Por JUAREZ GUIMARÃES*
É um grande erro apontar o liberalismo como origem da democracia moderna
A liberdade é um valor fundamental no processo de formação do que se chamou de Modernidade. É o fundamento central de legitimação do Estado moderno em relação às ordens políticas anteriores, centradas na legitimação por adesão a um princípio teológico, da origem divina da autoridade política. É um grande mérito dos historiadores da filosofia política ter documentado, ao longo das últimas décadas, que as chamadas revoluções que formaram o mundo moderno ocidental – as revoluções inglesa, norte-americana e francesa e também a revolução haitiana – tiveram no seu centro a disputa sobre o que devia ser a liberdade entre as tradições do republicanismo democrático e do liberalismo.
Esta documentação é decisiva porque a tradição liberal, em seu processo de dogmatização antipluralista como visão de mundo dominante no mundo moderno, identificou Modernidade e liberalismo, este último sendo apresentando como historicamente formador das liberdades e dos direitos contemporâneos. Até hoje, é muito frequente que historiadores, teóricos marxistas ou marxizantes e ativistas da esquerda apresentem estas liberdades como “burguesas”, isto é, como liberais.
Através desta nova perspectiva histórica, hoje fartamente documentada, havia um conceito republicano de liberdade antes e alternativo ao conceito liberal de liberdade, vinculada à noção básica de autonomia e autogoverno. Esta tradição republicana democrática disputou com o liberalismo em formação ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX o que seria uma ordem política baseada na liberdade. O liberalismo, portanto, se formou em disputa com as ordens teológicas mas também, e cada vez mais, contra estas correntes republicanas democráticas.
O socialismo democrático de Marx, a formação do feminismo como emancipação, as lutas contra a escravidão e o antirracismo formaram-se como herança e atualizações críticas destas tradições republicanas democráticas. É, portanto, um grande erro apontar o liberalismo como origem da democracia moderna. Seria mais verdade apontar que ele foi, desde sempre, em suas correntes majoritárias, fortemente crítico à própria noção de soberania popular, à universalização dos direitos humanos, em particular aos direitos do trabalho, aos nascentes movimentos feministas e antirracistas.
O liberalismo social ou keynesiano, chamado por Norberto Bobbio de “liberal socialista” ou “socialista liberal”, dominante no centro da tradição liberal do período do pós-guerra até o fim dos anos setenta, foi decerto uma tentativa, que se revelou instável e conformada apenas aos países capitalistas centrais, de compatibilizar liberalismo e democracia, justiça social e liberalismo, democracia liberal e uma promessa de uma crescente expansão e universalização dos direitos de cidadania. O neoliberalismo como teoria política, nasceu em disputa com este sincretismo, esta mistura, este arranjo liberal-social, que para os fundadores do neoliberalismo, de Walter Lipmann aos ordoliberais alemães, passando por Hayek, desorganizava o sentido do próprio liberalismo clássico e colocava esta tradição em uma situação defensiva e precária diante das pressões reformistas dos trabalhistas e social democratas ou mesmo revolucionárias das esquerdas marxistas.
Assim, o grande investimento neoliberal foi disputar e vencer o significado, o valor e o sentido da liberdade e, através desta mudança, atacar frontalmente o próprio valor da justiça social ou da igualdade. Apesar de se auto designarem como herdeiros e atualizadores do liberalismo clássico, este conceito de liberdade neoliberal é, de fato, uma refundação da tradição liberal da liberdade. Neste sentido rigoroso, o neoliberalismo é um liberalismo; inscreve-se nesta tradição e tem muitas relações fundamentais de afinidade com ela. Mas é, e isto é decisivo, um novo liberalismo.
Este novo liberalismo ou neoliberalismo afirmou-se na década final da chamada “Guerra Fria” e, depois, após o fim da URSS e de seu sistema internacional de domínio no Leste Europeu, massificou uma nova concepção de liberdade, hoje dominante no mundo ocidental. Essa nova concepção é, na verdade, um novo princípio de legitimação da dominação da ordem capitalista contemporânea.
É preciso entender, assim, este novo conceito de liberdade que explica porque os neoliberais paradoxalmente bradam contra a democracia em nome da liberdade.
Uma nova concepção de liberdade
É no livro A constituição da liberdade (1961) que Friedrich Hayek organiza, de forma sistemática, este novo conceito de liberdade. Após afirmar no título e na introdução o valor central da liberdade, Hayek procede a quatro operações simultâneas que redefinem a liberdade em diálogo com o liberalismo clássico, mas claramente formando um novo conceito. A liberdade deixa de ter um sentido puramente “negativo”, isto é, de limitação da atuação do Estado frente a certas dinâmicas mercantis e passa a ser associada positivamente a um valor ontológico mercantil, isto é, o exercício do autodesenvolvimento das individualidades no cosmos do mercado. A pergunta fundamental deixa de ser sobre as fronteiras da atuação do Estado na economia e na liberdade privada e passa a ser sobre o sentido mesmo desta atuação; se favorece ou não essa liberdade ontologicamente mercantil.
A primeira operação é aquela voltada a separar liberdade de autogoverno, liberdade de democracia ou liberdade de soberania política. Friedrich Hayek faz a crítica do entendimento da “liberdade política”, isto é, da liberdade que é fruto da atuação ativa dos cidadãos na vida pública. O alvo central aí são exatamente as tradições do republicanismo democrático ou do socialismo democrático, que Hayek caracteriza como idealista e inconsistente teoricamente. A democracia como soberania popular passa a ser a principal ameaça à liberdade: o argumento contramajoritário da necessidade de limitar os poderes legislativos da maioria, presente no liberalismo do século XIX, ganha aqui uma forma extremada.
A segunda operação é definir a liberdade como estritamente individual. Friedrich Hayek trabalha com o par de oposição individualismo/ coletivismo, identificando a liberdade com o primeiro. Não há sentido, nesta gramática nova da liberdade, em falar de vontade geral ou esfera pública, de interesse público ou bem comum. Apenas as ações individuais têm sentido: Hayek critica mesmo o utilitarismo (que faz a agregação dos interesses individuais para pensar o interesse da maioria) ou as noções pluralistas liberais de democracia (que pensam a democracia como a barganha permanente de grupos de interesses no interior das instituições da democracia via partidos).
A terceira operação é a de separar radicalmente liberdade de igualdade, o que lhe permitirá no momento seguinte fazer a apologia da desigualdade como fruto inevitável e motor do progresso das sociedades através dos mecanismos da competição mercantil. Uma sociedade igualitária seria, além de injusta e incompatível com a liberdade, estagnada e carente de inovação. A compreensão do porquê as democracias liberais nas últimas décadas foram palco do crescimento das desigualdades sociais, raciais e de gênero passa por esta redefinição do estatuto da liberdade com a igualdade. Aquela tensão entre liberdade e igualdade encontrada nas formas clássicas do liberalismo é aqui superada por uma cisão e por uma apologia da desigualdade.
A quarta operação é voltada contra o feminismo. Não há lugar no conceito de liberdade de Friedrich Hayek nem para a aventura da subjetivação da liberdade, que é própria do feminismo, nem para a dimensão pública da reprodução social, inserindo-se esta liberdade em um conceito estritamente patriarcal de sociedade. A via mercantil de autorrealização das mulheres é, assim, oposta ao feminismo como uma teoria da emancipação socialista: a própria prostituição é legitimada como parte deste processo de mercantilização da vida social.
Para Friedrich Hayek, o oposto de liberdade é a coerção, exercida pelo Estado como monopólio do uso da força. Um sujeito faminto, obrigado a vender-se no mercado para sobreviver, não constituiria coerção já que ele tem alternativas no mercado e, em casos extremos, uma renda mínima provisoriamente fornecida pelo Estado. Hayek evoca mesmo a figura do miserável livre oposta à do bem saciado mas constrangido pelas ordens do Estado.
Marx livre
Seria necessário entender o contexto político no qual esta nova concepção de liberdade neoliberal se afirma. Pois as tradições opositoras aos neoliberais, a social-democrata e a tradição socialista encontravam-se centradas em seus apelos às políticas distributivistas ou de igualdade social, mas problematicamente situadas em relação ao princípio da igualdade como autodeterminação, como autonomia, como soberania popular.
Em particular, aquela tradição ainda dominante no mundo do pós-guerra que se apresentava como socialista ou falando em nome do marxismo – a tradição estalinista – apresentava aberta ruptura com o valor da liberdade e da autodeterminação. As correntes de época da social-democracia e do trabalhismo, como documenta em várias passagens Friedrich Hayek, não sem exercer o direito arbitrário de citar, exaltavam a necessidade da planificação central mas eram pouco ciosas de conferir a este planejamento uma dimensão democrática ou participativa.
É esta disjuntiva ou cisão de época entre liberdade e igualdade que está por detrás da famosa declaração do liberal-socialista Norberto Bobbio que define ser de esquerda no mundo contemporâneo através da afinidade com o valor da igualdade. Bobbio, como a tradição liberal, afirmava que houve historicamente liberalismo não democrático mas não pode haver democracia sem liberalismo. A relação do socialismo com o valor da liberdade não havia passado nas duras provas da história.
Daí a necessidade de reconstruir um marxismo para o século XXI – como era o socialismo democrático de Karl Marx – com um fundamento forte de liberdade e igualdade em seu centro. Pois só podemos ser iguais – não escravos, servos ou dependentes, seres sem autonomia – se formos livres, individual ou coletivamente. Só uma tradição renovada do socialismo democrático poderá derrotar o neoliberalismo.
*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).
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