A pauta da campanha presidencial

Imagem: Ali Yılmaz
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Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Neste ano a esquerda tem um cenário muito melhor do que em 2018

Nesta terça-feira (16/8), começou oficialmente o processo eleitoral no qual os brasileiros irão às urnas para escolher deputados estaduais, governadores, deputados federais, senadores e presidente da República. Sem dúvida alguma, o último dos cargos citados na frase anterior é o mais cobiçado e que desperta maior interesse nos eleitores. Geralmente, a campanha presidencial é caracterizada por uma determinada pauta, que indicará o que será debatido pelos principais candidatos e, em última instância, pode definir os votos dos eleitores.

Nos pleitos marcados pela polarização PT/PSDB, sobretudo após os dois governos Lula (2003-2010), a pauta da vez girava em torno da maior ou menor atuação do Estado. Na época, falar em reduzir políticas sociais ou a oferta de serviços públicos era quase um “suicídio político”. Desse modo, candidatos tucanos faziam o possível para escamotear as privatizações do malfadado período FHC (1995-2002).

De forma capciosa, equipes de campanha do PSDB até tentavam desviar o foco de pautas econômicas (ligadas às necessidades materiais das pessoas) para pautas morais – como, por exemplo, associar o PT ao aborto. Porém, o eleitor queria mesmo era saber sobre o custo de vida, se teria emprego, comida na mesa ou acesso a serviços públicos. Não por acaso, o PT só deixou o governo federal em 2016 pela via golpista, pois, enquanto as pautas ligadas às necessidades materiais das pessoas dominassem os debates políticos, dificilmente a direita (com seu projeto neoliberal de terra arrasada) retornaria ao poder pela via eleitoral.

Já na atípica eleição presidencial de 2018 – num cenário pós-golpe e com a (suposta) campanha de combate a corrupção da Operação Lava Jato em seu auge – as pautas econômicas cederam lugar às pautas dos costumes (um terreno fértil para as aspirações políticas da então ascendente extrema direita). Assim, ao invés do debate de propostas para demandas históricas do povo brasileiro – como emprego, renda, saúde e educação – discutiram-se questões morais e fake news, como o chamado “kit gay” (suposto material didático proposto pelo PT para “ensinar homossexualidade” aos estudantes brasileiros).

Evidentemente, seria reducionista creditar o êxito eleitoral de Jair Bolsonaro às fake news, haja vista que o principal motivo para isso foi o impedimento da candidatura Lula, a favorita da população. No entanto, é inegável que direcionar o debate público para a pauta dos costumes, num país religioso, conservador e moralista como o Brasil, foi fundamental para que a extrema direita chegasse ao poder.

Além disso, é importante frisar que ações malsucedidas da esquerda – como o movimento “Ele não” (organizado por mulheres contra a misógina candidatura Jair Bolsonaro) – apesar de aparentemente bem-intencionados, funcionaram como espécies de Cavalos de Troia, pois deram ainda mais “argumentos” para as fake news da extrema direita e seus intuitos de assustar o “cidadão de bem” ao associar a então chapa de esquerda (Fernando Haddad/Manuela d’Ávila) a comportamentos promíscuos, que afrontam os valores morais da tradicional família brasileira. Também nessa época, com o sucesso do projeto de demonização do Estado impulsionado pela mídia hegemônica, foi possível fazer com que a (impopular) agenda neoliberal soasse de forma positiva (o que foi traduzido no nefasto slogan: “liberal na economia, conservador nos costumes”).

Dito isso, uma questão se torna inevitável: a pauta dos costumes também dará a tônica da atual campanha presidencial? Apesar de ainda estarmos no início dessa jornada, acredito que a resposta para esta importante pergunta seja negativa. Por dois motivos.

O primeiro motivo está relacionado à própria situação econômica do país. Se as condições de vida da maioria da população já eram ruins no último processo eleitoral (sob o governo interino de Michel Temer), pioraram ainda mais nos obscuros anos bolsonaristas. Com uma gestão desastrosa em relação à pandemia da Covid-19, volta do Brasil ao mapa da fome, inflação e desemprego em alta, fica difícil, até para o maior moralista, não pensar em questões econômicas. Por mais que a extrema direita tente associar Lula a “crenças religiosas das trevas” ou espalhe fake news dizendo que o PT vai ensinar a população a como usar crack, o povão quer saber se poderá comer carne ou se terá emprego e renda.

Diferentemente de 2018, quando boa parte do eleitorado não compreendia que Jair Bolsonaro, por meio de seu “Posto Ipiranga” e fiador Paulo Guedes, era a continuação da política neoliberal de Michel Temer, hoje é impossível desassociar o presidente do caos econômico que vivemos. Portanto, questões morais tendem a ter menor peso no voto do eleitor médio.

O segundo motivo para que as pautas econômicas sobreponham-se às pautas comportamentais está relacionado às características da principal candidatura da esquerda. Diferentemente de Fernando Haddad e Manuela d’Ávila – elementos típicos da classe média – Lula tem origem pobre. Conhece as reais demandas do povo.

Como sabemos, a presença de Manuela d’Ávila como vice direcionou a chapa petista para enfatizar temáticas abstratas e identitárias, como empoderamento feminino, lugar de falar e linguagem não-binária. Este tipo de discurso (que não raro flerta com o “neoliberalismo progressista”) tem bastante adesão em determinados nichos universitários, que vivem em bolhas acadêmicas, alienadas da realidade social. Porém não dialoga com o grosso da população, que, por força das circunstâncias, está interessada em soluções concretas para seus problemas. Não por acaso, essa esquerda de caráter pequeno-burguês, com sua linguagem hermética, tem contribuído substancialmente para jogar a população pobre nos braços da extrema direita.

Por outro lado, Lula, conforme dito, conhece a linguagem popular. Com suas metáforas futebolísticas ou relacionadas ao cotidiano, traduz para o povão questões complexas da política. Em seus discursos, foca no que realmente interessa ao trabalhador: a melhoria de suas condições concretas de vida. Sendo um candidato experiente, com cinco eleições no currículo, o ex-presidente dificilmente cairá nas armadilhas discursivas da extrema direita para que ele adote certos posicionamentos que lhe tirem votos do eleitor mais conservador.

Em suma, pelo menos sob o ponto de vista eleitoral, neste ano a esquerda tem um cenário muito mais auspicioso do que em 2018 (inclusive corroborado pelas pesquisas de intenção de voto). Se vai vencer ou não a eleição presidencial (e espero que vença), aí já é outra questão.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (Ed. CRV).

 

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