A formação crítica

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), sem título (tempo_dinheiro), 1988.
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Por LUIS FERNANDO VITAGLIANO*

BTG e XP, exemplos de investimento em educação voltada contra a educação

Nesses tempos difíceis e complicados para nosso país em particular e até mesmo para o mundo em geral, a educação, que poderia ajudar, e muito, para que tenhamos tempos melhores tem dado sinais de esgotamento do seu modelo. A novidade mais recente nesse setor de poucas notícias animadoras é de que o Banco BTG abriu sua universidade, criou o INTELI (Instituto de Tecnologia e Liderança), neste caso, dentro do campus da USP em São Paulo. André Esteves vai investir R$ 200 milhões em instalações para 180 alunos com mensalidades em torno de R$ 5,5 mil reais – com 90 desses estudantes bolsistas pagos pelos parceiros do banco.

Em artigo no jornal GGN, Luís Nassif chama a atenção para o fato de que a Universidade de São Paulo, oriunda de recursos públicos, torna-se um espaço para que a INTELI use de projetos, professores e da produção intelectual de uma das mais importantes e consistentes instituições do país. Neste caso, a BTG quer se beneficiar do uso de recursos públicos para apoiar sua iniciativa, de modo bastante contraditório aos seus ideais, que propagam tão desavergonhadamente a independência do mercado.

Para quem tem acompanhado um pouco as noticias das grandes empresas e o setor das finanças, pode lembrar a Corretora XP investiu R$ 100 milhões para criar cinco cursos de graduação e ampliar sua pós-graduação. A “XP Educação” já contava com uma série de cursos para seus clientes, ligados a investimentos e tecnologias da educação. Agora serão selecionados 400 alunos para as primeiras turmas de cinco cursos de graduação gratuitos.

Figuras de respeito na mídia como Elio Gaspari e jornais como o Valor econômico comemoraram como seu fosse uma revolução para o setor a entrada do setor financeiro na oferta direta de cursos. Gaspari foi o primeiro a falar sobre a iniciativa do BTG e noticiou em tom de comemoração a iniciativa da XP Educação em um de seus artigos. Certamente, como os promoters e coachings gostam de colocar “o diferencial” dessas empresas no meio educacional é fazer uma formação voltada as necessidades do setor e mais especificamente de si próprias que querem um tipo específico de profissional. É meio que venda casada: vendo a educação para empregar o formado.

Já de inicio, o processo de seleção da XP foge a regra dos vestibulares. A corretora seleciona seus alunos como recruta seus traders; é um recrutamento de RH parecido com a seleção de candidatos para vaga de emprego em negócios. Tudo muito “meritocrático”: mais mercado e menos, muito menos pedagogia. Evidentemente porque a pedagogia atrapalha os negócios.

A coisa é tão escandalosa em termos formativos que ausência de debate público sobre a questão só pode ser explicada pelas circunstâncias. A situação é tão dramática que as eleições têm drenado todos os esforços do debate público e com tamanha intensidade que tudo mais parece menor. Nesse quadro esquizofrênico, pouca gente se deu o trabalho de olhar para a grade horaria, as disciplinas e as ementas dos cursos. Pois bem, se você tiver essa iniciativa vai encontrar um rol de matérias técnicas hipersofisticadas e um desprezo quase que completo pela formação humanística.

Muito bem, a pergunta é pertinente: a que interessa um gestor da XP formar gente que entende de direitos humanos? Ou ter uma visão a respeito das desigualdades no Brasil e seus efeitos perversos? Posso ser ingênuo em acreditar que esse tipo de discussão numa universidade evite a formação futura de um gestor que vai organizar uma pirâmide financeira baseada em um bitcoin qualquer e acabar com anos de economias de famílias de classe média.

Ou que esse gestor não vai simplesmente financiar empresas que não cumprem os direitos trabalhistas dos seus funcionários por chegar a conclusão que é mais viável economicamente enfrenta-los na justiça; ou, mesmo fugir a tendência de que as questões ambientais e climáticas devem ser debatidas e respeitadas e que os investimentos dos grandes fundos e que não é necessário tratar de medidas proteção ao meio ambiente para as gerações futuras.

Não há espaço no programa dessas corretoras para esse tipo de debate. Se a pessoa não formar uma consciência cidadã na Universidade que corrija nossa cultura oligárquica, onde vamos encontrar esse espaço para o processo civilizatório? Tendo a considerar que um gestor formado nas faculdades BTG, XP ou XPTÓ da Faria Lima tende a ser consciente apesar e não à partir da sua formação universitária, ou seja: veio com uma noção humanística anterior e não porque passou por uma formação na Universidade.

Todos os cursos universitários devem ter uma formação humanística. Por isso disciplinas como sociologia, filosofia e antropologia devem estar na grade de qualquer curso de nível superior. A função dessas disciplinas em cursos como administração, engenharia, ciências medicas e área da saúde etc. – até mesmo em direito ou cursos aplicados na própria área de humanidades é discutir a relação entre a técnica e a ética – é dar entendimento da sociedade em que vivemos, não discutir somente os fins daquele curso, mas também os meios e as responsabilidades de uma profissão que tem limites técnicos claros dados pela execução material e também devem ter limites éticos definidos pelo comportamento profissional e responsabilidade com questões sociais, econômicas, ambientais e de princípios ligados a cidadania e aos direitos humanos. Não nos esquecemos que o titulo máximo universitário é o PhD (Philosophys Doctor), qualquer doutor deve ser também autoridade filosófica nas questões que domina, são os fins e os meios éticos pelos quais qualquer conhecimento se direciona.

Hoje a grande maioria das Universidades privadas, para competir em preço, tirou as matérias humanísticas da grade presencial. As universidades públicas estão cada vez mais se desfalecendo com grades envelhecidas e dispersas. É fácil ver o desprezo que os grandes cursos de Direito e Administração, por exemplo, tem com as disciplinas de antropologia. Todas relegadas a presenças marginais na formação dos estudantes, e quando não são disciplinas remotas, estão em espaços marginais e diminuídos da formação sem a menor atenção dos alunos. O resultado direito desse processo que vem se intensificando e degenerando a formação geral dos estudantes é que nós, enquanto sociedade, estamos nos tornando boçais.

Reparem que no seguimento de ensino superior, Bolsonaro lidera a corrida presidencial, como aponta a ultima pesquisa QUAEST, com 37% das intenções de votos nesse segmento. Como pode um fascista, violador dos direitos sociais, defensor da tortura ser valorizado por parte significativa das pessoas que tiveram uma formação universitária nesse país? A única explicação é que não importa aos universitários que um presidente da república seja critico a democracia, aos direitos humanos e defenda a tortura. Neste caso, o problema não está exatamente nas pessoas, mas nos valores que decidem considerar. E isso é um problema de formação

O pilar central da nossa cidadania a partir das revoluções burguesas é a igualdade de direito e o fato de que, no Brasil, Jair Bolsonaro lidera as sondagens de ensino superior é um sintoma decisivo para diagnosticar a falência do ensino universitário no Brasil.

O fato de pessoas com diploma universitário não terem noção civilizatória demonstra que o ensino superior brasileiro virou apenas um reforço técnico profissional.

A ideia de Universidade que se sustenta na era moderna representa a proposta de formação complexa humanística e imprime no estudante a solidez intelectual em sua profissão. O projeto era justamente para evitar que profissionais qualificados contribuíssem para a corrosão da civilização; como por exemplo, evitar que engenheiros colaborassem na construção de Auschwitz e que deixem de fazer coisas execráveis do ponto de vista civilizatório mesmo que tenham a capacidade técnica de executar. Um exemplo dessa formação critica é o físico soviético Andrei Sakharov, que construiu a bomba de hidrogênio para a URSS e que depois se tornou um ativista pelos direitos humanos e contra a corrida atômica da Guerra Fria, que acabou contemplado com o Premio Nobel da Paz de 1975.

Talvez por desconhecimento pedagógico, talvez por maledicência mesmo (não é possível precisar o motivo), mas de fato e concretamente, o que BTG, a XP e outras iniciativas corporativas se propõe a fazer é formar novos fascistas, desde que eles encham os bolsos dos seus negócios. Alias, convenhamos: formar aquele burocrata que Hannah Arendt retrata muito bem em seu livro Eichmann em Jerusalem é muito melhor para as elites financeiras desse país. Menos trabalho para convencê-los a fazer as crueldades necessárias para manter seus privilégios. Só é preciso ressaltar que, quando dizem: “os ignorantes não sabem votar”, é preciso lembra-los de quem são os ignorantes: saber fazer uma conta, construir um edifício, efetuar cálculos diferenciais ou gerir um projeto não torna ninguém sábio ou intelectual; nas condições do ensino superior brasileiro de hoje, é apenas ignorante de várias formas.

*Luis Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.

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