carlos Loebens Vladimir Safatle Eleutério F. S. Prado Rubens Pinto Lyra Remy José Fontana Luís Fernando Vitagliano Eliziário Andrade Luis Felipe Miguel Juarez Guimarães Jean Marc Von Der Weid Armando Boito Julian Rodrigues Berenice Bento Jean Pierre Chauvin Paulo Nogueira Batista Jr Denilson Cordeiro Chico Whitaker Érico Andrade João Paulo Ayub Fonseca Salem Nasser Ladislau Dowbor Daniel Costa Paulo Capel Narvai Paulo Fernandes Silveira João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Guimarães Lima Sandra Bitencourt Michel Goulart da Silva Gabriel Cohn Kátia Gerab Baggio Leda Maria Paulani Renato Dagnino Ricardo Musse Eleonora Albano Fábio Konder Comparato Marcos Aurélio da Silva Lucas Fiaschetti Estevez Tales Ab'Sáber Eugênio Trivinho Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Módolo Liszt Vieira Annateresa Fabris Fernando Nogueira da Costa Luiz Marques Michael Roberts Lorenzo Vitral Paulo Sérgio Pinheiro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Roberto Alves Mário Maestri Rafael R. Ioris André Márcio Neves Soares Marcos Silva Bruno Machado Samuel Kilsztajn Chico Alencar Eugênio Bucci Flávio Aguiar Osvaldo Coggiola Otaviano Helene Marjorie C. Marona Milton Pinheiro Heraldo Campos Anselm Jappe Alexandre Aragão de Albuquerque Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alysson Leandro Mascaro Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Freitas Barbosa Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Abramovay Thomas Piketty Alexandre de Lima Castro Tranjan Francisco Pereira de Farias Luiz Bernardo Pericás Ricardo Fabbrini Claudio Katz José Raimundo Trindade Dennis Oliveira Alexandre Juliete Rosa André Singer Luiz Carlos Bresser-Pereira Vanderlei Tenório Ari Marcelo Solon Eduardo Borges Daniel Brazil Slavoj Žižek Andrés del Río Luiz Eduardo Soares Celso Favaretto Afrânio Catani Carlos Tautz Sergio Amadeu da Silveira Leonardo Avritzer João Adolfo Hansen Yuri Martins-Fontes Ricardo Antunes

NOVAS PUBLICAÇÕES