Um humanismo mínimo

Imagem: Paweł L.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

O que existe em nós que nos torna inimigos uns dos outros, homicidas, fratricidas, etnocidas e ultimamente biocidas?

Meu sentimento do mundo me diz que possivelmente nunca na história dos últimos tempos tenhamos vivido, a nível universal, tanta desumanidade. Quando falo em desumanidade quero expressar o desprezo total pelo valor do ser humano para com outro ser humano diferente, seja de etnia (negros, indígenas, palestinos), seja político (fundamentalistas, conservadores), seja de religião (muçulmanos, candomblé), seja de gênero (mulheres e LGBTQ+). Por um tênis alguém é morto. Uma pequena discussão de trânsito pode terminar num assassinato à bala.

Sem falar da guerra Rússia-Ucrânia (por detrás estão os EUA e a OTAN), a mais espantosa desumanidade está sendo assistida por toda a humanidade, através das mídias digitais, a céu aberto: a dizimação de todo um povo, palestinos da Faixa de Gaza, centenas de mulheres e milhares de crianças inocentes sacrificadas pela fúria vingativa do atual primeiro ministro israelense, de extrema direita, Banjamin Netanyahu. Seu ministro da Defesa declarou explicitamente que os palestinos da Faixa de Gaza (especialmente o ramo militar Hamas que perpetrou um ato terrorista contra Israel a 7 de outubro de 2023 com cerca de 1200 vítimas) são como animais, são sub-humanos e assim devem ser tratados, eventualmente, exterminados.

Cercados por todos os lados, como num campo de extermínio, os que vivem na Faixa de Gaza são permanentemente atacados dia e noite por ar, terra e mar pelas forças de guerra do governo israelense. Muitos morrem de sede, de fome, sob os escombros e de seus ferimentos, pois, tudo lhes foi lhes é negado.

Nem de longe se alimenta a ideia de que somos todos humanos, do mesmo gênero de seres e, portanto, vigora um inegável um laço de irmandade entre todos. Todos respiram, todos comem, todos pisam o mesmo solo, todos recebem os mesmos raios de sol e as gotas de chuva. Todos, por mais altos que sejam seus cargos, têm que atender as necessidades da natureza. O rei da Inglaterra não pode dizer ao seu serviçal: vá fazer pipi no meu lugar. Nesse ponto reina a mais radical democracia em grau zero, incluindo, reis, rainhas, papas, milionários, simples gente do povo, homens e mulheres, crianças e idosos.

Por que somos incapazes de nos tratar humanamente? Vale dizer, nos acolher como membros da mesma espécie homo, nos respeitar nas formas diversas de organizar a vida social e pessoal, nos hábitos, nas tradições e nas expressões religiosas e práticas sexuais? O que existe em nós que nos torna inimigos uns dos outros, homicidas, fratricidas, etnocidas e ultimamente biocidas? Há alguns que afirmam que o homem de Neandertahl, também um humano pensante, teria sido exterminado pelo homo sapiens.

Já foi observado por bioantropólogos que somos uma espécie extremamente ativa, irrequieta, violenta e possivelmente com pouca duração sobre este planeta. Por outro lado, geneticistas e neurólogos constatam que pertence ao nosso DNA (cf. Watson, Crik, Maturana) o amor, a solidariedade, a cooperação e o sentimento de pertença. Há modos de equacionar estes dados aparentemente contraditórios? Por que chegamos aos níveis atuais de desumanidade?

Não conheço nenhuma resposta satisfatória. O que podemos dizer, como tantos pensadores o tem sustentado, é que o ser humano, por sua condição existencial, é simultaneamente sapiens e demens. É movido por impulsos contraditórios, mas que convivem na mesma pessoa, um de destruição e outro de construção. Tenho trabalhado com duas categorias: a dimensão sim-bólica do ser humano (a que une e congrega) e dimensão dia-bólica (a que desune e desagrega). Ambas convivem, se confrontam e trazem dinamismo à história.

Por um tempo, por razões múltiplas que não cabe aqui aventar, predomina a dimensão sim-bólica. Assim surge uma sociedade de convivência pacífica e cooperativa. Num outro, impera a dimensão dia-bólica que dilacera o tecido social, produz violência e até guerras. Temo que estamos neste momento sob o predomínio do dia-bólico, recalcando o sim-bólico pois prevalece o pensamento fundamentalista, fascista e de uso da violência para resolver os problemas sociais.

Não basta descrever esta fenomenologia de dualidade. Temos que cavar mais fundo. Estimo que a causa principal da desumanidade atual e histórica reside na erosão da Matriz Relacional (Relational Matrix). Quer dizer, ao longo da história, lentamente mas por fim de forma cabal, rompemos o sentimento de que todos estamos interligados, que relações se instauram entre todos os seres, formando o grande todo da natureza, da Terra e até do cosmos.

Com a irrupção da razão e seu uso como poder de dominação, rompemos com a Matriz Relacional. Temos nos considerado senhores e donos das coisas. Podemos usá-las inescrupulosamente em nosso benefício, com o pressuposto falso de que elas não possuem valor em si mesmas e, por isso, são destituídas propósito, inclusive o planeta Terra. Assim se fundou o paradigma da modernidade.

Essa ruptura mostra-se hoje extremamente danosa, pois a natureza ou a Terra, estão se voltando contra nós, enviando-nos eventos extremos, uma gama de vírus letais e, nos últimos tempos, o aquecimento global que já se tornou sem retorno. Introduziu uma nova e perigosa fase do planeta Terra e da história humana.

A ruptura da Matriz Relacional com os seres da natureza levou a uma ruptura com sua origem, com o Criador de todas as coisas. O que se chamou de “a morte de Deus” significa que perdemos aquele elo que dava coesão e sentido de plenitude ao nosso viver e a existência de um sentido último da vida e da história. A proclamação da morte de Deus (sua ausência na consciência pessoal e coletiva) deu origem a muitos humanos desenraizados e mergulhados numa profunda solidão. O oposto à uma visão humanístico-espiritual do mundo que afirma que a vida tem sentido e a história não termina no vazio, não é o materialismo ou o ateísmo. É o desenraizamento e o sentimento de que estamos sós no universo e perdidos, coisa que uma visão humano-espiritual do mundo impedia.

Hoje temos que voltar à nossa própria essência para refundar um humanismo mínimo. Quer dizer, colocar como marcos orientadores de nossa existência e coexistência neste planeta o cuidado de uns para com os outros e para com a comunidade de vida, o amor como a maior força congregadora e humanizadora de todas as relações, desentranhar de nosso interior nossa potência de cooperação e de solidariedade especialmente para com os que ficaram para trás, uma opção coletiva pela corresponsabilidade pelo destino comum, e, por fim, abrirmo-nos àquela Energia poderosa e amorosa de intuímos em nosso íntimo como razão e sustentáculo de toda a realidade. Podemos dar-lhe mil nomes ou nenhum.

As religiões chamam-na de Deus, os cosmólogos de abismo alimentador de todos os seres, ou o que prefiro, “aquele Ser que faz ser todos os seres”. Esqueçamos os nomes e concentremo-nos nessa Energia Inteligente e Suprema que sustenta e subjaz a todos os seres e fenômenos. É uma visão humano-espiritual das coisas.

Sobre estes pressupostos poderemos fundar um humanismo mínimo, pelo qual todos se reconhecerão como companheiros na mesma caminhada neste planeta e como irmãos e irmãs de todos as coisas (pois temos a mesma base genética) e uns dos outros. Para sermos realistas, o dado sim-bólico e dia-bólico estará presente, mas sob a regência do sim-bólico.

Desta forma construiremos uma convivência humana na qual não será tão difícil a acolhida de uns e de outros e na qual poderá florescer a solidariedade essencial, a cooperação e o amor “que move o céu, todas as estrelas” e os nossos corações. Ou daremos este passo ou nos devoraremos uns aos outros.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Terra madura: uma teologia da vida (Planeta).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Gilberto Maringoni Bento Prado Jr. João Carlos Salles Claudio Katz Paulo Fernandes Silveira Eduardo Borges Ari Marcelo Solon Everaldo de Oliveira Andrade Matheus Silveira de Souza Henri Acselrad Michel Goulart da Silva João Adolfo Hansen Michael Roberts João Carlos Loebens Jean Marc Von Der Weid Heraldo Campos Bruno Fabricio Alcebino da Silva Leonardo Avritzer Remy José Fontana Eleutério F. S. Prado Luís Fernando Vitagliano Atilio A. Boron Vanderlei Tenório Paulo Martins Mário Maestri Flávio R. Kothe José Geraldo Couto Luiz Roberto Alves Ricardo Musse Samuel Kilsztajn Dennis Oliveira Carlos Tautz Daniel Brazil Igor Felippe Santos Renato Dagnino Marilena Chauí Luiz Eduardo Soares Fernão Pessoa Ramos Marcelo Módolo Marcus Ianoni Tadeu Valadares Vinício Carrilho Martinez Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Costa Érico Andrade Otaviano Helene Afrânio Catani André Singer José Costa Júnior Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Marcos Silva Luciano Nascimento Celso Frederico Walnice Nogueira Galvão Flávio Aguiar Bernardo Ricupero Jorge Branco Berenice Bento Sandra Bitencourt Rafael R. Ioris Annateresa Fabris Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Sacramento Carla Teixeira Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser Gabriel Cohn Maria Rita Kehl Rodrigo de Faria Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Eleonora Albano Marcelo Guimarães Lima Denilson Cordeiro Manchetômetro Boaventura de Sousa Santos Luiz Werneck Vianna Yuri Martins-Fontes Alexandre de Lima Castro Tranjan Armando Boito Chico Whitaker Juarez Guimarães Liszt Vieira Ronaldo Tadeu de Souza Airton Paschoa Francisco Fernandes Ladeira Manuel Domingos Neto Marcos Aurélio da Silva Ricardo Antunes Milton Pinheiro Thomas Piketty Andrés del Río Alexandre Aragão de Albuquerque Ronald León Núñez Paulo Sérgio Pinheiro Michael Löwy Ricardo Abramovay Paulo Capel Narvai Rubens Pinto Lyra Benicio Viero Schmidt Lorenzo Vitral Vladimir Safatle Luis Felipe Miguel Kátia Gerab Baggio Luiz Bernardo Pericás Marjorie C. Marona Tales Ab'Sáber Bruno Machado Sergio Amadeu da Silveira João Sette Whitaker Ferreira Osvaldo Coggiola Dênis de Moraes Slavoj Žižek Elias Jabbour João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho Eliziário Andrade Valerio Arcary Daniel Afonso da Silva José Raimundo Trindade Fábio Konder Comparato Andrew Korybko Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Luís Fiori Celso Favaretto Luiz Renato Martins Jorge Luiz Souto Maior Leonardo Boff Mariarosaria Fabris Lincoln Secco José Machado Moita Neto Antonio Martins Gilberto Lopes Valerio Arcary Julian Rodrigues André Márcio Neves Soares Antonino Infranca Ladislau Dowbor Lucas Fiaschetti Estevez João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Anselm Jappe José Micaelson Lacerda Morais Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Pereira de Farias Chico Alencar Tarso Genro Henry Burnett Caio Bugiato José Dirceu Jean Pierre Chauvin João Feres Júnior

NOVAS PUBLICAÇÕES