Por ROBERTO JORGE REGENSTEINER*
Reverberações a propósito da exposição de seus trabalhos em São Paulo
“Arthur Bispo do Rosário…carregava todos os estigmas de marginalização social ainda vigentes em nossa sociedade – negro, pobre, louco, asilado em um manicômio – consegue, na sua genialidade, subverter a lógica excludente propondo, a partir da sua obra, a ressignificação do universo, para ser reunido e apresentado no dia do juízo final. Sua missão chegou ao fim aos 80 anos, no dia 5 julho de 1989, dia da sua morte.”[i]
Está em exposição no Itaú Cultural, ocupando 3 andares até 2 de outubro algo menos do que metade do acervo de mais de 800 obras que, ele, Artur, não considerava “ de arte”.
A produção exposta permite conhecer algo das muitas facetas de um negro nascido por volta de 1910, em Japaratuba, Sergipe, região povoada por ex-escravizados, aquilombados, com forte presença das festas cristãs, em que o bordado era amplamente praticado.
Por volta dos 14 anos entrou para a Marinha Brasileira onde ficou até 1931[ii] viajando pela costa brasileira. Chegou a Primeiro-Sinaleiro. Na Marinha[iii] ampliou habilidades de bordador e costureiro, adquiriu conhecimentos cartográficos e aprendeu o uso de instrumentos como compassos e outros artefatos náuticos.
Parte considerável da obra exposta traz elementos rememorativos desta fase de sua vida através da representação de variados tipos de navios e barcos, mapas, listas de países com respectivas bandeiras, capitais e outras informações, bordadas em paletós e estandartes, bem como listas de nomes de marinheiros e funções.
O impulso de catalogação e sistematização do mundo impregna sua obra. Seus magníficos mantos foram concebidos para serem vestidos. São obras primas em cujos bordados estão registrados infinidade de elementos cuja simbologia, desenhos e textos permitiriam ao seu autor, no dia do juízo final, representar o mundo ao criador. Esta foi a missão que lhe foi atribuída pelas vozes num sonho na antevéspera do Natal de 1938 e que ele registrou no primeiro dos mantos (denominado pelos curadores “Eu Vim” e que pode ser visto na exposição e na figura a seguir).
Este sonho levou-o ao Mosteiro de São Bento, em Botafogo (RJ) onde o revelou aos frades informando que tinha vindo julgar os vivos e os mortos.[iv] Os frades chamaram a polícia que o internou como indigente, no Hospital de Alienados, na Praia Vermelha (RJ), diagnosticado como esquizofrênico.
Desde então alternaria estadias fora e dentro de diversas instituições manicomiais nas quais realizaria a maior parte da obra que lhe sobreviveria. Depois de longo período fora das instituições, em 1964, voltou para a Colônia Juliano Moreira com um caminhão de objetos e lá permaneceu até o fim de seus dias em 1989.
Certamente foi favorecido pela onda de adoção da laborterapia e arteterapia em instituições manicomiais liderada por Nise da Silveira que foi homenageada pela atribuição de seu nome a uma ala da Colônia Juliano Moreira. Mesmo assim Nise e Artur jamais estiveram em contato direto, mesmo sendo contemporâneos em instituições manicomiais do RJ.
Estas novas práticas permitiram a Artur conquistar espaços, instrumentos e autonomia com os quais enriqueceu uma obra na qual buscou registrar o mundo a fim de cumprir sua missão. Artur quase não nominou os objetos que criou e há pouca informação sobre as datações deles.
A obra evidencia características fortemente presentes na sociedade contemporânea. Entre elas um sentido de acúmulo e repetição quando, por exemplo, cria objetos e painéis que organizam peças semelhantes como pentes, canecas, talheres, sapatos, entre muitos outros. Caso especial destas repetições são as inumeráveis etiquetas em que borda número e descrição, (p.ex.: 691. Pratos de alumínio) em que representa o mundo com a meticulosidade de analistas de sistemas, atividade profissional que se espalharia em consonância com a evolução dos computadores.
Há listas de nomes seguidas dos respectivos cargos de pessoas das tripulações de que fez parte. Aos que desejavam conhecer sua obra perguntava-lhes qual a cor que enxergavam na sua aura, registrando seus nomes seguidos da declaração da cor. Há uma extraordinária coleção de faixas e cetros das misses dos estados brasileiros e de países que concorriam em concursos de beleza. Nas faixas borda informações sobre estes lugares. Os cetros são revestidos por fios azuis obtidos pelo desmanche dos uniformes.
Os objetos revestidos por fios azuis (abreviados pelos curadores como ORFAs) constituirão uma das características marcantes em sua vasta produção de peças representando tudo o que há no mundo: barcos, compassos, mesinhas, cozinhas, carrinhos, carrosséis, mais 800 objetos construídos com arte, elegância, habilidade, reciclando materiais que fizeram de Bispo um reciclador de primeira grandeza muito antes que a sociedade reconhecesse esta atividade como essencial.
A obsessão por identificar, classificar, categorizar, produzir em série que caracteriza a cultura dominante na sociedade está humanamente presente na sua obra, entretanto completamente despida do caráter mercantil. “Não é para vender” como afirma no filme “O prisioneiro da Passagem”. O produto de sua atividade é zero valor de troca, totalmente valor de uso. É notável a ausência de intenção mercantil no interior do sujeito que, no dia do juízo final, desejava prestar contas, da melhor forma que pudesse, do mundo que recebera. Talvez, não por acaso, esta obra foi concretizada num ambiente confinado por muros erguidos para segregar, no seu interior, indivíduos que não internalizaram e nem se ajustaram a esta cultura mercantil obsessivamente dominante.
O material disponível sobre Artur Bispo do Rosario nos fala de um indivíduo respeitado pelos demais institucionalizados, “xerife” de seu pavilhão, auxiliar da equipe médica na lida com os internados e depositário de confiança a ponto de dispor de espaços onde armazenava materiais e realizava trabalhos, pessoa afetuosa que em seus últimos anos dedicou vários de seus objetos à estagiária Rosangela Maria[v] num momento em que a instituição se abria para práticas menos violentas.
Arthur Bispo do Rosário vestido com o “Manto de Apresentação” que usaria no dia do Juízo Final [vi]
“Com a morte de Arthur Bispo do Rosário em 1989, a Colônia Juliano Moreira se vê diante do desafio de decidir o destino das obras produzidas por ele durante os 49 anos que esteve internado intermitentemente. O conjunto da sua criação foi abrigado pelo então Museu Nise da Silveira. Frente à nova missão, em 2000, 11 anos após o falecimento de Bispo, a instituição altera o seu nome para Museu Bispo do Rosario, agora, homenageando o principal artista de seu acervo”.[vii]
Como uma pedra lançada sobre um lago, a energia da obra de Artur Bispo do Rosário segue reverberando nas pessoas e nas artes. A exposição também apresenta trabalhos de membros do Ateliê Gaia,[viii] além de outros numerosos artistas contemporâneos.
Neste momento em que o governo ataca o SUS e provoca retrocessos nas políticas de saúde mental[ix] a obra de Artur Bispo do Rosário realizada num período em que as instituições manicomiais se abriam para novas práticas é alimento espiritual na luta por uma sociedade sem muros.
*Roberto Regensteiner é professor, escritor, e consultor em Gestão & Tecnologia de Informação.
Referência
Exposição “Bispo do Rosario – eu vim: aparição, impregnação e impacto” realizada em parceria do Itaú Cultural de São Paulo com o Museu Bispo do Rosario do Rio de Janeiro, com curadoria de Diana Kolker e Ricardo Resende.
Visitação até 2/10/2022 (terça a sábado 11h às 20h; domingos e feriados 11h às 19h). https://www.itaucultural.org.br/secoes/agendacultural/a-arte-e-a-mistica-de-arthur-bispo-do-rosario.
Notas
[i] In https://museubispodorosario.com/arthur-bispo-do-rosario/.
[ii] ANNA ANJOS. In: http://lounge.obviousmag.org/anna_anjos/2012/11/bispo-do-rosario.html
[iii] “O comportamento de Bispo, que não correspondia ao regulamento da Marinha, foi marcado pela alternância entre “exemplar” e o “faltar às leis”, o que o levou a ser excluído, em 1931. Alguns anos depois, em 1934, trabalhou como lavador de bondes da Viação Excelsior (companhia criada pela Light, na época, responsável pela energia elétrica do Rio de Janeiro). Entretanto, por conta de um acidente de trabalho, Bispo do Rosário se desligou da empresa e, representado por Humberto Leone, moveu uma ação contra a Light. Humberto se tornaria seu patrão algum tempo depois. Para Bispo, a família de Leone representava a “Sagrada Família”, a quem ele jurou fidelidade em troca de segurança, abrigo e comida”. In: http://lounge.obviousmag.org/anna_anjos/2012/11/bispo-do-rosario.html
[iv] Cf filme “Hugo Denizart: O prisioneiro da passagem”, minuto 5:00 em diante in https://www.youtube.com/watch?v=PjgP1LYLZOUm
[v] No excelente documentário O Rosario Sagrado de Arthur Bispo, produzido pelo programa Inclusão do Senado Federal, (https://www.youtube.com/watch?v=qs3ejMm-F1g&t=3084s) por volta dos 12 minutos é entrevistada a psicóloga e psicanalista Rosangela Maria Magalhães que estagiou na Colônia e que testemunha o afeto que ele lhe dedicou além de um precioso depoimento sobre a pessoa. Na exposição do Itaú cultural estão apresentados diversos objetos que ele produziu e dedicou para a ela. Este documentário é valioso por também entrevistar Luciane Hidalgo, autora do livro O senhor do labirinto em que publica sua pesquisa sobre Bispo e que serviu de base para o filme de mesmo nome no qual o diretor Geraldo Motta Filho afirma que o MoMA de Nova York considera que Artur Bispo do Rosário e Marcel Duchamp são considerados os dois maiores artistas plásticos do século XX. Além disto traz imagens da Colônia no tempo em que era um manicômio fechado e depois de sua abertura, transformado em Museu que abriga a reserva técnica onde ficam guardados os trabalhos do Bispo. A entrevista com o diretor do museu, Wilson Lazaro, mostra em detalhes vários aspectos das obras, ferramentas e similitudes com outros artistas (inclusive a roda de Duchamp e os parangolés de Oiticica)
[vi] http://lounge.obviousmag.org/anna_anjos/assets_c/2012/11/bispo%20f-thumb-600×1006-28185.jpg
[vii] https://museubispodorosario.com/museu/
[viii] “Ateliê Gaia é um coletivo formado por pessoas que tiveram passagem pelo serviço de saúde mental da Colônia Juliano Moreira. Do grupo, mostram-se, entre outras, obras de Arlindo Oliveira e de Patrícia Ruth, que conviveram com Bispo” https://www.itaucultural.org.br/secoes/agenda-cultural/a-arte-e-a-mistica-de-arthur-bispo-do-rosario
[ix] https://esquerdaonline.com.br/2022/06/23/ministerio-da-saude-extingue-coordenacao-de-saude-mental/