Marx trágico & Marx, filósofo da potência

Imagem: Herr och Fru Purjo
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Por LUIZ EDUARDO MOTTA*

Apresentação da reunião de dois livros de Carlos Henrique Escobar

Carlos Henrique Escobar (ou Carlos Henrique de Escobar, conforme alguns livros e artigos) foi um dos mais representativos e prolíficos intelectuais brasileiros do contexto que abrange o final dos anos 1960 até meados da década de 1990. Sua produção intelectual abrangeu não somente textos de caráter filosófico e político, mas também peças de teatro (Antígona-América, Ramon:o Filoteto Americano, A Caixa de Cimento, Matei Minha Mulher (ou A Tragédia de Althusser), Ana Clitemnestra, entre outras) e livros de poesias (Chão por Dentro, A Notícia da Ave, Chave das Águas).

A despeito de sua vasta produção, neste século XXI o seu nome foi para o limbo, praticamente desconhecido pelas novas gerações e fazendo parte de uma lista de autores brasileiros que viveram o céu e o inferno no campo intelectual brasileiro como Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Jacob Gorender, Álvaro Vieira Pinto, Manoel Maurício de Albuquerque, e até mesmo o seu desafeto político e intelectual José Guilherme Merquior, só para ficarmos nestes nomes.

Nascido em São Paulo no ano de 1933, Escobar pertence a uma geração de intelectuais que marcou presença no combate à ditadura militar, e grande parte dela associada ao pensamento marxista. Dessa geração destacam-se os nomes de Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Luís Pereira, Maurício Tragtenberg, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Wanderley Guilherme dos Santos, Leandro Konder, Luiz Werneck Vianna, Sérgio Paulo Rouanet. Somam-se a esses nomes os de José Guilherme Merquior, Carlos Nelson Coutinho e João Quartim de Moraes nascidos no início dos anos 1940, mas já em plena atividade intelectual no final da década de 1960.

A trajetória intelectual de Escobar pode ser definida como a de um “marginal”. Juntamente com o seu irmão foi morador de rua, e não chegou a ingressar o que hoje denominamos de ensino médio. Sua formação basicamente autoditada foi feita nas bibliotecas públicas. Veio a receber o título de “notório saber” concedido pela UFRJ no ano de 1986. Muito novo, com 13 anos de idade, ingressou no PCB e enfrentou a sua primeira prisão aos 15 anos. Sua primeira obra foi escrita quando tinha 17 anos, a peça Antígona-América. Depois de se afastar do PCB por divergências políticas, Escobar casou com a atriz e produtora teatral Ruth Escobar no final dos anos 1950, e em seguida foram morar durante um tempo na França onde se tornou aluno de Maurice Merleau-Ponty.

Ao retornar ao Brasil no início da década de 1960, e já separado de Ruth Escobar, passou a morar no Rio de Janeiro em 1962 para participar de um curso de cinema promovido pelo Ministério das Relações Exteriores. Em seu depoimento dado a mim em 1992, quando fiz a minha pesquisa sobre as revistas Tempo Brasileiro e a Civilização Brasileira, Escobar me relatou que morou num hotel perto da Central do Brasil e obteve uma carteira da UNE para que pudesse almoçar e jantar no Restaurante Central dos Estudantes, também conhecido como “Calabouço”.

Para sobreviver, e pagar as contas, dava cursos de filosofia para grupos de estudantes (dentre os quais participaram Gilberto Velho, Octávio Velho, Moacir Palmeira e Yvonne Maggie), cujas aulas versavam sobre a obra de Sartre. Em 1969, Escobar ingressou na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), e da qual se afastou em 1976 e retornou em 1986. Para além da |UFRJ, Escobar lecionou na (Pontífice Universidade Católica (PUC-RJ), na Universidade Federal Fluminense (UFF) e nas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), além de lecionar em diversos grupos de estudo e cursos de filosofia em espaços extra-universitários.

Mas o seu nome marcou o cenário intelectual brasileiro quando começou a divulgar e defender as teses de Louis Althusser sobre a obra de Marx. Foi, sem dúvida, o pioneiro em nossa formação social da obra de Althusser, e a seu redor se formou a primeira geração de intelectuais identificados com as posições de Althusser do que viria a ser chamado “Grupo Tempo Brasileiro”.[i] O ponto de partida é o seu artigo “De um marxismo com Marx” publicado no número 13/14 da revista Tempo Brasileiro em 1966-67. Neste artigo, Escobar realizou uma síntese dos principais pontos abordados por Althusser publicados em Pour Marx e Lire le Capital, ambos publicados em 1965.

Escobar estava sintonizado com o momento em que vivia o marxismo francês a partir da reviravolta dada por Althusser com a sua leitura original da obra de Marx. Todavia, nesse contexto, Althusser foi identificado por seus críticos como um autor “estruturalista”, e, de certo modo, Escobar ajudou a essa associação com a organização e tradução de dois livros publicados pela Zahar: O método estruturalista de 1967 e Estruturalismo e marxismo de 1968. Além disso, publicou na revista Tempo Brasileiro no número 15-16 de 1968 – inteiramente dedicado ao tema do estruturalismo francês – o seu artigo “Resposta a Carpeux”, dirigido ao texto de autoria do crítico literário Otto Maria Carpeaux “O estruturalismo é o ópio dos literatos” publicado na Revista Civilização Brasileira nº. 14. Nesse artigo, Carpeaux condena o método de análise estruturalista, pois, a seu ver, é mais um modismo estrangeiro no seio da intelectualidade brasileira que, não por acaso, surgiu depois do golpe de 1964 e, assim, possui um caráter anti-revolucionário e anti-histórico:

Esse desespero não revolucionário e anti-histórico já não se limita à Europa. Desde o outubro de 1962 – affaire de Cuba – invadiu esquerdas extra-européias. Desde o abril de 1964, infiltrou-se no Brasil. Desespera-se da possibilidade de tornar histórica e existência nacional. Afigura-se como estrutura estabilizada o status quo social (um vestígio dessa resignação encontra-se na obra de Caio Prado Junior). O povo brasileiro teria sido e seria um povo de fellahin, sem história como os povos primitivos e inclusive como as tribos de índios do hinterland brasileiro, cujo estudo foi o caldo de cultura do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss. Estruturalismo no Brasil significa: volta às origens. E apaga-se o futuro, o desenvolvimento.[ii]

A resposta de Escobar foi imediata ao texto de Carpeaux e, em diversas passagens, há um tom emotivo e pessoal carregado de adjetivações à pessoa de Carpeaux. A passagem mais significativa de seu longo artigo – que em grande parte é um resumo explicativo dos principais conceitos de Lévi-Strauss – é a conclusão. Escobar associa o conceito de Revolução ao de ciência demonstrando a influência da teoria de Althusser em seu trabalho.

A Revolução – seja de caráter socialista ou de libertação nacional – só será concretizada se a ciência for o principal instrumento de análise da realidade, pois somente o instrumental científico pode romper com as ideologias que enevoam a realidade e, por consequência obliteram o desenvolvimento da revolução: “O estruturalismo não é uma “novíssima chave”, ele tem muito pouco, ou nada, a ver com o “libertador”, ele está situado na problemática epistemológica que pela base as ciências em geral (…) atravessam; ele não pode e não deve ser visto como uma “ideologia” – “ideologia” aliás que só pode ser explicada a partir dos seus princípios metodológicos. Não se pode encará-lo de fora, isto é, supondo acontecimentos políticos, fatos e razões exteriores à própria ciência como sua origem e seu fundamento. Nada mais triste por respeito à ciência e seus problemas do que um artigo leviano, cuja preocupação, senão mesmo a conseqüência, seja retirar dos estudos (no caso, dos estudos de método) os jovens que, mal ou bem, constituem nossas chances, mesmo políticas (ou sobretudo elas). Há evidentemente um “momento político” para o estruturalismo, e o renascimento do marxismo, a crítica das ideologias, etc., provam quanto ele é revolucionário e histórico. (…)A revolução é também uma possibilidade a partir da ciência, e aplicar esta ciência não é aplicar o que não se tem, ou o que ideologicamente pensou-se que se tinha, mas o que de fato possuímos e vigorosamente vamos possuindo. É aqui que a política e a ciência – implicadas – constituem o efetivo de nossa contemporaneidade. A América Latina e a Ásia têm uma relação histórica e específica com a razão – se assim podemos dizer. A razão, ou a ciência, sendo hoje diretamente aplicada é sentida particularmente em sua eficacidade. Ela ganha toda plenitude do seu sentido que é o de instrumento de libertação e de tática (Debray).Compreende-se que não nos escusamos de abordar de frente as questões. Estes mesmos problemas referentes a nossa realidade (América Latina) que prática e teóricamente constituem, nestes dias, nossa formação e nossa vida. Não nos parece honesto fazê-lo de passagem e confundindo-os com os problemas internos da ciência, como faz Carpeaux, e como fazem tantos outros. Um revolucionário não é um homem que despreza a ciência, tanto quanto a ciência não é um mistério e uma impossibilidade para o povo (Vietnã). Que chances teríamos contra o imperalismo sem ela?Além de tudo, não é só a Carpeaux que devemos dizer tudo isso, mas sim àqueles que (reformistas, humanistas e liberais) traíram na prática a revolução e se esforçam hoje por trair no marxismo a ciência. Aqueles que se institulam, conforme mandato da burguesia, os donos do saber – os literatos”.[iii]

Contudo, em seus trabalhos seguintes, Escobar tentou cada vez mais se desvincular do chamado estruturalismo francês, como podemos perceber em um dos seus principais textos da década de 1970 “As leituras e as leituras prático-teóricas”, que está contido na coletânea publicada pela editora Vozes Epistemologia e teoria da ciência (1971), e cujo alvo era Michel Foucault. Esse livro é um marco na vertente althusseriana brasileira por ter sido o primeiro livro coletivo que tratou da obra de Althusser ao conter artigos de Eginardo Pires, Marco Aurélio Luz, Antônio Sérgio Mendonça e Cabral Bezerra Filho.[iv] Já o artigo de Escobar viria a ser republicado duas vezes: uma versão resumida numa coletânea organizada por Sergio Paulo Rouanet O homem e o discurso (1971) publicada pela editora Tempo Brasileiro e totalmente dedicada ao pensamento de Foucault, e no seu livro Epistemologia hoje (1975) publicado pela editora Pallas.

O período entre 1972 a 1975 foi um dos mais produtivos de Escobar: quatro edições da revista Tempo Brasileiro foram organizadas por ele (duas dedicadas à problemática da epistemologia, (n°. 28a/1972 e 30-31/1973), uma dedicada às instituições e os discursos (n°. 35/1974), e outra a histórias e os discursos (n°. 36-37/1974). Em três destas edições foram publicados os seguintes artigos de sua autoria: “Uma filosofia dos discursos: uma ciência dos discursos ideológicos” (n°30-31), “As instituições e o poder” (n°35) e “Do estatuto dos discursos no inconsciente e na história” (36-37), além do artigo publicado no n° 28b/1972 “Leitura de Saussure: proposições semiológicas”; quatro artigos publicados pela Revista de Cultura Vozes (outro espaço editorial que publicou trabalhos do chamado grupo “Tempo Brasileiro”): “A Psicanálise e a Ciência da História”, v. 6, 1971; “Aspectos Ideológicos da Cibernética como Filosofia”, v. 7, 1972; “Para não dizer que não falamos do Simbólico”, v. 6, 1973; “Da noção de trabalho e linguagem na psicanálise”, v. 6, 1973; organizou os livros Psicanálise e ciência da história pela Eldorado (1974) e Semiologia e linguística hoje pela Pallas (1975), e escreveu os livros As ciências e a filosofia pela Imago (1975), Epistemologia das ciências hoje pela Pallas (1975), Discursos, instituições e história pela editora Rio (1975), e, certamente, o seu livro mais original desta primeira metade dos anos 1970 Proposições para uma semiologia e uma linguística, lançado em 1972 pela editora Rio.

Este livro de Escobar é uma clara demonstração que o grupo da Tempo Brasileiro não se limitou em apenas divulgar e reproduzir as teses althusserianas sem desenvolvê-las ou aprofundá-las em relação a outros estudiosos da obra do pensador franco-argelino, como aponta Décio Saes em seu estudo O impacto da teoria althusseriana na história da vida intelectual brasileira,[v] que é, sem dúvida, o texto mais sistemático sobre a recepção de Althusser no Brasil. Como observa João Pedro de Souza Barros Santoro Luques em artigo ainda inédito[vi] houve nesse livro um “desenvolvimento e aprofundamento das reflexões althusserianas sobre as questões da Instância Ideológica e da luta de classes ideológica. (…)Escobar propõe uma rigorosa teorização do que seria a instância do ideológico para o marxismo, descrevendo suas subestruturas, pensando a relação entre elas e procurando, com o devido rigor, identificar o lugar da psicanálise e da semiologia dentro do corpus teórico do marxismo”.

Talvez houvesse um desconhecimento de Saes por essa obra de Escobar já que a distribuição desse livro lançado por uma pequena editora do Rio de Janeiro, certamente era bastante precária naquele contexto. Mesmo assim, houve um silêncio quanto à contribuição dessa obra no campo da linguística brasileira a exemplo do livro organizado por Lucília Maria Abrahão e Sousa e Dantiellli Assumpção Garcia, Ler Althusser hoje, que, a despeito de demarcar a importância de Althusser e Pêcheux no campo da linguística no Brasil, e de sua divulgação e aplicação por parte dos acadêmicos da área de linguística da Universidade de Campinas (UNICAMP), não há uma citação sequer sobre essa obra pioneira de Escobar.

Coube a João Kogawa preencher essa lacuna no nosso cenário intelectual ao publicar a sua pesquisa de doutorado Linguística & Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil publicado pela UNIFESP em 2015. Neste trabalho, Kogawa não somente nos mostra o pioneirismo de Escobar na divulgação de Pêcheux com relação a essa problemática, mas também em seu avanço na direção da semiologia, e que faz desta obra de Escobar representar a primeira grande contribuição original das teses althusserianas em nossa formação social.

Embora tenha publicado apenas um livro na segunda metade dos anos 1970, Ciência da história e ideologia, publicado pela editora Graal em 1979, é certamente o seu livro mais conhecido. Este livro é um prodígio de síntese das posições da escola althusseriana nos anos 1970 (marcada por algumas retificações) no que concerne à questão do materialismo histórico, do conceito de modo de produção, dos aparelhos ideológicos, do conceito de ideologia, do Estado capitalista e da transição revolucionária.

Para isso, Escobar mobilizou, para além de Althusser, outros autores vinculados a essa perspectiva marxista, como também outras referências que influenciaram, ou dialogaram com Althusser, a exemplo de Balibar, Poulantzas, Terray, Pêcheux, Establet, Baudelot, Bettelheim, Karsz, Buci-Glucksman, Macciocchi, Marx, Bachelard, Canguilhem, Gramsci, Foucault e Marcuse. Apesar de sua publicação ter sido em 1979, os capítulos são datados no ano de 1975, organizados de forma autônoma entre eles, e apresentados de forma ainda provisória. Com efeito, o livro é um conjunto de apontamentos sistematizados e articulados em torno da reprodução ideológica nas classes sociais no modo de produção capitalista, e sua descontinuidade (ou não) durante o período de transição na ditadura do proletariado. O livro contou com a apresentação do historiador Manoel Maurício de Albuquerque.

Ainda em 1979, Escobar publicou dois artigos polêmicos: um foi publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira n°. 16 intitulado “Da categoria da cultura: do aparelho cultural do Estado” em franca polêmica com as posições de Ferreira Gullar, Roberto Schwarz, Luiz Costa Lima e Michel Foucault; o outro fora publicado na revista Leia Livros “Sobre quem tem medo de Louis Althusser?” que é uma resenha dos dois livros de Althusser: A favor de Marx (Pour Marx) publicado pela Zahar, e Posições 1 lançado pela Graal. Neste último artigo, as baterias foram voltadas à Universidade de São Paulo (USP), ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), representados pelas figuras de Fernando Henrique Cardoso, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e, sobretudo, José Arthur Giannotti.[vii]

Na década de 1980 houve um descenso de Escobar em termos de publicações, não obstante fosse uma presença marcante no cenário intelectual carioca nas mesas de debate nas universidades, nos centros culturais, na mídia televisiva, além da contribuição de textos e comentários no Caderno de Ideias do Jornal do Brasil. Com relação aos livros, foram publicadas as seguintes coletâneas organizadas por ele em 1984: Por que Nietzsche? pela Achiamé, e Michel Foucault: o dossier (as últimas entrevistas) pela Taurus. É perceptível, nessa década, a incorporação de outras referências teóricas por Escobar como Deleuze, Foucault e, principalmente Nietzsche, não obstante permanecesse no campo do marxismo. Distintamente de outros intelectuais que migraram do marxismo para outras perspectivas teóricas, e rejeitando o marxismo, Escobar permanecia – e se reconhecia – enquanto marxista, e sem denegar o seu passado teórico e político.

Já entre 1991 e 2000, Escobar voltou a marcar presença no tocante a publicações de livros. Em 1991 organizou a coletânea Dossier Deleuze, publicado pela Hólon. Sua tese de doutorado defendida em 1992 na ECO-UFRJ, sob orientação de Márcio Tavares D’Amaral, O Marxismo Trágico (O Marxismo de Marx) foi publicada em duas partes pela Taurus: a primeira em 1993 com o mesmo título da sua tese de doutorado, e a segunda em 1996 com o título Marx, filósofo da potência. No ano de 2000 publicou pela editora 7 Letras dois livros volumosos sobre Nietzsche: o primeiro intitulado Nietzsche (dos “companheiros) e o segundo Zaratustra (O corpo e os povos da tragédia). Além destes livros, Escobar ainda publicou dois artigos em revistas acadêmicas: o primeiro “Augusto Comte: um enfoque crítico” na revista Logos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1999, e o segundo “Direitos humanos com Marx” na revista Psicologia Clínica da PUC-RJ em 2008.

Mas nos interessa aqui é comentarmos brevemente, neste prefácio, sobre os dois livros Marx trágico e Marx filósofo da potência. A sua abordagem da obra de Marx é, no mínimo, peculiar e ousada. Primeiramente, Escobar trouxe as categorias de Nietzsche –a partir da interpretação de Deleuze – para analisar e dialogar de forma afirmativa a obra de Marx (e de Engels). Para isso, mobilizou categorias como forças ativas, forças reativas, valores afirmativos e negativos, potência e trágico. Em segundo, Escobar realizou a sua tese de doutorado, e publicou esses dois livros, em meio a emergência da ascensão neoliberal e da crise das formações sociais socialistas do Leste europeu, numa crescente onda antimarxista, não somente nos espaços midiáticos, mas, sobretudo, nos espaços acadêmicos onde a morte teórica e política de Marx estava decretada. É impressionante a ousadia de Escobar em tratar de temas chaves do marxismo num contexto em que muitos intelectuais filiados a essa corrente de pensamento se encontravam na defensiva, ora tentando ajustar o marxismo diante à sua crise e rejeitando o seu conteúdo radical, ora rechaçando quase totalmente a obra de Marx e Engels, sem falar de Lenin, Mao Zedong e outros.

A ousadia de Escobar não se restringiu nesta aproximação à obra de Nietzsche, ou de fazer uma tese sobre Marx durante essa maré antimarxista, mas na defesa de conceitos chaves do marxismo que já vinham sendo descartados desde os anos 1970. Além de tratar de questões (analisadas em capítulos) como o materialismo e da filosofia trágica (em Marx Trágico) e da “dialética” em Marx (em Marx, filósofo da potência), Escobar abordou (e defendeu) questões concernentes sobre a ditadura do proletariado (Marx Trágico), e do comunismo (em ambos os livros). É importante frisar que a sua abordagem sobre o comunismo antecedeu, e muito, as intervenções de Badiou, Zizek, Negri, Hardt sobre essa problemática em anos recentes.

Essas duas obras de Escobar reafirmam o que fora dito acima por mim a respeito da originalidade de sua obra. Apesar de um relativo afastamento de algumas teses de Althusser defendidas por ele no passado (como o corte epistemológico na obra de Marx), muitos aspectos ainda permaneceram nesses dois livros. Um dos mais chamativos é a convergência com as posições do último Althusser sobre a questão do acaso, do materialismo do encontro. É bastante interessante esse “acaso” entre os dois pensadores, haja vista que Escobar chegou por outras vias e nem teve acesso a essas novas posições de Althusser que ficaram mais conhecidas a partir do livro de Althusser em coautoria com Fernanda Navarro, Filosofia y marxismo publicado no México no final dos anos 1980, e com a publicação póstuma de suas memórias O futuro dura muito tempo e dos fragmentos reunidos no texto O materialismo do encontro.

Para Escobar, essa filosofia materialista trágica se assenta no acaso onde todos os posicionamentos políticos radicais e transformadores tomam a forma de comunismo. Como ele afirma em Marx Trágico “não se trata do materialismo da matéria, mas do acaso, e somente o acaso nos instaura no rigor materialista, só ele nos higieniza absolutamente de todo idealismo”.[viii] Já o comunismo “não trabalha com uma natureza prévia mas com o acaso (e o factum), ele é o criador radical do novo e pensa com as transformações. O acaso pelo factum (e o factum como acaso) destrói as ideias de natureza e Ser e estabelece um solo não conceituável como irreversibilidade e acontecimentos”.[ix]

Segundo Escobar, o comunismo de Marx é a polpa do devir, é sua resolução política como afirmação e multiplicidade. Isso significa que o comunismo não é um devaneio utópico, mas sim, simultaneamente, criador e destruidor.[x] Não se trata de uma “superação do capitalismo”, mas a sua descontinuidade, a sua ruptura definitiva. Como afirma Escobar “O pensamento do comunismo destrói singularmente e multiplamente –em qualquer momento ou lugar- pela zeração ética e trágica tudo aquilo que os homens e a história social materializam como valores reativos. Ele zera inaugurando a fartura solar do pensar do pensamento como novos corpos e novas solidariedades”.[xi]

O marxismo trágico defendido por Escobar refuta tanto a perspectiva epistemológica, como também a ontológica em Marx, esta última ainda bem presente em alguns círculos acadêmicos brasileiros. Conforme Escobar, Marx não pensará via generalidades (ontológicas e epistemológicas), mas por um devir, ele mesmo qualificado nos riscos de avaliações, ativas e reativas, por onde todo o seu pensamento é crítico e todo ele promessa de “futuro” (comunismo”). A “dialética” marxista não é um idealismo ontoteológico como em Hegel, ou um epistemologismo dentro da tradição gnoseologista da história da filosofia. Para Escobar, Marx não pode pousar a questão do devir (e do acaso) na “natureza” como verdade em si ou como “em si” alienado num processo verdadeiro e espiritual.

Marx assume (mesmo se subentendidamente) o factum e o acaso e faz das reflexões (da problemática que sua dialética encena) toda uma ética na medida em que suas avaliações vêm do futuro (do comunismo) sobre as formações sociais reativas.[xii] De acordo com Escobar “Marx e Engels insistirão na noção de movimento (de mudança e tempo) e se posicionarão por aí num materialismo – materialismo como uma filosofia capaz de pensar e empreender o devir e sua afirmação – por oposição a um idealismo como filosofias do ser e do “processo verdadeiro”.[xiii] Assim sendo, a dialética marxista “não é um pensamento lógico e não tem sua qualidade e seu papel nesta tradição analítica. A dialética é um pensamento que se exige – como problemática aberta – da impossibilidade mesma de pensar sem o futuro, isto é, sem a política. A dialética também não é história apenas da história do homem ou história reativa mas como espessar-pensar inteiro do factum como multiplicidade.”[xiv]

A invenção comunismo, portanto, não é o mero igualitarismo formal burguês, mas sim plural e múltipla já que não há uma naturalização do mesmo, mas múltiplos caminhos. O comunismo em Marx, para Escobar, surge como a libertação da potência (sua multiplicidade trágica). O comunismo não é “um avanço” (no sentido iluminista) do capitalismo (e sua superação dialética), mas outra coisa que o social, que a história social, que a cultura humana ou o ideal de acrescentamento racional.[xv] Tampouco o comunismo seria o fim da ideologia (da “alienação”) e da política (a política não é redutível ao Estado), apenas se atendo à “administração das coisas”, um mundo sem sociabilidade, mas sim a multiplicação de novas práticas políticas e ideológicas em descompasso com a modernidade burguesa.

Como observa Escobar “a revolução para Marx mata e faz nascer (como Dionísio), mata a cultura reativa em toda a sua extensão e nos coloca a questão de não apenas imaginar os corpos e os motivos novos do futuro, mas de já estarmos envolvidos em sua criação. Esta questão, esta subversão de natureza e sujeitos, pelo processo revolucionário, foi esquecida no progresso revolucionário na proporção em que o iluminismo e o humanismo açambarcavam o marxismo.”[xvi]

Daí a necessidade da fase de transição ao comunismo pela ditadura do proletariado (que para Escobar não se definiria como a fase “socialista”, já que o termo socialismo teria se comprometido com os aspectos reformistas[xvii]). A ditadura do proletariado é definida como lugar de invenção de singularidades e multiplicidades, e arrebenta com as hierarquias, com as leis e com todo o aparelho estatal.[xviii]

Estes são alguns elementos tratados por Escobar nesse seu livro polêmico. Em Marx, filósofo da potência retorna a muitas dessas questões, e que complementam as posições tomadas por ele neste volume. As duas obras se complementam formando um todo, e apresentam uma inovadora leitura do marxismo. Não precisamos concordar com todas as afirmações de Escobar, mas sem dúvida não ficamos indiferentes a sua tomada de posição e a linha de demarcação estabelecida por ele em seu confronto com as visões dogmáticas, reducionistas e reformistas (humanistas) que predominam no marxismo brasileiro.

E, sem dúvida, a editora Ciências Revolucionárias conseguiu preencher uma lacuna na produção intelectual do marxismo brasileiro ao reeditar essas duas obras, ao romper com os diques de contenção e ao silêncio estabelecido por parte de alguns grupos de intelectuais que controlam não somente o espaço acadêmico, mas também o mercado editorial brasileiro voltado ao marxismo. Rompe, assim, com uma leitura “única” e “oficial” sobre Marx e Engels ao nos apresentar uma inovadora e radical leitura que só vem acrescentar ao debate marxista em nossa formação social.

*Luiz Eduardo Motta é professor de ciência política na UFRJ. Autor, entre outros livros, de A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista (Contracorrente).

 

Referência


Carlos Henrique Escobar. Marx trágico & Marx, filósofo da potência. São Paulo, Editora Ciências Revolucionárias, 364 págs.

 

Notas


[i] Sobre o “Grupo Tempo Brasileiro” veja SAES, Décio “O impacto da teoria althusseriana na história na vida intelectual brasileira” in MORAES, João Quartim (org.) História do marxismo no Brasil, Campinas: Editora Unicamp, 2007; e MOTTA, Luiz Eduardo “A recepção de Althusser no Brasil: o grupo da Revista Tempo Brasileiro” in MOTTA, Luiz Eduardo A favor de Althusser, São Paulo: Contracorrente, 2021.

[ii] CARPEAUX, Otto Maria “O Estruturalismo é o Ópio dos Literatos”, RCB nº 14, 1967, p 248.

[iii] ESCOBAR, Carlos Henrique “Resposta a Carpeaux” in Tempo Brasileiro n°15/16, 1968, pp. 144-145.

[iv] Além dos nomes citados, pertencia a esse grupo o professor de filosofia do IFCS-UFRJ Alberto Coelho de Souza. Posteriormente se juntou ao grupo dos althusserianos cariocas o historiador Manoel Maurício de Albuquerque (professor do IFCS-UFRJ, cassado pelo AI-5) e Manoel Barros da Motta.

[v] SAES, Décio “O impacto da teoria althusseriana na história da vida intelectual brasileira” in MORAES, João Quartim de História do marxismo no Brasil, vol. 3, Campinas: UNICAMP, 2007.

[vi] LUQUES, João Pedro de Souza Barros Santoro Por uma teoria do ideológico: contribuições de Carlos Henrique Escobar, inédito, 2022.

[vii] Tratei desses dois artigos de Escobar no capítulo VI (“A recepção de Althusser no Brasil: o grupo da revista Tempo Brasileiro”) e no capítulo VIII (“Sobre ‘Quem tem medo de Louis Althusser?’ de Carlos Henrique Escobar”) na segunda edição (ampliada) do meu livro A favor de Althusser publicado pela Contracorrente no final de 2021.

[viii] ESCOBAR, Carlos Henrique, Marx trágico, p. 9.

[ix] Idem, p. 12-13.

[x] Convergente com as posições de Escobar, ainda que tenha outras referências é Márcio Bilharinho Naves em seu livro Marx, ciência e revolução, particularmente no seu capítulo 7.

[xi] ESCOBAR, Carlos Henrique, Marx trágico, p. 27.

[xii] Cf. idem, pp. 62-63.

[xiii] Cf. idem p.94.

[xiv] ESCOBAR, Carlos Henrique, idem, p. 116-117.

[xv] Cf. idem, p. 218-219.

[xvi] ESCOBAR, Carlos Henrique, idem, p. 235.

[xvii] Sobre essa posição de Escobar diferenciar a ditadura do proletariado do socialismo numa oposição à tese de Balibar que identifica o socialismo à ditadura do proletariado, veja o meu artigo “Acerca da problemática da transição socialista: avanços teóricos e os recuos das experiências do chamado socialismo real” in PINHEIRO, Jair Marx: crise e transição. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

Disponível em https://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/marxcrisetransicao_ebook.pdf

[xviii] Cf. idem, p. 266.

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