Por JOSÉ LUIS OREIRO*
Proposta é um simples paliativo para a grave situação econômica pela qual passa o Brasil
A pouco menos de 100 dias do primeiro turno das eleições presidenciais de 2022 a base de apoio do governo Bolsonaro no Senado Federal conseguiu aprovar, com o apoio praticamente unânime da bancada de oposição (com a exceção do senador José Serra) a PEC 1/2022, que cria uma série de políticas públicas para amortecer o impacto da elevação dos preços dos combustíveis e da inflação sobre a população brasileira.
Entre essas políticas destacam-se um auxílio de R$ 1.000 para os caminhoneiros, o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 com ampliação da base de beneficiários do programa em aproximadamente 1,6 milhão de pessoas – número equivalente ao de pessoas que estão atualmente na fila de espera do benefício por fazerem jus ao mesmo – e o aumento do valor do vale-gás para a população de baixa renda. O valor total das medidas está estimado em R$ 41,2 bilhões para o ano de 2022. Deve-se destacar, contudo, que tais medidas têm prazo de vigência até o dia 31 de dezembro, quando termina o mandato presidencial de Jair Messias Bolsonaro.
Os economistas liberais, muitos dos quais apoiaram a eleição de Bolsonaro em 2018 por temerem que um eventual governo de Fernando Haddad traria de volta (sic) o “populismo fiscal”, estão agora aterrorizados com a destruição de facto, ainda que não de jure, do teto de gastos implementado na gestão de Michel Temer por intermédio da EC 95.
A facilidade com a qual o Senado Federal suspendeu, ainda que temporariamente, o teto de gastos deixa muito claro que (i) colocar uma regra fiscal na Constituição Federal não é garantia de que a mesma será cumprida sob quaisquer circunstâncias e (ii) o teto de gastos é uma regra fiscal anacrônica que amarra as mãos dos formuladores de política econômica, tirando o espaço de manobra necessário para se enfrentar “eventos inesperados” como a forte elevação dos preços internacionais da energia e dos alimentos decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia no dia 24 de fevereiro de 2022.
Como qualquer economista que se tenha dado ao trabalho de ler ao menos uma vez a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda do economista britânico John Maynard Keynes sabe muito bem, o processo de tomada de decisão – tanto do setor público como do setor privado – está sujeito à incerteza, ou seja, a ocorrência de “eventos inesperados”, a qual demanda flexibilidade para adaptar-se às novas circunstâncias que não haviam sido originalmente previstas. Nesse contexto, uma regra fiscal rígida como o teto de gastos é o equivalente a atar-se ao mastro de um navio na esperança de que ele não será afundado por uma tempestade não prevista.
A PEC 1/2022 foi rapidamente denominada de PEC Kamikaze por parte da imprensa e da oposição. Eu, francamente, não consigo concordar com o, por assim dizer, apelido. Como é bem sabido, os kamikazes eram os pilotos da força aérea do Império do Japão, que numa tentativa desesperada de impedir o avanço da imensamente superior esquadra norte-americana em direção ao arquipélago japonês na Segunda Guerra Mundial, jogavam seus aviões carregados de bombas sobre os porta-aviões norte-americanos com o intuito de afundá-los. Está claro que se tratava de uma missão suicida cujo resultado foi inócuo: as perdas sofridas pela esquadra norte-americana puderam ser rapidamente substituídas pela enorme capacidade industrial dos Estados Unidos.
Não há dúvida de que a PEC 1/2022 é a tentativa desesperada do governo Bolsonaro de reverter a enorme rejeição do governo (cerca de 55% do eleitorado se diz contrário ao atual governo) e assim ter chance de (i) levar a eleição para o segundo turno e (ii) conseguir reduzir a vantagem de Lula sobre Bolsonaro para, no evento de derrota nas urnas, poder contestar o resultado das eleições, numa edição à moda brasileira do 6 de janeiro de 2020 nos EUA. O que não está claro, no entanto, é o caráter “kamikaze” dessa PEC. Na sequência vamos analisar essa questão mais detalhadamente.
O que exatamente o governo tem a perder com essa PEC? Os economistas liberais vão dizer que se trata de um atentado à (sic) responsabilidade fiscal. Sobre esse ponto quero tecer duas considerações. Em primeiro lugar, quando comparado ao valor gasto em 2020 com as diversas medidas de enfrentamento dos efeitos econômicos da pandemia da Covid-19 (cujo valor alcançou quase R$ 600 bilhões), a PEC 1/2022 é bastante modesta: trata-se de pouco menos de 7% do valor gasto naquele ano.
Em segundo lugar, a PEC 1/2022 não difere substancialmente das medidas que países como Espanha e França estão adotando para amortecer o impacto sobre a população mais pobre do aumento dos preços da energia e dos alimentos. Com efeito, no último dia 25, o primeiro-ministro espanhol, o socialista Pedro Sánchez, anunciou um pacote de medidas que incluíam um auxílio de € 200 mensais para os trabalhadores de baixa renda, por conta própria e para os desempregados, além de um aumento de 15% nas aposentadorias não contributivas e por invalidez. O valor desse pacote de medidas está estimado em € 9 bilhões, o equivalente a R$ 52,2 bilhões.
A inação do governo Bolsonaro certamente lhe custaria a derrota nas eleições de outubro já no primeiro turno. Dessa forma, para o Palácio do Planalto trata-se de um claro jogo de ganha-ganha.
Minha crítica à PEC 1/2022 é de que ela é um simples paliativo ou “morfina” para a grave situação econômica pela qual passa o Brasil. O Banco Central já declarou publicamente que, pelo segundo ano consecutivo, a inflação irá fechar acima do teto do regime de metas de inflação, devendo ficar entre 8 e 9% em 2022. Embora a expectativa de crescimento do PIB tenho sido revista para 1,7% ao longo deste ano, trata-se de um crescimento pífio equivalente a 60,7% do ritmo de crescimento observado no período 1980-2014 e insuficiente para recuperar o PIB do ano de 2013! Por fim, mas não menos importante, deve-se destacar que entre março de 2021 até fevereiro de 2022, o número de famílias na pobreza – segundo dados do Cadastro Único – aumentou em 29%.
As medidas previstas da PEC 1/2022 podem atenuar, mas estão bem longe de serem capazes de resolver esses problemas, ou seja, é muito pouco e muito tarde tanto para resolver os graves problemas socioeconômicos do país, como para salvar o governo Bolsonaro da derrota certa nas urnas nas eleições de outubro de 2022.
*José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB. Autor, entre outros livros, de Macroeconomia do desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (LTC).
Publicado originalmente no site Jota.info.