A beleza da democracia

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Considerações sobre as pesquisas e a democracia das urnas

Na tensa véspera do primeiro turno da eleição de 2022, é necessário recorrer ao apoio emocional dos companheiros, para combater a insônia e a depressão. São provocadas pelas notícias de ataques à mão armada por parte de intolerantes com as diferenças ou divergências políticas. Nesse sentido, o humor é fundamental.

Contra a contínua, quase diária, divulgação de pesquisas com base científica, um sujeito ignorante anuncia não aceitar sua derrota esperada na apuração dos votos por conta de sua amostra… visual! Argumenta: em todos os comícios dele, vê muitos apoiadores…

O defensor do “Datapovo” questiona: “o Datafolha entrevistou 6.754 eleitores em todo o Brasil, distribuídas em 343 municípios, mas o Brasil tem mais de 5.600!” Em resposta, foi lhe sugerido: “quando você for fazer seu próximo exame de sangue, pede para tirar todo seu sangue…”.

Análise de pesquisa eleitoral exige certa sutileza quanto às sobreposições dos dados. Por exemplo, na ânsia pela reeleição (e imunidade investigativa), ele lidera a rejeição entre os candidatos à Presidência da República: 52% não votariam de jeito nenhum no atual presidente, indica o Datafolha de 22 de setembro de 2022.

Alguém pode alegar o índice de rejeição do ex-presidente Lula (39%) ser mais alto frente a rejeição do terceiro colocado (24%) e da quarta (15%). Ora, Lula, é o único a conseguir ter saldo positivo na diferença intenção – rejeição: 45% a 38% ou +7 pontos percentuais.

Todos os demais candidatos estão com déficit de eleitores. O mais rejeitado é votado por 33%, mas tem uma rejeição de 53%. Dado seu déficit de -20 pontos percentuais, falta-lhe pelo menos um décimo dos 156 milhões de eleitores (+1) deixar de o rejeitar e passar o admirar. Difícil, né?

Entretanto, Ciro Gomes, proporcionalmente, tem o pior déficit. Sua rejeição (24%) é quatro vezes sua intenção de voto (6%): – 18 pp. Mesmo Simone Tebet tem o triplo de rejeição (15%) em relação à intenção de votos (5%): – 10 pp.

O IPEC (ex-IBOPE) realizou uma pesquisa, há cerca de um ano (de 16 a 20 de setembro de 2021), para identificar a intenção de voto de alguns dos possíveis candidatos ao próximo pleito presidencial e monitorar a avaliação da administração do Governo Federal. O modelo de amostragem utilizado foi o de conglomerados em 3 estágios.

No primeiro estágio, os municípios foram selecionados, probabilisticamente, através do método PPT (Probabilidade Proporcional ao Tamanho), com base na população de 16 anos ou mais de cada município. No segundo estágio, foram selecionados os conglomerados: setores censitários. Finalmente, no terceiro estágio, foi selecionado em cada conglomerado um número fixo de habitantes segundo cotas de variáveis: sexo, faixas etárias, instrução, raça/cor, atividade. As fontes de dados para elaboração da amostra foram o Censo 2010 e a PNADC 2019.

Repare não terem sido selecionadas cotas em faixas de renda, religião e preferência partidária. Esta última só é considerada pelo Datafolha. E a primeira (renda) só a Quaest a considera, para escolha das cotas de entrevistas residenciais, embora subestimando a proporção abaixo de 2 salários-mínimos: 38%. O Datafolha deduz haver 51% nessa faixa de renda, considerando os eleitores entrevistados em cotas de sexo e idade nos pontos de fluxo sorteados.

Na citada pesquisa de um ano atrás, o IPEC perguntou se, independente da sua intenção de voto para presidente, o entrevistado achava: Lula deveria ser eleito (45% apoiaram), o atual presidente deveria ser reeleito (só 19%), outro deveria ser eleito (31%). Isso animou a chamada Terceira Via, mas ela deveria ter um único candidato e ele só atacar o mais rejeitado para chegar ao segundo turno.

Infelizmente, o personalismo do “dono-da-verdade” e “salvador-da-pátria”, só contra a maioria dos eleitores e partidos, acabou tornando sua campanha uma comédia de erros. Justifica, então, o voto útil ser racional por parte dos seus antes potenciais eleitores.

Essas “sutilezas” metodológicas de sobreposições causam espanto em leigos. Por exemplo, a pesquisa eleitoral mostra Lula com preferência majoritária entre quem avalia negativamente a atual gestão governamental (80%); entre os habitantes do Nordeste (62%); entre as famílias com renda mensal de um salário-mínimo (57%); em residências onde ao menos uma pessoa receba auxílio do governo federal (55%); entre pessoas com ensino fundamental (55%); entre católicos (54%); entre quem não é católico nem evangélico ou não tem religião (56%); entre pretos e pardos (51%); entre habitantes em municípios com até 50 mil habitantes (52%); entre as mulheres (51%), na comparação com homens (45%).

No Perfil da Amostra, são majoritários justamente esses eleitores: femininos (52%), jovens de 16 a 34 anos (34%), com ensino médio (47%), até 2 salários-mínimos (51%), na PEA (71%), pardos e pretos (55%), católicos (54%), habitantes em capitais e outras regiões metropolitanas (41%), Sudeste (43%) e Nordeste (27%), petistas (27%). São minoritários os homossexuais (3%) e os bissexuais (3%), mas esses 6% rejeitam maciçamente o intolerante “evangélico” (sic).

Este, por sua vez, só vai melhor entre quem o acha um (falso) mito, ou seja, a gestão dele ser ótima ou boa (84%); entre evangélicos (50%); entre pessoas cuja renda familiar supera 5 salários-mínimos (44%). O problema para ele é estes serem minoritários: os evangélicos sem as subdivisões somam apenas 25% e os mais ricos 12%. Outras crenças ou ateus hostilizados somam 21% do eleitorado e o rejeitam. Mais pobres (abaixo de 5 salários-mínimos) são 88% dos eleitores – e, de maneira sobreposta, o rejeitam!

Aí está a beleza da democracia eleitoral: o poder da maioria do povo pobre de impor a sua vontade sobre as dos intolerantes com a diversidade e tolerantes com a desigualdade. Contra ela, o animal humano instintivo louva apenas o poder paternal, vindo da natureza, e exercido pela proteção aos seus filhos, inclusive nos casos de malfeitos.

Pior quando, acidentalmente, ascende ao Poder Executivo. Imagina-se um detentor de poder despótico, onde cria sempre um falso antagonismo, para se associar a uma base aguerrida armada, defender “os amigos” e combater “os inimigos”.

Acima da razão, para atendimento do interesse do tirano, a lógica militar adota a divisão binária entre “fortes” e “fracos” com base na violência. Baseia-se na posse de armas para exercer a força física como poder de coerção, pressuposta ser a realidade objetiva.

No entanto, contra isso, a democracia ergue o poder ideológico, distinguindo entre sábios e ignorantes. Os sábios antes eram os sacerdotes, passaram a ser os intelectuais não negacionistas da ciência. A posse de sabedoria exerce a força das ideias como poder de coesão, para criar uma realidade consensual, de acordo com a vontade nacional.

O poder político, ao agir pelo interesse de quem é governado, ocorre apenas nas formas corretas de governo. Nas viciadas, o poder só é exercido em benefício dos governantes.

Esse poder político das ações coletivas se diferencia do poder paternal e do poder despótico por se basear no consenso democrático. Refuta o atual (des)governo, voltado apenas para os intere$$es do clã governante.

Nesta eleição brasileira, está se configurando um novo pacto para a conciliação e a coesão nacional, inclusive para a melhoria da atualmente péssima imagem internacional do país. Está sendo superado de vez o elitismo, antes característico da aliança da casta dos aristocratas governantes com a subcasta de sábios esnobes.

O próprio neoliberalismo, em defesa apenas da liberdade de mercado em lugar da defesa dos direitos da cidadania, inclusive das minorias, deverá ser ultrapassado. Assim como se espera ele levar junto, para “o lixo da história”, o fisiologismo, o nepotismo, o favoritismo, o amicismo corporativista e o armamentismo como prática governamental.

O populismo legítimo ocorre quando o povo, composto por “párias” ou exclusos socialmente, estabelece uma conexão direta com uma liderança trabalhista. Esse populismo de esquerda visa sim o atendimento de uma demanda social ampla.

É o oposto do populismo de direita, o qual adota o conservadorismo em nome do “seu povo”. O culto à personalidade do mito ignorante corresponde à tradição autoritária populista, onde o autoritarismo é a coerção imposta pela casta dos guerreiros-militares.

Em defesa da democracia, contra o golpismo militar-miliciano, até a casta dos mercadores, contumaz corruptora de todas as demais, necessita atuar, mesmo sendo em última instância a favor seus interesses comerciais privados. O isolamento internacional afetará sobre todos os negócios exteriores e, internamente, a fuga de cérebros significará um maior retrocesso educacional, científico e tecnológico do país.

Enfim, a maioria do eleitorado brasileiro não aceita mais a lógica militar, instalada mais uma vez no Palácio do Planalto, com sua violência, em busca de vingança contra adversários, transformados em inimigos. Isto não deve ser visto como coragem, nem sequer como glória. A beleza da democracia é atender à vontade dessa sábia maioria.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

 

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