O enigma Vladimir Putin

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Por DANIEL AARÃO REIS*

Considerações a respeito das intenções da Rússia na guerra com a Ucrânia

É conhecida a frase de Churchill sobre a União Soviética: “uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma”. Exprimia a sua perplexidade e a de outros líderes ocidentais a respeito das intenções soviéticas no curso da Segunda Guerra Mundial.

Dúvidas comparáveis têm sido formuladas a propósito de Vladimir Putin, atual presidente da Rússia. Ele saiu do anonimato para o proscênio da política russa em fins dos anos 1990. Como isto pode acontecer?

Desde o fim da União Soviética, em dezembro de 1991, o governo da Federação Russa adotara uma política ultraliberal com dois objetivos: transformar uma ditadura política de décadas numa democracia liberal representativa e converter uma economia estatizada num país regido por empresas privadas no quadro de um mercado livre de controles. Havia a expectativa de que a Rússia alcançaria em pouco tempo o padrão das sociedades da Europa ocidental. Era um propósito delirante. Não podia dar certo, não deu certo.

E o país mergulhou numa espécie de faroeste, aberto a aventureiros de todos os naipes, um caos – econômico, social e político: inflação galopante, desemprego em massa, serviços sociais desmantelados, forças armadas desmoralizadas, quebradeira de empresas estatais, vendidas a preços vis para uma nova oligarquia surgida do nada e que, através de negociatas e golpes, se erigiu numa espécie de nova classe dominante. O Estado deliquescia. E suscitava inquietação em todo o mundo, pois a Rússia ainda era a segunda potência atômica mundial.

No leme, Boris Ieltsin, um líder político que se associara à desagregação da URSS, via sua popularidade esvair-se numa busca cega de rumos. Foi aí, em agosto de 1999, que surgiu a figura de Vladimir Putin, chamado para ocupar o cargo de primeiro ministro, era o quarto em um ano e meio, e ninguém acreditava que pudesse permanecer no exercício de tão altas funções. Poucos meses depois, nova surpresa: Ielstin renunciou à presidência da República e o cargo, por força de disposições constitucionais, caiu nas mãos de Putin até às eleições seguintes.

Quem era Vladimir Putin?

A pergunta foi formulada a um painel de debates sobre a Rússia no Encontro anual de Davos em janeiro de 2000. Ninguém soube responder e a ignorância suscitou hilaridade geral.

Edgard Morin insiste, com razão, em dizer que na história, é o improvável muitas vezes que acontece. Ora, nada poderia ser mais improvável do que a unção e a permanência de Vladimir Putin na liderança da sociedade russa. Mas foi isso o que aconteceu, confirmando a hipótese do pensador francês.

Quem era, afinal, e de onde viera Vladimir Putin?

Filho de um casal humilde, que sobreviveu ao cerco de Leningrado, nasceu em 1952, ainda nos escombros de um país que mal se recobrava das destruições provocadas pela Guerra Mundial. Sua infância e primeira juventude, embora frequentasse escolas, deu-se no vale-tudo das ruas. Um forte candidato à delinquência juvenil. Salvou-o um treinador de lutas que o persuadiu a dar vazão a sua valentia aprendendo boxe. Mais tarde, na universidade, sentiu-se atraído pelos serviços de inteligência, o Comitê de Segurança do Estado, KGB na sigla soviética.

Sinistro e famoso, como os serviços equivalentes no mundo, o KGB, apesar das atrocidades que cometia, suscitava entusiasmo entre muitos jovens russos. Cercava-o uma aura de coragem, aventuras, defesa do país, tudo isso estimulado por séries de rádio e de TV e por romances policiais. Putin ingressou na corporação reverenciada e temida. Por ser fluente em alemão, depois de uma formação específica, foi enviado à República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental, onde cumpriu suas funções sem maior destaque.

De lá acompanhou a desagregação da União Soviética, o colosso que sua organização destinava-se a defender. Como a maioria dos russos na época, não ficou feliz com o que se passava no país. Retornou a sua cidade de origem, onde se aproximou de um político em ascensão, Anatoly Sobchak, o primeiro prefeito eleito de Leningrado desde a revolução de outubro de 1917, ocupando funções ligadas às relações externas da prefeitura. Teria se desligado do FSB/Serviço Federal de Segurança, novo nome do KGB, mas há controvérsias a respeito. Como há controvérsias sobre suas atividades. Para alguns, um funcionário incorruptível. Para outros, hábil em negócios escusos. Pelas conexões de Sobchak com Ieltsin, acabou sendo chamado para a administração presidencial da Rússia. Distinguiu-se pela eficiência e capacidade de trabalho.

Como presidente provisório da Rússia, Vladimir Putin candidatou-se nas eleições previstas para março de 2000. Cultivou na campanha duas imagens não facilmente conciliáveis: a de reformador pragmático, democrata, e de homem de “pulso de ferro”. Beneficiou-se de uma atmosfera de medo suscitado por atentados terroristas que abalaram o país. Os tchetchenos, suspeitos de sempre, foram responsabilizados e Putin apareceu na TV dizendo que iria caçá-los onde se encontrassem e que os despacharia pela latrina dos banheiros. Uma fala vulgar, compensando sua insegurança, mas forte, suficiente para atropelar controvérsias que imputavam aos ex-colegas de Vladimir Putin a real autoria das ações. Com 52% dos votos, o homem transformou-se em presidente eleito da Federação russa.

Reelegeu-se quatro anos depois, em 2004, agora com 71% dos votos. Uma vitória confortável. Devida a circunstâncias favoráveis – aumento exponencial dos preços do petróleo e do gás, principais produtos de exportação da Rússia – e também a políticas que soube formular e aplicar com rara capacidade de decisão. Esmagou a ferro e fogo a insurgência da Tchechênia, detendo o processo de desintegração que ameaçava o país. Enquadrou os oligarcas que não pagavam impostos, mandando para a cadeia vários deles, inclusive o mais importante, Mikhail Khodorkovsky, com interesses em petróleo e bancos. Os processos eram cheios de falhas gritantes, mas quem se interessava pela sorte daqueles oligarcas?

Ao mesmo tempo, e através dos mesmos métodos, estatizou os principais canais de TV e deu cabo das autonomias regionais e locais. O Estado reforçou-se, centralizado, consagrando a “vertical do poder”, uma expressão do próprio Vladimir Putin. Com a renda propiciada pelas exportações, estabeleceu Fundos Soberanos, recuperou os serviços públicos, com ênfase nas forças armadas e nos serviços de segurança. Na política externa aproximou-se dos Estados Unidos e dos principais Estados europeus.

Com Washington aliou-se na guerra ao terrorismo islâmico, apoiando a invasão do Afeganistão, em 2001, e se curvando à invasão do Iraque, em 2003. Com a Europa intensificou laços econômicos tornando o continente dependente dos produtos energéticos russos. Foi possível, assim, lidar sem maiores sobressaltos com a crise econômica internacional de 2008.

O anônimo “pescado” por Ieltsin em 1999, aparecia agora consagrado, entre os russos e no plano internacional, como um líder comprometido com a modernização e a estabilidade do seu país e com propostas construtivas de política externa, baseadas na paz e na cooperação.

A Constituição, porém, não lhe permitia um terceiro mandato consecutivo. Vladimir Putin pulou a barreira, indicando Dmitri Medvedev, fiel auxiliar, para sucedê-lo. Uma vez eleito, graças ao presidente que se despedia, Medvedev o nomeou primeiro-ministro. O convívio dos dois, não isento de fricções, durou quatro anos. Neste período, porém, o mandato presidencial foi estendido para seis anos, permitida sempre a reeleição, o que permitiu a Vladimir Putin retornar em 2012 e reeleger-se em 2018.

Entretanto, a partir de 2010, avolumaram-se as contradições. Na Rússia, as oposições denunciavam a corrupção que grassava nas altas esferas do Estado, implicando o próprio presidente, o aumento das desigualdades sociais e o cerceamento das liberdades civis e políticas. O governo respondia com repressão às manifestações de rua, prisão das lideranças e acobertamento de espancamentos e assassinatos de críticos e oposicionistas, cuja autoria negava com veemência, mas cujos responsáveis não era possível encontrar. Mas não só de intimidação e repressão sobrevivia o governo.

No plano externo, e desde 2007, Putin passou a denunciar a subestimação dos interesses da Rússia pelos EUA e demais potências ocidentais. A progressão da OTAN na Europa central e em países ex-soviéticos, desrespeitando compromissos assumidos no início dos anos 1990, lhe dava motivos objetivos de descontentamento. Agitando-os, acionou o nacionalismo e o patriotismo, recursos sempre brandidos por lideranças políticas em face de dificuldades internas. Nesta pregação, encontrou ressonância em profundas tradições, reforçadas por um sentimento difuso de nostalgia e ressentimento pelo desaparecimento abrupto da União Soviética e por não terem os russos encontrado os caminhos da prosperidade e da segurança a que se consideravam aspirantes de pleno direito.

E assim, o que se poderia considerar como um mero exercício de propaganda foi ganhando outra – e nova – consistência. Neste sentido contribuíram, sem dúvida, os debates empreendidos no clube Valday, designado assim pela proximidade com o aprazível lago Valdayskoe, favorito lugar de descanso de Vladimir Putin, onde ele tem uma datcha. Desde 2004, em encontros anuais, e em diversas cidades, passaram-se a se reunir dezenas de cientistas, jornalistas, lideranças políticas e intelectuais, russos e convidados estrangeiros, para discutir os problemas e os desafios do mundo e da Rússia em particular. Na sessão final, Putin sempre se faria presente, apresentando e discutindo análises e posições suas e de seu governo.

Ao longo dos anos, o homem foi ganhando solidez e nada fazia mais lembrar o líder titubeante ungido por Ieltsin. Articulado, incisivo, dominando de memória os principais dossiês, respondendo a questões complicadas, algumas, cabeludas, como nas entrevistas com O. Stone, em 2017, evidenciava-se uma metamorfose: o pragmático e indeciso Vladimir Putin transformara-se num doutrinário, seguro de suas ideias e propósitos. As aventuras militares, audaciosas e exitosas, na Geórgia (2008), na Criméia (2014) e na Síria (2015) confirmaram-no em suas opções.

Em que consistia sua doutrina? Havia ali a fusão de várias camadas, combinando-se filosofia, história e política.

No plano filosófico, a defesa de valores permanentes. Putin voltou a explicitá-los na última reunião do Clube Valday, em outubro de 2021. Trata-se de um “conservadorismo razoável” ou “moderado” ou, numa outra versão, “um conservadorismo otimista, saudável”. Em que consiste? Putin dixit: “há pessoas no Ocidente que acreditam numa agressiva eliminação de páginas inteiras da própria história”. Praticam uma “discriminação reversa, contra a maioria e no interesse de uma minoria, reivindicando a renúncia a noções tradicionais de mãe, pai, família e mesmo de gênero, eles acreditam que tudo isso são marcos de uma proposta de renovação social”.

Baseando-se em N. Berdyaev, um filósofo cristão russo do começo do século XX, Putin sustenta que o conservadorismo é essencial para evitar o caos e garantir a vida, a família e a procriação. Socorre-se também, como “livro de cabeceira”, de um outro pensador, Ivan Alexandrovith Ilyin, um filósofo ultraconservador religioso, decidido antibolchevique, favorável, em 1921, à organização de uma União Militar, uma última tentativa de restauração da “velha ordem”.

Nesta articulação, Vladimir Putin é apoiado, entre outros, por uma personalidade que vem se destacando na Rússia: Sergei Karaganov. São dele as seguintes palavras, citadas num estudo recente de Claudio Ingerflom: “Não devemos deixar de pretender que lutamos pela democracia? E deixar claro: queremos liberdades pessoais, uma sociedade próspera, segurança e dignidade nacional…a restrição das liberdades políticas é inevitável. Que fazer com os que…rejeitam a história, a pátria, o gênero e as crenças, como os movimentos agressivos LGTB e ultrafeministas…esta epidemia moral…creio que são pós-humanistas…devemos combatê-los…, liderando a maioria da humanidade para que se congregue em torno dos valores conservadores, ou para dizer simplesmente dos valores normais”.

Os valores conservadores enraízam-se na história. Para Vladimir Putin, a longa dominação da civilização ocidental, fundada nas potências europeias e nos EUA, está em fase terminal, como vulcões em extinção. Emergem novos centros de poder, vulcões em erupção e não será possível detê-los. Quanto à Rússia, lastreada em seus mil anos de existência (uma contagem que não encontra respaldo em nenhuma evidência), cabe lutar por sua identidade, reunificando os russos que se encontram espalhados nos territórios que foram da União Soviética, mesmo porque as nações criadas a partir de sua extinção não têm viabilidade histórica, são invenções artificiais.

Numa outra esfera, também decisiva, o governo deve combater e inviabilizar as falsificações da história (para isso foi criado um comitê de controle com participação destacada de representantes das forças armadas e dos órgãos de segurança).

Chega-se, então, à política: no país, consolidar a já referida “vertical do poder”, neutralizando as forças centrífugas e desagregadoras, reforçando o Estado e, em especial, garantindo a imutabilidade do próprio Putin numa presidência cada vez mais autoritária, o que já foi aprovado por novas leis que permitem reeleições indefinidas. No plano externo, “unir as terras”, num processo de “destruição criativa”, como meio de garantir condições à Rússia de exercer um papel importante no concerto dos “vulcões” alternativos.

Nesta perspectiva, a invasão da Ucrânia, desde 24 de fevereiro passado, embora visando – e destruindo – o país, tem um outro objetivo, muito mais importante, estratégico: derrotar ou enfraquecer os EUA e as potências europeias coligadas. Trata-se de uma guerra de sobrevivência, “existencial. E é por isso que “a Rússia não pode perder esta guerra”, conforme sublinhou Karaganov em entrevista recente. Se for o caso, afirmou, deve escalar, inclusive considerando o uso de armas atômicas. A frase foi ecoada no início desta semana pelo ministro de relações exteriores russo, Sergei Lavrov: “o recurso às armas atômicas é uma hipótese real”. No campo dos inimigos da Rússia prevalece também a perspectiva da escalada, e já há quem fale numa vitória da Ucrânia, cujas forças começaram a bombardear o território russo.

Ao não integrar a Rússia numa esfera de cooperação, segurança e prosperidade comum, os estados europeus e os EUA perderam uma chance histórica. No transcurso do tempo, como vimos, o pragmático Vladimir Putin transformou-se num doutrinário do apocalipse. Se a opinião pública mundial não impuser uma espécie de “paz dos bravos”, ou se os russos não tiverem força para deter e derrubar o seu presidente, o mundo estará próximo de uma autodestruição inimaginável e irreparável.

Com a mão do botão da catástrofe nuclear, Vladimir Putin anuncia estar decidido a tudo para salvar a Rússia. E suas mãos não parecem tremer.

*Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras).

 

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