Crítica do espetáculo – o pensamento radical de Guy Debord

Ben Connors, 2016
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Por GABRIEL FERREIRA ZACARIAS*

Introdução do autor ao livro recém-publicado

Vivemos em uma sociedade do espetáculo. Improvável imaginar alguém que discorde de tal afirmação. Basta ver quantas vezes essa frase é repetida por comentaristas midiáticos ou por autores pouco interessados em criticar essa mesma sociedade. Alguns trocam um termo para fingir uma maldisfarcada originalidade — um escritor famoso de nosso continente decidiu assim falar em “civilização do espetáculo” —, enquanto outros dão o mal por resolvido e os espectadores por já emancipados. Caberia perguntar, então, se ainda ganhamos algo ao falar em sociedade do espetáculo.

Ou, para dizer de modo mais acadêmico: a categoria de espetáculo reserva ainda algum valor heurístico? Pode, ademais, auxiliar na elaboração de uma apreensão crítica da realidade social? Evidentemente, se a minha resposta a essa pergunta não fosse afirmativa, não teria escrito este livro. Acredito, porém, que retomar o valor heurístico — isto é, explicativo — e o potencial crítico — isto é, negativo —, que habitaram a noção de sociedade do espetáculo em sua formulação inicial, exige um trabalho paciente e complexo.

Não basta lembrar que a expressão foi cunhada por um livre-pensador francês às vésperas do levante de Maio de 1968, e que inspirou a geração que tomou as ruas e bulevares da capital francesa naquela primavera. Atestar a radicalidade política de Guy Debord não garante a radicalidade teórica de seu pensamento. Pelo contrário, pode mesmo significar uma falsa pista, pois daquilo que se concebe comumente como o espírito sessenta-oitista, pouco ou nada encontramos em A sociedade do espetáculo, livro de 1967, mas cujas reflexões estavam sendo gestadas por seu autor há pelo menos uma década.

Voltemos ao início. Quem foi Guy Debord? Resistente a epítetos, Debord foi um personagem errático que atravessou diferentes campos do saber e diferentes práticas. Pertenceu ao mundo das novas vanguardas artísticas que procuraram recuperar o legado do dadá e do surrealismo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Depois, afastou-se da arte e lançou-se em busca da revolução. Integrou então o mundo da ultra-gauche, da esquerda radical, afeita ao pensamento marxista, mas avessa ao comunismo oficial. Nesse meio foi igualmente considerado uma figura estranha, não apenas porque carregava parte das aspirações das vanguardas artísticas, mas também porque formulava uma síntese pouco habitual entre pressupostos marxistas e teses libertárias.

Como se não bastasse, dedicou ainda parte de sua vida ao cinema, produzindo obras referenciais para o cinema de montagem, tão notáveis quanto aquelas de Chris Marker ou Jean-Luc Godard. Recebeu ainda certo reconhecimento por seus méritos literários, sobretudo pelo manejo do estilo clássico em seus textos tardios. Mas prioritariamente foi alvo de uma “má reputação”, como discutiria em seu último escrito, que acompanhou sua recusa obstinada aos reconhecimentos oficiais (Debord, 2006 [1993]).

Em um primeiro momento, a apresentação do personagem talvez sirva mais para confundir do que esclarecer. Mas é também um antegosto do estado de confusão que por vezes nos invade quando lemos sua obra, pois essa multiplicidade de talentos e referências a atravessa. Mais concretamente, conhecer o personagem serve para situar em que momento específico interveio a formulação teórica em seu percurso. Debord havia participado da fundação de um grupo de vanguarda, a Internacional Situacionista (IS), em 1957. O grupo tinha como problema fundamental encontrar um valor de uso da arte, e fazer dela um meio para a transformação da vida cotidiana.

Uma vanguarda voltada menos para a produção de obras do que para a busca de práticas transformadoras de nossas relações com os outros e com o mundo. Suas práticas eram “à deriva”, experiência de redescoberta afetiva do tecido urbano, e a “situação construída” – de onde vinha o nome do grupo , proposta de uso concomitante de meios artísticos para a criação de uma experiência qualitativamente rica e deliberadamente construída. Mas a vontade de produzir práticas e experiências transformadoras esbarrava em um ordenamento social que lhes era antagônico. Para que as aspirações situacionistas se tornassem reais, perceberam Debord e seus companheiros, era necessário primeiro mudar a sociedade. A vida situacionista era impossível sob as limitações empobrecedoras do capitalismo; ficaria reservada para depois da revolução. Todavia, os situacionistas perceberam também que, para mudar a sociedade, era preciso antes compreendê-la.

A Internacional Situacionista voltou-se assim para o estudo da sociedade, no anseio de formular uma teoria crítica capaz de fomentar uma nova forma de ação transformadora. Deu particular atenção aos fenômenos prementes de sua época, como a rebeldia da juventude, a revolta das populações negras e as lutas anticoloniais, ao mesmo tempo que buscou resgatar elementos-chave do pensamento de Marx e de alguns de seus leitores. A virada fundamental ocorreu na entrada da década de 1960, quando os artistas se afastaram ou foram excluídos da Internacional Situacionista, e o grupo firmou oficialmente nova rota. Nesse momento, Debord se aproximou de Henri Lefebvre e passou a frequentar o grupo Socialismo ou Barbárie. Também por essa época encontrou em György Lukács uma chave de leitura da teoria marxiana que marcaria profundamente suas próprias concepções. No ano de 1963, Debord iniciou o trabalho de preparação de A sociedade do espetáculo, que viria finalmente à luz no final do ano de 1967.

O primeiro objetivo aqui será analisar os pontos centrais dessa teoria, de difícil compreensão. Ao contrário do que pode sugerir seu título, a teoria de Debord não tem por objeto um estudo da mídia ou da indústria cultural. Devidamente intitulada A sociedade do espetáculo, o intuito da obra é compreender o espetáculo enquanto fenômeno social total, isto e, enquanto articulado à totalidade social. Isso implica um constante movimento entre o geral e o particular, segundo uma forma de pensamento eminentemente dialético, que demanda um raciocínio movente também da parte do leitor. Grande parte das más interpretações e dos usos inconsistentes dessa teoria advém da incompreensão desse movimento, resultando na insistência em aspectos estanques artificialmente isolados da perspectiva ampla proposta pelo autor.

A publicação de A sociedade do espetáculo marcou, de certo modo, a conclusão de um processo na experiência intelectual de Guy Debord. Estudando a documentação contida em seus arquivos pessoais, hoje conservados na Biblioteca Nacional da Franca, vemos como o período entre 1960 e 1967 foi de intenso estudo por parte do autor, que buscava, na leitura do pensamento crítico existente, instrumentos para a construção de sua própria teoria. Esse processo se arrefeceu na sequência. Na década seguinte, Debord retornou à prática cinematográfica. Se já havia realizado dois curtas-metragens em 1959 e 1961, passaria a realizar, então, dois longas-metragens, em 1973 e 1978, sendo o primeiro a adaptação cinematográfica de A sociedade do espetáculo.

Foi somente em 1988 que o autor retomou sua teoria. No livro Comentários sobre a sociedade do espetáculo, ele analisou as mudanças fundamentais ocorridas nos vinte anos que se sucederam ao levante de Maio de 1968. Partiu, portanto, da percepção da derrota, da incapacidade do movimento de Maio de revolucionar a sociedade, e procurou entender as razões e consequências da prolongada dominação espetacular. Comentários traz, assim, elementos centrais para uma atualização da teoria do espetáculo, e será objeto de estudo atento neste livro.

O leitor poderia questionar a ausência de referências mais aprofundadas em relação ao período vanguardista de Debord, sobretudo à sua produção cinematográfica. Afinal, ele não realizou uma versão cinematográfica de A sociedade do espetáculo? Isso deveria significar que, em sua concepção, não havia contradição ou mesmo separação entre essas duas atividades, a teórica e a artística. De fato, não havia. Como pude observar estudando a documentação de seus arquivos, o pensamento de Debord frequentemente entrelaçava os dois âmbitos. Era possível que pensasse em uma sequência cinematográfica ao ler Marcuse, ou que citasse Hegel ao montar um filme. E, apesar disso, raros são os comentadores de sua obra que se aventuram a falar tanto de um aspecto quanto de outro de sua produção, ou, ao menos, com igual profundidade. Em meus estudos sobre o autor, sempre procurei abarcar a totalidade de sua obra, oferecendo interesse de igual peso a cada um de seus âmbitos, precisamente por acreditar que, pensadas de forma complementar, essas atividades ficariam mais compreensíveis.

Embora não tenha mudado de opinião, decidi separar em dois volumes a publicação de minhas pesquisas sobre Guy Debord, aceitando, não sem certa contrariedade, a separação habitual entre as produções teórica e estética. Achei que isso se fazia necessário por algumas razões que cumpre explicitar. Primeiramente, cada esfera disciplinar possui suas próprias referências que não são evidentes para o leitor, e que exigem por vezes paralelos e explicações. Para entender a teoria de Debord, é necessário retornar a Hegel e a Marx, assim como para entender a arte de Debord é necessário retornar ao dadá e ao surrealismo.

O contexto histórico de Debord é fundamental para a compreensão de sua formação intelectual, e esse contexto também se desdobra em diálogos distintos. Novamente, para entender sua teoria convém evocar Lefebvre ou Marcuse, assim como para compreender sua arte é preciso falar das neovanguardas ou do cinema experimental de seu tempo. Essa movimentação histórica para trás e para os lados não é simples e pode se tornar demasiado longa se não for feita com cuidado.

Sua dificuldade provém também do fato de ter sido Debord um dos raros personagens a cruzar constantemente as fronteiras que separavam esses domínios. Pressenti, portanto, o risco de um livro demasiadamente extenso e descentrado, que arriscaria afastar o leitor ao invés de aproximá-lo. Por isso, tomei a decisão de publicar dois volumes em separado. Um leitor particularmente interessado na teoria do espetáculo e, muito provavelmente, alguém interessado em discussões teóricas e não tem a obrigação de tornar-se um especialista em história do cinema.

O mesmo vale, inversamente, para aqueles que buscam em Debord as ideias inspiradoras da deriva e da situação construída, e que, nem por isso, pretendem se tornar versados em marxismos. Em suma, o leitor de Debord não é obrigado a ser Guy Debord. Reconhecendo isso, consenti à necessidade da separação disciplinar. Mantenho, todavia, o aviso de que, embora separados, esses volumes são complementares. E para aqueles que ousarem se aventurar além das fronteiras que dividem de maneira habitual os saberes, a leitura de ambos os volumes pode proporcionar uma compreensão qualitativamente diferente da radicalidade de Guy Debord.

O presente volume é dividido em duas partes distintas. A primeira é dedicada ao estudo da teoria crítica de Guy Debord, comumente chamada de teoria do espetáculo. No primeiro capítulo, “Crítica da separação”, tratarei sobretudo do livro A sociedade do espetáculo, de 1967, no qual essa teoria foi originalmente formulada. Procurarei abordar seus principais conceitos, tornando-os compreensíveis por meio de um diálogo com a tradição na qual se insere, a saber: a da crítica da alienação fundada em Hegel e desdobrada por Marx. Se Marx havia operado uma inversão fundamental da dialética hegeliana, removendo-a da especulação metafísica e transportando-a para a análise materialista, Debord, por sua vez, realizou uma atualização significativa da teoria de Marx, identificando a subsunção da vida cotidiana à lógica do fetichismo da mercadoria.

Por essa razão, retornou aos escritos de György Lukacs, que, décadas antes, havia alargado o conceito de fetichismo, tornando-o base da teoria da reificação. Mas o mundo a partir do qual e sobre o qual fala Debord era já bastante distinto daquele observado pelos filósofos que o precederam. Tratava-se agora de um mundo no qual as imagens ganhavam uma profusão e uma proeminência jamais vistas na mediação dos processos sociais. Debord estabeleceu assim a ponte entre a transformação no mundo dos objetos, ocorrida com o advento da industrialização – a imensa acumulação de coisas notada por Marx –, e as transformações de sua época, com o advento das técnicas de reprodução de imagens e a constituição de uma indústria cultural – a imensa acumulação de espetáculos, como dirá Debord. Se os objetos haviam se transmutado em mercadorias, agora as imagens haviam se transmutado em espetáculos – tanto o mundo objetivo quanto sua representação sendo subsumidos a lógica fetichista. A alienação atingia seu patamar mais alto, a separação do sujeito e seu mundo sendo consumada. Não apenas perda do produto do trabalho, mas perda dos meios mais elementares de experiência e de representação do vivido. Perda, em última instância, de seu próprio tempo.

A separação da qual falava Debord à época em que escreveu sua obra teórica era compreendida por ele sobretudo como um afastamento entre o vivido e a representação. Aquilo que era experimentado pelos indivíduos como atividade concreta – notadamente a experiência do trabalho, que ocupava a maior parte do tempo de vida ativa e que, de acordo com a tradição marxista, era uma atividade intrinsecamente alienada – era profundamente distinto de tudo que lhes era oferecido enquanto consumo de imagens e de entretenimento. Ao mesmo tempo, os meios para representar as experiências individuais eram inexistentes, dada a concentração dos meios de produção e difusão de imagens nas mãos de grandes conglomerados da indústria cultural.

Vista com cinquenta anos de distância, essa discrepância não pode mais ser identificada exatamente da mesma maneira. Afinal, os dispositivos que permitem representar de forma imagética as experiências particulares estão hoje amplamente acessíveis, ocupando parte importante do tempo ativo da vida dos indivíduos, aquela parte, aliás, percebida por eles como mais premente e, ao menos em aparência, mais prazerosa. É comum ver comentadores das mídias, que fazem uso superficial da obra de Debord, servindo-se das teses de 1967 para tratar de fenômenos contemporâneos como se nada tivesse mudado na organização social desde então, o que é decerto um equívoco.

No entanto, as transformações empíricas ocorridas nos últimos cinquenta anos não implicam a caducidade da teoria do espetáculo, justamente porque ela se volta para as raízes profundas dos fenômenos perceptíveis, e não para suas manifestações superficiais. Qual é, afinal, a justa medida entre essas duas posições antagônicas? É necessário buscar identificar pacientemente quais foram as mudanças relevantes e quais são as permanências de fundo. O próprio autor auxilia nessa tarefa, pois ele mesmo realizou esse tipo de reflexão quando voltou a sua teoria vinte anos mais tarde.

O segundo capítulo da primeira parte será, portanto, dedicado ao estudo de Comentários sobre a sociedade do espetáculo, publicado em 1988. Muito menos lembrado do que a obra de 1967, por vezes desdenhado como insuficientemente dialético ou até mesmo paranoico, o livro é, acredito, fundamental para compreender os desdobramentos da sociedade do espetáculo. Ajuda a entender como o próprio Debord compreendeu a transformação de sua época, como desdobrou sua teoria em consequência das mudanças que observou e, mais do que isso, constitui uma mediação necessária para aproximarmos a teoria de Debord da contemporaneidade.

Como procurarei demonstrar, muitos dos fenômenos contemporâneos hoje em debate adquirem outra forma de compreensão se aceitarmos as pistas fornecidas por Debord em Comentários. Se é impossível negar que vivemos ainda – e cada vez mais – em uma sociedade do espetáculo, é necessário compreender, porém, que o problema da separação da representação não se coloca mais do exato mesmo modo que há cinquenta anos. O conceito de espetacular integrado, formulado por Debord ao findar dos anos 1980, pode ser de grande serventia para entendermos com mais clareza em que situação nos encontramos hoje.

A segunda parte do livro seguira um caminho um pouco distinto da primeira: menos de uma reflexão teórica, e mais de um estudo propriamente histórico do pensamento de Debord. Procurarei elucidar a relação que estabeleceu com o contexto intelectual de sua época, em especial com o marxismo então vigente. Embora algumas dessas relações já sejam conhecidas, e mesmo parcialmente comentadas, elas adquirem aqui outra concretude, pois baseiam-se no estudo dos arquivos do autor.

Por anos, examinei os arquivos de Guy Debord, que se encontram desde 2011 em posse da Biblioteca Nacional da França. Ali, são conservadas suas fichas de leitura, que permitem reconstruir, ao menos em parte, sua formação intelectual e os diálogos que estabeleceu com o pensamento de outros autores, fato tanto mais relevante se levarmos em consideração que a postura situacionista, amplamente combativa, consistia em apenas mencionar autores quando eles pareciam merecedores de impropérios. Isso tornou sempre difícil identificar de maneira clara com quais conjuntos de ideias os situacionistas dialogavam. Os arquivos de Debord fornecem amplo material para analisar contextualmente seu pensamento, suas predileções intelectuais, suas recusas. Embora tenha trabalhado extensamente com essa documentação, preferi utilizá-la com parcimônia.

Um estudo excessivamente filológico correria o risco de nos afastar do pensamento do autor, tornando-o prisioneiro de outro tempo. O pensamento de Debord dialogou com autores de sua época que hoje parecem datados. Entretanto, se continuamos a falar em Debord, e não de outros pensadores que lhe foram contemporâneos, é porque algo em suas ideias ainda parece profundamente atual. Aproximá-lo em demasia das ideias de seu tempo poderia afastar-nos daquilo que, em seu pensamento, ainda nos convoca, que apela à nossa própria historicidade. Ao mesmo tempo, a historicidade do autor não deve ser ignorada. E reconhecer os laços contextuais de suas reflexões pode ser a melhor maneira de diferenciar os aspectos de sua teoria que pertencem a um tempo passado daqueles que ainda são atuais.

Foi por essas razões que optei por essa estrutura bipartida. Na primeira parte, procuro compreender a teoria do autor, com maior atenção conceitual e com momentos de reflexão sobre sua atualidade, sem me preocupar tanto com questões filológicas ou contextuais. Na segunda parte, passo ao estudo do contexto e me apoio na documentação inédita dos arquivos do autor para trazer uma nova compreensão da relação entre Debord e o marxismo de sua época.

Algumas reflexões mais livres e em diálogo com autores recentes serão apresentadas ao final, à guisa de conclusão, no intuito de explicitar quais aspectos do pensamento de Debord ainda atingem o presente com plena radicalidade.

*Gabriel Zacarias é professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

Referência


Gabriel Ferreira Zacarias. Crítica do espetáculo: o pensamento radical de Guy Debord. São Paulo: Editora Elefante, 2022, 200 págs.

 

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