O Jesus brasileiro

Imagem Lucia Barreiros Silva:
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Se Jesus nascesse no Brasil de hoje, seria crucificado pelos “cidadãos de bem”

Em qualquer país minimamente democrático, religião é uma questão restrita ao âmbito privado. Ou seja, cada um exerce de forma livre sua crença, porém não tenta impor sua religião para a coletividade; tampouco deseja que os preceitos constitucionais sejam baseados em algum livro considerado “sagrado”.

No entanto, infelizmente, isso não acontece no Brasil. E o que é pior, em nosso país, aqueles indivíduos que mais defendem a mistura entre política e religião – os autointitulados “cidadãos de bem” – na prática, apresentam posturas totalmente diferentes daquele que dizem seguir: no caso, Jesus.

Sendo assim, neste texto, faço um breve exercício imaginativo sobre o que ocorreria se Jesus vivesse no Brasil contemporâneo, a partir do conteúdo presente na Bíblia, livro sagrado do cristianismo.

De acordo com as chamadas Escrituras, Jesus, filho de uma família pobre, nasceu num estábulo, lugar onde eram guardados animais. Portanto, por analogia, se o Messias voltasse em alguma grande metrópole brasileira, muito provavelmente teria nascido em uma favela; seu tom de pele seria escuro. Evidentemente, não pertenceria a nenhum clã que reside em área nobre. Isso significa que, só por sua condição de nascença, ele já seria odiado pelo “cidadão de bem”, que o consideraria o estereótipo do bandido.

Assim como os soldados romanos perseguiam o “Jesus judeu”, sua versão tupiniquim constantemente seria abordada pela polícia; não por cometer um “crime”, mas por sua cor e origem. Ele também teria dificuldades para dar um rolezinho no shopping com seus amigos: ou levaria uma “geral” da PM, ou seria alvo de olhares recriminatórios por parte do “cidadão bem” (afinal de contas, estaria frequentando um “lugar” que não é para “gente de sua laia”).

O “Jesus brasileiro” provocaria a ira de alguns pastores evangélicos de sua comunidade (que, assim como seus congêneres, os vendilhões do Templo de Jerusalém, utilizam-se da fé alheia para enriquecimento pessoal). Como todo pacifista, certamente ele não frequentaria cultos onde as pessoas fazem “arminhas com as mãos”. Definitivamente, não seria eleitor do “mito”.

Suas ideias de “igualdade social” fariam com que o “Jesus brasileiro” fosse rotulado como “comunista” e “esquerdopata” pelo “cidadão de bem”. Frases como “é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” ou “se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres”, soariam para o “cidadão de bem” como coisa de invejoso, “preconceito contra rico” e incentivo a ociosidade do pobre.

De acordo com a Bíblia, Jesus andava com os marginalizados de seu tempo, o que hoje entendemos por “minorias sociais”. Consequentemente, por não discriminar pretos, pobres, prostitutas e homossexuais, o “Jesus brasileiro” seria caluniado por defender “ideologia de gênero” em grupos de WhatsApp bolsonarista.

Conforme uma conhecida passagem bíblica – a “Perícopa da Adúltera” – Jesus impediu o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério, ocasião em que proferiu a emblemática frase: “Quem dentre vós não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Uma atitude similar, hoje, valeria a acusação de “defensor de bandido” por parte do “cidadão de bem”. Nessa mesma linha, se o “Jesus brasileiro” perdoasse ladrões, como feito há dois milênios, estaria “passando pano para bandido”, como gosta de dizer o “cidadão de bem”.

Aliás, por contestar o status quo e pertencer ao setor marginalizado da população, o próprio “Jesus brasileiro”, tal como ocorrera na antiga Judeia, seria considerado “bandido”. Mas sua vida, igual a de outros milhões de pobres e pretos, não importaria, seria “só mais um Silva que a estrela não brilha”. Afinal de contas, como diz o principal mantra do “cidadão de bem”: “bandido bom, é bandido morto”.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • O caso Sílvio Almeidasilvio almeida 4 11/09/2024 Por ANDRÉ RICARDO DIAS: Considerações sobre a idealização reificada do negro pelo discurso identitário
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES