Esperando Godot no fim do mundo

Roger Hilton, Sem título, 1953
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Por MARCOS SILVA*

Comentário sobre a encenação da peça de Samuel Beckett pelo Teatro Oficina

Numa entrevista para televisão, a atriz Giulia Gam destacou a profundidade da leitura de texto que experimentou quando dirigida por José Celso Martinez Corrêa, Teatro Oficina, na peça Cacilda.

Assistir à montagem de Esperando Godot no fim do mundo, por esse grupo teatral, dirigida pelo mesmo José Celso, deixa claro que tal profundidade não significa transpor literalmente para oralidade e movimentação corporal, mais cenários, maquilagens, iluminações e trajes, o texto dramático. José Celso Martinez Corrêa interpreta o escrito e o transforma em ações cênicas, como numa transcriação, até inclui mudanças na caracterização de personagens.

Um exemplo disso é a introdução de Exu/Zé Pilintra como mensageiro(s)/comunicador(es) e ridente(s), atributos clássicos daquelas entidades afro-brasileiras. Ela se desdobra nas menções, em fala, aos nomes de Grande Otelo e Paulo Gustavo, atores brasileiros muito expressivos de cinema e televisão cômicos; e na identificação do personagem Wladimir como Didi, que consta do original de Becket e, entre nós, remete a um dos Trapalhões (grupo cômico televisivo), interpretado por Renato Aragão.

Os clowns do original de Samuel Beckett são o Brasil e sua interpretação cômica, o que inclui a transformação de Pozzo em Bozo, que evoca palhaço televisivo e apelido depreciativo de Jair Bolsonaro, presidente do país no momento dessa encenação, 2022 – a espera é aqui, agora, por nós, como é reforçado pelas projeções em telas de cenas de guerra, destruição ambiental e governantes despóticos atuais, terra devastada, incluídas imagens do público que assiste à montagem.

Godot talvez seja Deus, Godeus, Não-Deus (God/don’t), junção de God (Deus, em inglês) e Gott (Deus, em alemão). Ele não vem: há tragédia num mundo sem deuses? Se não há deuses, o que restou de esperança compete a homens e mulheres sem esperança, – humanos, demasiadamente humanos.

Não há mulheres na peça, apesar de encenações anteriores contarem com elencos femininos (uma delas dirigida por Antunes Filho) e de Cacilda Becker ter morrido interpretando Estragon (direção de Flavio Rangel), nessa peça: o futuro destituído de reprodução humana chegou ao fim do mundo? Sem deuses, a catarse teatral se tornou impossível.

A aparência física de Wladimir/Didi e Estragon/Gogo sugere figuras de mendigos ou moradores de rua e lembra Carlitos, O Gordo e O Magro. Pozzo/Bozo evoca empresários ou governantes. E Lucky/Felizardo é a imagem do trabalhador mais que informal, entregador de aplicativos, emudecido, marionete preso a corda, sob rígido controle, sem direitos, mas as cores de suas roupas ecoam os trajes de Pozzo/Bozo – alegria dos funcionários do McDonalds.

Falar em indefinição, nessa montagem, é um equívoco: tal mundo é o nosso; dos pobres que tomam conta de automóveis nos arredores do teatro ou dormem com seus cachorros nas calçadas das redondezas; dos espectadores que têm algum dinheiro para comprar um ingresso e assistem à peça; dos que controlam os outros através da visão direta da cena e, também, das imagens projetadas em várias telas; dos atores que corporificam nosso mundo; dos espectadores que mais ou menos nos vemos naquilo tudo e somos filmados (viramos atores e cenários) para projeção nas mesmas telas.

A montagem de José Celso Martinez Corrêa convida esses espectadores a pensarem sobre o que é exposto, o incontornável contrário do passatempo, da busca de um tempo fora de si – estamos ali, sob controle visual e controlando os outros.

Personagens, atores e público percorremos ou somos percorridos por essa espera, sob o signo do desalento: Godot nunca chega… Chegará?

Esperando Godot no fim do mundo é uma peça de 1949/1952, encenada em francês no ano seguinte a sua finalização, tempo do pós-Segunda Guerra Mundial, perda do tesouro da Resistência francesa e de outras nacionalidades ao Nazismo (conforme o poeta René Char, que não se referia a essa obra, citado por Hannah Arendt no livro Entre o passado e o futuro), nascimento de uma ONU dividida desde o começo (1945), lembrança de Hiroshima e Nagasaki, medo diante da ameaça nuclear, Josef Stálin ainda vivo, Macarthismo e apartheid nos EEUU, perda da memória antes do filme O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, com argumento do romancista Alain Robbe-Grillet, perda da esperança na alternância, terra arrasada, mesmo sem guerra explícita – mas sempre existem guerras em andamento (Coreia, Argélia, depois Vietnã etc.).

Setenta anos passados, há outras perdas, talvez até piores (fim do Welfare State, triunfo neoliberal, auto aniquilamento da URSS e do bloco socialista europeu, a China potencializando o capitalismo – aquisição de letras do Tesouro norte-americano, participação de empresas privadas em sua economia, condições de trabalho apavorantes – e que se designa como se ainda fosse comunista) e um reforço mundial das ditaduras, desastres ecológicos provocados, guerra Rússia/Ucrânia, novas ameaças nucleares e defesas explícitas, em muitos países, de neonazismos mais que truculentos – ex-Iugoslávia, Hungria, Filipinas, Brasil.

A perda dessas memórias significa manter a vigência de desastres – uma das falas lembra que não se é historiador, a história se perdeu… Mas aquela fala pode ser apenas outra forma de reafirmar a história: comicamente, Didi tem lembranças, mesmo os antagonista Gogo talvez as possua e reprima.

Estamos no lugar da falta de lugar para os miseráveis, da miséria para os que trabalham, do poder sem limites dos patrões e governantes. Estamos dentro disso tudo, qual o nosso lugar? Tempo sem sol, na Terra do Sol. tempo sem direitos. Restam dores e sofrimentos para a grande maioria. Pozzo/Bozo domina, fica cego, continua a dominar, agoniza, talvez tenha morrido junto com Lucky/Felizardo, talvez sejam substituídos por similares. O adeus à revolução não é uma festa, antes encena o nada.

Quem chega, efetivamente, é Exu/Zé Pilintra, com um riso breve e a consciência de morte (informa que Godot morreu) – mas também consciência de vida (os personagens ali presentes estão vivos, a árvore, seca e candidata a suporte para corda de enforcamento, voltou a ter folhas); alguma mudança pode ocorrer, livre daquela espera. Mais que espetáculo do desalento, a peça denuncia esse desalento.

Exu/Zé Pilintra e Godot, projeções dos seres humanos, somos todos nós, personagens, atores e espectadores, dentro e fora do teatro.

A esperança está em nossas mãos – ou não existirá! Se não fizermos as mudanças, ninguém as fará por nós.

*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH-USP.

 

Referência


Esperando Godot no fim do mundo

Texto: Samuel Beckett. Tradução: Catherine Hirsch e Verônica Tamaoki.

Direção: José Celso Martinez Correa.

Produção: Teatro Oficina Uzyna Uzona. Personagens/Elenco: Estragão/Gogo (Marcelo Drummond), Vladimir/Didi (Alexandre Borges), Pozzo/Bozo (Ricardo Bittencourt), LuckyFelizardo (Roderick Himeros) e Mensageiro (Tony Reis).

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