O “conservadorismo evolucionista”

Adrian Wiszniewski, O pesadelo do escultor, 1986
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Por LUIZ AUGUSTO ESTRELLA FARIA*

Os objetivos nacionais se reduzem à reafirmação de um neoliberalismo mofado e ao alinhamento automático e acrítico com o “ocidente” liderado pelos EUA

O destino que dirigiu o voto dos brasileiros em 2018 fez com que a maior crise da história viesse ocorrer justamente sob o pior governo já havido. Diz-se que as grandes tragédias revelam a índole das sociedades e, também, o caráter dos homens. Foi o que se viu durante a pandemia, quando a população foi abandonada ao contágio e à morte. Se não fora a organização descentralizada do SUS, que deu recursos para a ação de prefeitos e governadores no cuidado e na vacinação, teríamos um resultado ainda mais trágico. Mesmo assim, a mortalidade no Brasil foi mais de três vezes maior do que a média mundial, o que nos pôs diante do horror que foram as mais de 400 mil mortes que poderiam ter sido evitadas.

O pernicioso desse desgoverno não se resumiu à terra arrasada na saúde. A educação, maior estrutura do serviço público no Brasil, foi outra área vitimada pelo projeto destruidor do fascismo bolsonarista. Além da radical redução de verbas, uma verdadeira guerra ideológica contra professores e saberes científicos e culturais foi travada desde o ministério, fazendo uso do assédio moral, da modificação de currículos e do abandono administrativo. O mesmo ocorreu com relação à cultura e à ciência e tecnologia. O espelho dessa política de destruição é o grotesco das figuras escolhidas para seus postos dirigentes.

Meio-ambiente e segurança pública são áreas em que o movimento se deu na exata contramão do que deveria ser: o exultante incentivo às queimadas e à devastação e o estímulo à violência. O desmonte de estruturas, de programas e políticas e o aparelhamento dos mecanismos de coordenação e controle por cúmplices da criminalidade foram desde 2019 a realidade nesses e em quase todos os organismos responsáveis por esses serviços públicos. E a respeito das políticas que deveriam ser afirmativas em relação às mulheres, negros, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+ e demais grupos discriminados e vulneráveis, a orientação que vem do governo é reforçar a perseguição e a exclusão.

Tudo se assemelha a uma ação esdrúxula de aventureiros que se aproveitaram das circunstâncias de descrédito da política criadas pela Lava-jato. Entretanto, houve organização e premeditação. Um movimento em três frentes dirigido pela liderança empresarial exercida pelos gurus das finanças, pelas lideranças dos ruralistas com sua tradição política à direita e pela cúpula militar organizada pelo general Vilas Boas, vinha se desenvolvendo desde 2014. Sua motivação foi a inconformidade com a vitória eleitoral que deu um segundo mandato a Dilma Rousseff.

A primeira frente buscava uma verdadeira vingança contra os avanços das políticas para os mais pobres, que haviam resultado na ampliação da parcela do trabalho na renda nacional e na decorrente redução da taxa de lucro. Apoiou o impeachment e o governo Temer e suas reformas trabalhista, da previdência, seu teto de gasto e suas privatizações. Essas iniciativas, secundadas pela crise econômica iniciada em 2015 e seu efeito mais deletério, o desemprego, alcançaram, de fato, a redução da participação dos salários no produto e, em decorrência, elevaram a lucratividade dos negócios.

A segunda frente, composta pelos dirigentes do chamado agronegócio, a cavaleiro do poder vindo de seu ativismo político secular, ganhou protagonismo ainda maior com seu recente empoderamento econômico, na medida em que a agropecuária de exportação foi o único setor poupado pela crise. Sua inconformidade com os avanços sociais dos trabalhadores do campo e domésticos, que tiveram as normas da CLT estendidas a seus contratos de trabalho, motivou uma postura ferrenhamente oposta aos governos do PT. Mesmo que estes continuassem recebendo proteção e transferências de renda das políticas agrícolas federais, a tradição escravista e racista de sua forma de pensar aguçava a intolerância com o que percebiam como uma inaceitável ascensão da “gente baixa”.

Já os militares, que compõem a terceira frente, estavam há algum tempo conspirando e se organizando em um verdadeiro partido, dirigido por coronéis e generais formados em meados dos anos 1970, que tinha em vistas um retorno à direção do Estado brasileiro. Jair Bolsonaro surge, então, como um trunfo seu. O leitor não deve esquecer que o capitão jogado para fora das fileiras foi colega desse grupo na academia, formado em 1977. Em 2014, o então deputado foi personagem central na cerimônia da espada da turma de aspirantes daquele ano na Academia das Agulhas Negras. Vilas Boas já estava, então, no alto comando, e viria a assumir a chefia da força em 2015.

Os três grupos convergem na eleição de 2018 para patrocinar o candidato de extrema direita. Quais seus objetivos para além da vingança contra os trabalhadores e da revogação dos direitos afirmados pela promessa de inclusão da Constituição de 1988? É então que surge o personagem Paulo Guedes, quem teria o mapa do caminho para o Brasil. Para além de suas limitações de formação e conhecimento da economia brasileira, o ministro que se gaba de ter lido Keynes em inglês também só tem a oferecer desfazimentos e nenhum projeto, revelando em suas ações o quão pouco assimilou das ideias daquele autor. Cortar, vender, revogar, extinguir, liquidar são os únicos verbos conjugados em sua gestão.

Essa figura que chega a ser risível em sua bazófia de sabe-tudo é bem adequada aos burgueses que representa, onde a figura ridícula do dono da Havan não deixa de ser representativa da arrogância inculta de seus iguais de classe, encantados pela cafonice de Miami e que detestam o seu povo, em quem só enxergam a força de trabalho a ser explorada. Sua humanidade, sua cultura, ideias e aspirações não merecem nenhuma consideração. A boçalidade do capitão é a mesma sua, em que pese alguma dose de descrição na tentativa de esconder seus preconceitos mais grosseiros.

O partido militar revelou um pouco tardiamente suas ideias em um documento assinado por entidades vinculadas a oficiais da reserva como o instituto que leva o nome de Vilas Boas. O pretencioso plano para um Brasil em 2035 está embasado em uma reiteração de preconceitos contra uma parte do povo brasileiro de quem eles não gostam, os indígenas; as feministas e as alteridades de gênero representadas na sigla LGBTQIA+; os pequenos agricultores e os trabalhadores organizados em sindicatos e movimentos sociais; os intelectuais e os professores de esquerda. Seus membros têm um ponto de vista nazista de um povo uniforme e homogêneo e uma perspectiva eugênica de eliminar toda a diferença.

Um conceito tão fantasioso quanto a raça ariana de Hitler quer fazer do povo brasileiro uma estirpe uniforme espelhada num macho de classe média, egoísta, conservador, branco e cristão. Nada mais distinto dos brasileiros, majoritariamente mulheres, trabalhadoras, sem preconceitos, generosas, pretas e pobres.

As três frentes se identificam em maior ou menor grau com as ideias da extrema direita norte-americana, lá chamada alt-right, e aqui apelidada de “conservadorismo evolucionista”. Esta é uma geleia ideológica contraditória que une um sentimento antiestado radicalizado que quer transformar tudo em mercadoria e uma pregação antiglobalização reproduzindo o absurdo nazista da conspiração de magnatas e comunistas contra as tradições e a liberdade. Sua única novidade é que desta vez os judeus foram poupados.

Nesse delírio sem pé nem cabeça os objetivos nacionais se reduzem à reafirmação de um neoliberalismo mofado e ao alinhamento automático e acrítico com o “ocidente” liderado pelos EUA. Soberania, desenvolvimento independente e interesse nacional são valores que não têm. Os aplausos à ação deletéria da Lava-jato que destruiu a engenharia nacional e suas grandes empresas além de causar um prejuízo bilionário à Petrobras são testemunho dessa visão que não dá nenhum valor à ideia de se construir uma estrutura econômica dinâmica para dar conta das necessidades do povo brasileiro.

Assim como ocorreu com o nazifascismo à sua época, o apoio que o movimento bolsonarista recebe de uma parcela da população majoritariamente da classe média nasceu de pulsões inconscientes mobilizando afetos recalcados, preconceitos contra o diferente, considerado ameaça a uma tradição perdida na história, mas que é evocada como a chave da felicidade para uma nação imaginária formada por princípios atribuídos fantasiosamente a uma identidade pregressa.

Os nazistas precisavam de um “espaço vital” (lebensraum) a ser conquistado principalmente dos eslavos e amanhado pelos povos inferiores escravizados. Já o espaço a ser apropriado pelos extremistas brasileiros não é o geográfico, mas o lugar da política, o Estado e suas instituições, de onde devem ser alijados todos os que não comunguem de sua ideologia de extrema-direita.

Disso resulta a completa inutilidade de propor políticas que possam oferecer uma vida melhor a mais de 90% da população que não é proprietária de capital e que ofereça alguma forma de compensação ou cuidado a essa grande maioria de carentes de quase tudo. Os brasileiros têm necessidades insatisfeitas de toda a ordem.

Entretanto, se falta educação, o governo combate os educadores e retira recursos dessa atividade. Se falta saúde, o governo persegue enfermeiros, auxiliares e médicos e corta recursos do SUS. Se falta comida, o governo termina com o programa Mais Alimentos, desfinancia a agricultura familiar e reduz o vale-alimentação. As queimadas se ampliam e o governo acaba com o monitoramento e a fiscalização do IBAMA. Terras indígenas são invadidas e o governo desorganiza a FUNAI. Para todas essas e outras a falências de políticas públicas só se houve uma resposta, privatizar que tudo se resolve.

O resultado dessa abissal falta de iniciativa é o desgoverno, que não tem prioridades para o investimento e o gasto públicos, que não apresentou planos e projetos para superar a crise e promover o desenvolvimento. O que ficamos sabendo por absoluta ausência de qualquer formulação minimamente consistente e coerente é que fazer qualquer coisa ou nada, tanto faz. Dirigir o Estado só serve para promover negócios para amigos financistas e outros endinheirados nas privatizações e na política monetária, para facilitar a vida de desmatadores, grileiros e invasores de terras, para tornar sem efeito a política de controle de armas e de redução da violência policial, para acobertar ilícitos que vão da corrupção na execução do orçamento ao uso do Estado para satisfazer interesses particulares.

O resultado mais efetivo dessa gestão do governo federal foi, da mesma forma como fez o nazismo na Alemanha, corromper moralmente não apenas as estruturas que deveriam prestar serviços públicos, mas todo o ambiente político da Nação. Mentir, enganar, apropriar-se do dinheiro público, beneficiar-se de verbas autoatribuídas, aparelhar todos os órgãos da administração, impedir que os mecanismos de controle e auditoria funcionem, perverter a atividade policial e das forças armadas, aviltar o judiciário e as procuradorias com promessas de cargos, prebendas e verbas mal avidas e subornar legisladores e gestores com dotações do “orçamento secreto” são as únicas atividades a se desenrolarem no âmbito dessa administração. O cometimento de crimes é permanente e em sua esteira vieram malfeitos que serviram para locupletar a família Bolsonaro e seus sócios.

O que ainda há de serviço público é realizado por funcionários ciosos e que conseguem evitar as armadilhas e obstáculos postos por Jair Bolsonaro e seus aliados. Fazem parte de uma resistência que encontra eco na mobilização em oposição ao bolsonarismo tanto da disputa político partidária quanto da resistência por dentro das instituições na tentativa de impedir sua corrupção pela ação deletéria da extrema direita. Nos tribunais, nos legislativos, nas repartições da administração pública e nas ruas de todo o país está em curso um duro combate pela preservação de direitos, em boa parcela ainda tão pouco efetivos, e da própria liberdade.

Direitos e liberdade que não têm nada a ver com a obtusa interpretação sobre a autorização para fazer o que se queira. A democracia, que é o outro nome da liberdade, se traduz em igualdade e autodeterminação, o autogoverno de todos sem nenhuma distinção. Dizendo de outra maneira, é oportunidade de participar das decisões que influenciam e definem a vida em sociedade.  Desta luta tão árdua dependerá a sorte de nossa república e o destino do Brasil no futuro que se aproxima.

*Luiz Augusto Estrella Faria é professor titular de economia e relações internacionais da UFRGS. Autor, entre outros livros, de A Chave do tamanho: desenvolvimento econômico e perspectivas do Mercosul (Ed. UFRGS).

 

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