Por DÊNIS DE MORAES*
Considerações sobre a trajetória artística e política do escritor nordestino
Neste 27 de outubro de 2022, completam-se 130 anos de nascimento de um clássico da literatura brasileira: o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). (Mesmo dia de outubro em que nasceu, há 77 anos, outro destacado nordestino e líder político, o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva.) O meu propósito aqui é reavaliar passagens significativas da atribulada trajetória de Graciliano, suas convicções como homem de letras e seus princípios ético-políticos como militante comunista. Um intelectual crítico que, no limite extremo do possível, buscou harmonizar “o fogo da paixão social” que o empolgava desde a juventude com as exigências do ofício literário e as complexas contingências do tempo vivido.
O intelectual no olho do furacão
O estudo das relações entre a intelectualidade, a cultura e a política no Brasil implica examinar tensões entre três quadros cíclicos: (a) contestações de escritores e artistas às estruturas hegemônicas, com diferentes estratégias e táticas de ação; (b) cooptação de segmentos da elite pensante pelas esferas de poder e os problemas daí decorrentes; (c) interferências ideológicas sobre a criação cultural e limites à liberdade de expressão. Em qualquer dos cenários, os intelectuais equilibram-se numa corda bamba entre as intenções estéticas, as posições filosóficas, a produção de conhecimentos, a crítica político-cultural e as dificuldades de sobrevivência em um país onde suas atividades prosperam em torno da universidade, do serviço público, da mídia e de apoios governamentais.
Sobretudo quando alinhado ao pensamento crítico, o trabalho intelectual insere-se na batalha das ideias pela hegemonia cultural e política. Está em questão formular, defender e difundir visões, anseios e valores que interferem na conformação do imaginário coletivo e nas escalas de valor. Compartilho da perspectiva de Edward Said segundo a qual o intelectual “é um ser dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público”.
Esse papel, segundo Edward Said, se reveste de uma “certa agudeza” na apreciação crítica das estruturas vigentes em dada formação social, “pois não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões, embaraços, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los)”. O intelectual assim percebido “é alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações e cuja raison d’être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete”.[1] Significa pôr em relevo a vocação de desvelar aparências enganosas, esquivar-se de juízos rotineiros e colocar à prova os falsos consensos, as meias verdades do poder e a retórica aprisionante da ortodoxia.
No olho do furacão das contendas ideológico-culturais, os intelectuais não escapam de dilemas e percalços. Ora veem-se enredados pelos arranjos das classes dominantes para deter uma participação popular mais intensa na vida social e neutralizar questionamentos à lógica mistificadora do mercado como instância de organização societária; ora enfrentam pressões para adequar seus propósitos a circunstâncias políticas. Sem contar os limites às vezes tênues entre a necessidade de divulgação de seus trabalhos junto a públicos mais amplos e as formas sinuosas de cooptação pela mídia conservadora. O espaço de manobra oscila entre a proximidade com o aparelho do Estado, a insubmissão à ordem estabelecida e os embaraços para conciliar produção simbólica e ideologia, ou resguardar a primeira dos ditames da segunda.
Graciliano Ramos enfrentou provações pessoais, como os absurdos dez meses e dez dias de cadeia, sem processo ou culpa formada, vítima da onda repressiva desencadeada pelo governo de Getúlio Vargas após a insurreição comunista de novembro de 1935. Apuros financeiros obrigaram o ex-preso político a aceitar trabalhos em publicações vinculadas ao mesmo governo que o perseguira, porém, sem endossar a ideologia autoritária do Estado Novo.
Com a redemocratização do país após a Segunda Guerra Mundial, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual foi recebido como uma das referências da área cultural, convivendo, porém, com incompreensões da cúpula partidária por se recusar a aderir ao chamado realismo socialista e ceder a maniqueísmos suscitados pelo mundo sombrio e bipolar da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, na segunda metade da década de 1940. Como pretendo demonstrar, tais discordâncias não afetaram a fidelidade de Graciliano Ramos ao PCB, nem alteraram suas convicções na autonomia relativa da produção literária, estética e cultural frente às conveniências políticas. Ele sempre acreditou que as especificidades do trabalho criativo precisam ser preservadas frente à imposição de preceitos ideológicos, embora possa refleti-los.
Tempos de cooptação
A geração de talentos artísticos de que fez parte Graciliano Ramos vivenciou contradições típicas de uma sociedade civil desorganizada e frágil, em face da qual o Estado se agigantou como sujeito das iniciativas voltadas à conservação de hegemonias. Essa debilidade da sociedade civil forçou os intelectuais, em diferentes ocasiões, até mesmo para sobreviver, a “aceitar em maior ou menor medida o seu envolvimento com o aparelho do Estado, um Estado sempre autoritário e muitas vezes ditatorial”.[2] As intensidades desse envolvimento variaram, desde a comunhão de desígnios ou a resignação cúmplice até a resistência possível ou a oposição hábil, exigindo que se verifique cada caso ou situações semelhantes, a fim de evitar as generalizações simplificadoras.
Um dos momentos cruciais de cooptação de setores da intelectualidade aconteceu durante o Estado Novo (1937-1945), período em que o Ministério da Educação era comandado por Gustavo Capanema. Graciliano Ramos foi um dos expoentes literários que aceitaram trabalhar no MEC. Antes de mencionar a sua experiência, devemos salientar o quadro de obstáculos e limitações ao pleno exercício da vida intelectual numa sociedade periférica que chegaria à década de 1950 com metade da população ainda analfabeta.
A universidade despontava (a Universidade de São Paulo fora fundada em 1934 e a Faculdade Nacional de Filosofia, em 1939), as chamadas indústrias culturais estavam longe de se estruturar e o rádio só se tornaria uma mídia de massa na segunda metade dos anos 1940. Quando um livro vendia duas ou três tiragens consecutivas de mil ou dois exemplares, a imprensa o celebrava como best-seller. Nessa moldura, era impossível viver de literatura, o que levava os escritores, via de regra, a empregos públicos, além de buscarem fonte de renda adicional e prestígio no jornalismo.
Escritores detestavam a ditadura Vargas e o fascismo, mas recebiam dos cofres públicos por serviços prestados ao Ministério da Educação. Para o governo, importava atrair competências para legitimar e conduzir projetos de modernização que garantissem o papel do Estado como organizador da cultura. A meta era cultivar mitos e tradições dentro da visão burguesa, transmitindo-os às outras classes pelo sistema escolar e pelos meios de comunicação, a fim de garantir a supremacia ideológica.
Gustavo Capanema nomeou escritores para o primeiro escalão do MEC: Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete; Augusto Meyer e Sérgio Buarque de Hollanda para o Instituto Nacional do Livro e a Biblioteca Nacional, respectivamente; Rodrigo Mello Franco de Andrade para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (concebido a partir de projeto encomendado a Mário de Andrade, que também contribuiu com o Instituto Nacional do Livro. A convite de Capanema, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa detalharam o projeto do arquiteto suíço Le Corbusier para o novo prédio do MEC no Rio de Janeiro, um clássico do modernismo arquitetônico. Cândido Portinari pintou os murais daquele edifício, em cujos jardins até hoje se encontram as esculturas de Bruno Giorgi. Também foram nomeados por Gustavo Capanema, como inspetores federais de ensino secundário, os escritores Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Murilo Mendes e Henriqueta Lisboa.
Graciliano Ramos trazia azedume na língua ao falar da situação marginal dos escritores que ingressavam no serviço público: “Como a profissão literária ainda é uma remota possibilidade, os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo público”. Com o mercado editorial restrito a capitais do Sudeste e do Sul, viver de direitos autorais era uma miragem. A obra-prima Vidas secas (1938) demorou nove anos para chegar à segunda edição.
A sua própria trajetória anterior ilustra isso. Além de prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas, numa gestão de dois anos (1928-1930) pautada por inflexível honestidade e prioridade às áreas mais carentes, ele fora alto funcionário de dois governos estaduais oligárquicos em Alagoas: presidente da Imprensa Oficial (1930-1931) e diretor da Instrução Pública, equivalente a secretário de Educação (1933-1935). Aceitara os convites por necessidades financeiras e pela ideia de que era possível servir à coletividade sem ceder ao clientelismo e à praga da corrupção. No primeiro caso, além da falência de sua loja de tecidos em Palmeira dos Índios, pesou o esgotamento emocional após dois anos como prefeito, durante os quais moralizou e modernizou a administração municipal, cortando privilégios dos “coronéis” da região, o que lhe custou forte desgaste político.
Anos depois, Graciliano Ramos enfrentou vicissitudes ao ser detido pelo Exército em Maceió, na onda de repressão que varreu o país após a malsucedida rebelião de novembro de 1935. Sua ficha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) registrava: “Suspeito de exercer atividade subversiva”. Mas ele nada tivera a ver com a rebelião e nem comunista assumido ainda o era. Foi libertado em 10 de janeiro de 1937, graças aos esforços de sua admirável mulher, Heloísa de Medeiros Ramos, junto a interlocutores do meio literário, como o editor José Olympio, com acesso ao gabinete presidencial.
Na condição de ex-preso político, Graciliano Ramos custou a arranjar emprego e não pôde, inicialmente, trazer a família para o Rio de Janeiro. Com a ajuda do amigo José Lins do Rego conseguiu as primeiras remunerações por contos e resenhas publicados na imprensa. Oito dos 13 capítulos de Vidas secas foram editados como contos em cinco jornais diferentes, apenas com os títulos alterados. Tratava-se de um artifício para ganhar o dinheiro necessário ao pagamento da conta da pensão no Catete e as despesas duplicadas com a vinda posterior de Heloísa e os filhos para o Rio de Janeiro.[3]
A partir da segunda metade dos anos 1940, Graciliano Ramos teve que trabalhar em três turnos para cobrir o orçamento familiar. Escrevia pela manhã; cumpria à tarde as tarefas como inspetor federal de ensino; e à noite, de 1947 em diante, atuava como redator do Correio da Manhã. As tormentas financeiras persistiram até a sua morte, em 20 de março de 1953, aos 60 anos, e sem dúvida contribuíram para as suas depressões e crises de alcoolismo. Em 1940, quando as contenções exigidas pela guerra também atingiram as empresas jornalísticas, extravasou o pessimismo em carta ao filho Júnio: “Nestes miseráveis tempos que atravessamos até os contos idiotas que eu fazia para O Jornal e para o Diário de Notícias foram escasseando e sumiram-se de todo. Tenho escrito uns horrores para uma revista vagabunda, mas essas misérias dão pouco trabalho e vendem-se a cem mil-réis, exatamente o preço dum conto. Uma desgraça, tudo uma desgraça”.
As agruras forçaram-no a aceitar redigir crônicas sobre tradições e costumes nordestinos e revisar textos para a revista Cultura Política, criada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Com média de 250 páginas por edição, a revista circulou de abril de 1941 a agosto de 1944. Conseguiu atrair escritores liberais e de esquerda, por três razões básicas: não se exigia alinhamento político; os artigos poderiam versar sobre temas literários e estéticos; a remuneração era compensadora, com a certeza de pagamento em dia. A sustentação doutrinária ficava por conta de intelectuais identificados com o Estado Novo, como Cassiano Ricardo, Almir de Andrade, Menotti Del Picchia, Azevedo Amaral e Francisco Campos.
Incumbido da propaganda do regime e da censura à imprensa e às artes, o DIP converteu-se em peça-chave na execução do projeto ideológico do Estado Novo. A máquina de propaganda ideológica azeitava o culto à personalidade de Getúlio Vargas e a construção da imagem do ditador como “pai dos pobres”. O dispositivo de doutrinação do DIP englobava o rádio (Voz do Brasil e Rádio Nacional), os cinejornais inspirados nos congêneres alemães e italianos, os jornais encampados pela União (A Manhã, A Noite, A Noite Ilustrada e O Estado de São Paulo) e o sistema escolar (reformulação de currículos, obrigatoriedade do ensino de moral e civismo e distribuição de milhões de cartilhas, autênticos manuais de propaganda do regime).
Além de exercer censura a matérias julgadas contrárias ao “interesse nacional”, o DIP pagava subsídios mensais às empresas jornalísticas, a título de publicidade, assegurando a distribuição de notícias favoráveis ao governo em mais de 950 veículos, entre jornais, revistas, agências de notícias e emissoras de rádio. Vargas fazia da isenção para a importação de papel de imprensa um instrumento de pressão, pois as empresas que ousassem questionar as políticas governamentais corriam risco de ficar sem a matéria-prima.
O DIP soube tirar proveito de uma fase em que as redações tinham equipes reduzidas e geralmente mal remuneradas. Enquanto a maioria das empresas jornalísticas vivia com problemas de caixa, agravados por um mercado consumidor acanhado e um volume limitado de publicidade comercial, as publicações do DIP pagavam por cinco laudas 100 mil réis (cerca de R$ 300,00), enquanto nos principais jornais o salário mensal de um bom redator não ultrapassava 800 mil réis.[4] Diante de tal quadro, não é difícil entender por que Graciliano, José Lins do Rego, Vinicius de Moraes, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Murilo Mendes, Tristão de Athayde, Cecília Meirelles, Adalgisa Nery e Cecília Meireles e tantos outros escreviam para publicações governamentais.
É indispensável assinalar que a natureza da colaboração com periódicos do DIP não se confundiu com cumplicidade ou adesismo, ainda que tenha servido, indiretamente, à legitimação do projeto unificado e conservador de educação e cultura apregoado por Vargas e executado com perícia incomum por Gustavo Capanema.
A ampla maioria dos intelectuais integrava-se à máquina estatal sem qualquer prerrogativa de definir políticas públicas, nem formulavam os discursos do regime. “Ninguém defendia o Estado Novo; eram colaborações literárias, crônicas, resenhas”, atestou o jornalista Joel Silveira.[5] Com sabedoria, Antonio Candido separou os intelectuais que “servem” dos que “se vendem”, para que não surjam juízos apressados sobre casos distintos de atuação na órbita do poder: “Conviria acentuar mais que um Carlos Drummond de Andrade “serviu” o Estado Novo como funcionário que já era antes dele, mas não alienou por isso a menor parcela da sua dignidade ou autonomia mental. Tanto assim que as suas ideias contrárias eram patentes e foi como membro do gabinete do ministro Capanema que publicou os versos políticos revolucionários de Sentimento do mundo e compôs os de A rosa do povo. (…) Outros que nem vale a pena nomear, para poderem repousar com menos infelicidade no seio de Deus, eram pura e simplesmente vendidos, sem alma nem fé”.[6]
Não se deve menosprezar a ambiguidade do próprio governo. Se desejasse dissolver os grupos esquerdistas e liberais que gravitavam em torno do ministro Gustavo Capanema, bastaria a Getúlio Vargas consultar os fichários da polícia política para exonerar toda a assessoria do MEC. Óbvio que lhe interessava uma aproximação tática com a intelectualidade progressista. De uma forma ou de outra neutralizava diatribes e garantia maior legitimidade às ações governamentais no campo cultural. A convivência dos contrários era facilitada pelo clima de abertura proporcionado por Gustavo Capanema: o acesso a seu gabinete prescindia de atestado ideológico.
Na fase em que constou da folha de pagamentos do DIP, Graciliano jamais renunciou a uma literatura de forte teor crítico. Consultando-se as crônicas de Graciliano na Cultura Política, reunidas no livro póstumo Viventes das Alagoas, constata-se a inexistência de uma frase sequer de loas ao autoritarismo ou a Vargas. Do mesmo modo, é possível comprovar a ironia corrosiva com que abordava mazelas sociais que persistiam sem solução, apesar da retórica redentora que permeava o discurso oficial.
Embora o exercício de um cargo técnico não o exima do paradoxo de ingressar num governo que o encarcerara, cabe considerar que se tratava de uma função inexpressiva, com salário modesto. Graciliano Ramos odiava o Estado Novo a ponto de cuspir no chão toda vez que alguém se referia à ditadura na roda literária da Livraria José Olympio. “É o nosso pequenino fascismo tupinambá”, praguejava. Ele nunca escondeu o profundo desconforto por revisar textos de outros autores que publicavam em Cultura Política. Aborrecia-o emendar artigos que enalteciam o Estado Novo. Mas nem todos as colaborações serviam aos desígnios do regime. O proselitismo político ocupava metade das páginas da revista; o restante era destinado à cultura, com ensaios, críticas literárias e de artes.[7]
Tinha motivos para arrepender-se de sua participação na Cultura Política? O jornalista Moacir Werneck de Castro, um dos que não foram cooptados, respondeu categoricamente: “Graciliano não tinha por que se envergonhar de ter trabalhado lá. Se você examinar atentamente o que escrevia, verificará que não havia a menor conotação política naquelas crônicas de costumes do Nordeste”.[8]
O fato de terem colaborado em Cultura Política e trabalhado nos órgãos do MEC não impediu escritores e jornalistas de se colocarem na resistência democrática e na linha de frente contra o nazi-fascismo. Em junho de 1942, 100 intelectuais – entre os quais Graciliano Ramos, Astrojildo Pereira, Samuel Wainer, Hermes Lima e Moacir Werneck de Castro – assinaram manifesto descrevendo a guerra como “nada mais do que o choque histórico decisivo entre as forças progressistas que visam ampliar e consolidar as liberdades democráticas e as forças retrógradas, empenhadas em manter e alargar no mundo inteiro os regimes de escravidão”. Nos estertores do governo Getúlio Vargas, o Primeiro Congresso dos Escritores, realizado em janeiro de 1945 em São Paulo, bradou por liberdade de expressão, anistia, eleições diretas e desenvolvimento econômico.
Tempos de engajamento e resistência
Após a derrocada do Estado Novo, boa parte da intelectualidade mergulhou de corpo e alma na política – uns na UDN, outros no Partido Socialista Brasileiro, muitos no Partido Comunista Brasileiro, que enfim ganhava direito à legalidade. A ideia de que, com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, o futuro imediato deveria ser repensado em bases igualitárias identificou-se com as propostas socialistas de justiça social. A tarefa dos escritores e artistas conscientes de seu papel social e político era produzir obras comprometidas com as causas populares, e que elevassem o nível cultural das massas.
Dessas certezas partilhavam Graciliano Ramos e os escritores Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Caio Prado Júnior, Dyonélio Machado, Octávio Brandão e Dalcídio Jurandir; os artistas plásticos Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, José Pancetti, Quirino Campofiorito, Bruno Giorgi, Abelardo da Hora e Israel Pedrosa; os jornalistas Moacir Werneck de Castro, Aydano do Couto Ferraz e Aparício Torelly; os dramaturgos Oduvaldo Vianna, Dias Gomes e Joracy Camargo; os maestros Francisco Mignone e Guerra Peixe; o pianista Arnaldo Estrela; os arquitetos Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas; os críticos de cinema Alex Viany e Walter da Silveira; os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Ruy Santos; os economistas Alberto Passos Guimarães e Ignacio Rangel; os atores Mário Lago e Eugênia Álvaro Moreyra, entre outros que aderiram ao PCB.
Carlos Nelson Coutinho acentuou que, durante décadas de escasso pluralismo, o PCB foi praticamente “a única alternativa exequível para intelectuais (e não só intelectuais) que queriam tornar politicamente eficazes o combate ao capitalismo e a opção por uma ordem social mais justa e igualitária”.[9] E na atmosfera da redemocratização, o partido era uma energia crítica em favor de mudanças sociais, a voz dissonante em um cenário político-partidário caracterizado pela hegemonia dos partidos conservadores (como os rivais PSD e UDN) sobre partidos de centro-esquerda (como o PTB e o PSB). Tanto assim que, no pleito de 3 de dezembro de 1945, os comunistas conquistaram expressiva votação em alguns estados, elegendo o senador Luiz Carlos Prestes e 14 deputados federais constituintes, entre os quais Jorge Amado e Carlos Marighella.
Meses antes, a convite de Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral, Graciliano Ramos filiara-se ao PCB. A euforia com o seu ingresso, ao lado de nomes respeitados da intelectualidade, pode ser atestada na manchete de primeira página da Tribuna Popular, porta-voz do partido, em 19 de agosto de 1945, dia seguinte ao ato de filiação: “Adere ao Partido Comunista o escritor Graciliano Ramos”. Na mesma edição, em página inteira com o título apologético “Graciliano Ramos, escritor do povo e militante do povo”, o jornal sustentava que a opção de Graciliano era prova incontestável da compatibilidade entre os princípios partidários e a liberdade de expressão: “Tal fato demonstra que os escritores se encontram à vontade dentro do partido, desenvolvem mais profundamente sua capacidade de raciocínio com a ajuda do marxismo e criam condições para a mais rica maturidade intelectual”.
Mas, nos tempestuosos anos da guerra fria, o que aguardava por esses cérebros privilegiados não seria a margem de independência intelectual que marcou a convivência ambígua com o Estado Novo, nem muito menos a convergência de princípios alardeada pela Tribuna Popular. A partir de 1947, com o agravamento do conflito entre Estados Unidos e União Soviética, as bandeiras das superpotências demarcavam o abismo entre capitalismo e socialismo. A repercussão no plano interno não tardou. O PCB foi perseguido pelo governo reacionário do marechal Eurico Gaspar Dutra e pelas forças conservadoras, que criaram, com apoio da imprensa, atmosfera favorável à suspensão do registro do partido em maio de 1947 e à cassação dos mandatos de seus parlamentares em janeiro de 1948, em sequência ao rompimento diplomático com a União Soviética. Acossados pela repressão, os comunistas abandonaram a política de frente democrática, que estimulara 200 mil filiações ao PCB entre 1945 e 1947, e passaram a pregar a via insurrecional. O resultado foi desastroso, com o partido isolando-se na opinião pública e perdendo muitos adeptos.
Enquanto Washington e seus satélites se aferraram ao anticomunismo doentio – do qual o macarthismo no front cultural foi um dos emblemas mais repugnantes –, Moscou impôs aos PCs aliados o realismo socialista como paradigma estético. Josef Stalin designou Andrei Jdanov como comissário da cultura, com a missão precípua de controlar e enquadrar a produção intelectual. O jdanovismo mutilaria a atividade criadora e a expressão artística, subordinando-a a cânones dogmáticos e empobrecendo o legado de Marx. A literatura e as artes deveriam exercer papel exclusivamente pedagógico, difundindo os esforços para a construção de um “mundo novo” e de “um homem novo” nos países socialistas. Cabia à “arte proletária e revolucionária” concorrer para o triunfo do socialismo, enaltecendo os feitos do regime e cultuando a personalidade de Stalin. Ao mesmo tempo, a arte moderna, rotulada de “burguesa, decadente e degenerada”, precisava ser combatida sem tréguas. O experimentalismo, o abstracionismo e o cosmopolitismo eram pecados capitais.[10]
Na vigência do realismo socialista, tornou-se problemático proteger as peculiaridades artísticas e estéticas diante das diretivas ideológicas. Não é de se espantar que, numa conjuntura em que o sectarismo estabelecia as regras, tenham surgido incompreensões de toda espécie. A visão de que a produção estética deveria estar atrelada à política oficial reduzia o poder de fogo do criador. O intelectual, por mais solidário que fosse às lutas sociais e às causas dos oprimidos, não poderia sufocar suas inquietações diante do mundo, nem se conformar que lhes indicassem as ferramentas de seu ofício. Na essência, o dilema da intelectualidade comunista era conseguir situar-se na zona de interseção entre o pensamento livre, as atitudes válidas de contestação e a divulgação extensiva de ideias.
Graciliano Ramos representou exceção à regra nas adesões à política cultural de Moscou, assimilada mecanicamente pelos PCs aliados. Ousou dissentir da chamada “linha justa” e o fez por rigorosa coerência: grande artista da palavra, não hesitou em defender a sua liberdade como autor.
Ele realçou as ligações dos intelectuais com as questões de seu tempo. “Não há arte fora da vida, não acredito em romance estratosférico. O escritor está dentro de tudo o que se passa, e se ele está assim, como poderia esquivar-se de influências?”, declarou a Ernesto Luiz Maia (pseudônimo do jornalista Newton Rodrigues), em entrevista publicada em maio de 1944 pela revista Renovação.[11] Em carta à irmã Marili Ramos, de 23 de novembro de 1949, escreveu: “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos”.
Graciliano Ramos debruçava-se no cotidiano de escassez das classes subalternas em meio ao processo de consolidação capitalista em um país periférico. Para ele, as análises sobre o sistema social estariam comprometidas se deixassem de apreciar fatores econômicos centrais para a hegemonia burguesa entre nós. Recriminava os romancistas que não se detinham nas imbricações entre a dimensão política e infraestrutura material. Mas não resvalava no discurso determinista do marxismo vulgar, que reduz as criações culturais a simples reflexos da base econômica.
O distanciamento da realidade traduzia, no entender de Graciliano Ramos, um tipo de literatura “que só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha, (…) acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes”. E prosseguia acusando de “insincera” a literatura “exercida por cidadãos gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tenham motivo para estar descontentes”.[12] Ao silenciar sobre as implicações de um modo de produção perverso, os escritores abriam mão de questionar a força das classes dominantes na fixação das pautas do poder e suas danosas consequências sociais e políticas.
Da infância atormentada em Pernambuco à maturidade no Rio de Janeiro, passando pelos dois profícuos anos como prefeito de Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos convivera de perto com os sofrimentos que provinham da opressão econômica. A história de vida extravasa e se mescla com a inspiração artística, relativizando as fronteiras entre experiência e escrita: “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só”.[13]
O caso de Vidas secas é eloquente. O romancista expõe o entorno de brutalidades no sertão nordestino, numa perfeita simbiose de elementos diversos: o homem, a paisagem, a terra, os bichos, a fome, a humilhação, a seca e os destinos errantes. Em carta ao escritor João Condé, em julho de 1944, esclareceu: “O que me interessa é o homem, e homem daquela região aspérrima. (…) Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e a injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense – e os meus personagens são quase selvagens –, o que ele pensa merece anotação”.
Nada há de fortuito no fato de o latifúndio, o coronelismo e os conflitos agrários terem sido retratados com fôlego interpelativo. Sua opção preferencial é denunciar as exclusões sem o travo dos preconceitos. Em carta a Cândido Portinari, de 15 de fevereiro de 1946, ele refere-se ao vínculo das obras, a sua e a do pintor, com o povo humilde dos grotões. “Você fixa na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram”.
Mas Graciliano Ramos não aceitava constrangimentos à elaboração literária. Queria proteger as palavras ameaçadas pelo apetite devorador dos preceitos ideológicos. Ele não disfarçava o desprezo pela literatura apologética. Em 1935, numa carta ao crítico mineiro Oscar Mendes, assinalou: “Acho que transformar a literatura em cartaz, em instrumento de propaganda política, é horrível. Li umas novelas russas e, francamente, não gostei. O que é certo é que não podemos, honestamente, apresentar cabras do eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois os nossos escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores rurais”.
Na entrevista a Ernesto Luiz Maia, foi taxativo ao rejeitar concessões às imposições político-ideológicas: “Eu não admito literatura de elogio. Quando uma ala política domina inteiramente, a literatura não pode viver, pelo menos até que não haja mais necessidade de coagir, o que significa liberdade outra vez. O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca”. A raiz da equação, portanto, era entrelaçar arte e ideologia, sem que uma subjugasse a outra em suas determinações essenciais.
Aos amigos, vários deles mais jovens e todos comunistas, que prestigiavam as feijoadas de domingo em sua casa, ele repetia o seu péssimo conceito sobre Jdanov: “É um cavalo!” O advogado Paulo de Freitas Mercadante, assíduo nesses encontros, registrou no diário que mantinha à época: “Graça não aceita um dirigismo ideológico, pois o escritor não deve a priori definir um objetivo. Os pressupostos que Gorki realçava são os mesmos dos grandes romancistas, independentemente de convicções políticas. A verdade deve ser o instrumento, e ao arrepio da história e de um modo concreto de vê-la, tudo é artificial”.[14]
Tais posições complicaram o relacionamento de Graciliano Ramos com o PCB, a partir do segundo semestre de 1949. O atrevimento de burlar os gabaritos acabou lhe valendo infortúnios. Seu nome sumiu da imprensa partidária por um bom tempo, e começaram a chegar ao seu conhecimento murmúrios de que aspectos de sua obra estavam sendo questionados em instâncias partidárias. Os epígonos do stalinismo acusavam-no de ter estagnado no “realismo crítico” e reprovavam os “excessos de subjetivismos” em seus romances, em detrimento de “análises objetivas e participantes”. As impugnações o amarguravam. “Eu só sei fazer o que está nos meus livros”, defendia-se. Segundo Paulo Mercadante, Graciliano Ramos respeitava a intervenção ideológica quando a produção literária trazia, como em Balzac, as circunstâncias socioeconômicas de seu tempo. Afora isso, não via razão para introduzir, no essencial dos personagens, arroubos retóricos que artificializavam os sentimentos.[15]
O pomo da discórdia foi Memórias do cárcere. Por que a antológica reconstituição do submundo dos cárceres getulistas incomodou tanto? Em primeiro lugar porque Graciliano Ramos fez restrições ao levante comunista de novembro de 1935, que serviu de pretexto para a onda repressiva desencadeada por Vargas: “uma bagunça”, “um erro político”. O insucesso da rebelião era tabu dentro do PCB. Em segundo lugar, os perfis de dirigentes presos na Frei Caneca não se coadunavam com a mitologia revolucionária. Sobre o então secretário-geral do partido, Antônio Maciel Bonfim, codinome Miranda, disparou: “Miranda sabia dizer tolices com terrível exuberância”.
Foi irônico em relação ao influente Agildo Barata: “A voz metálica de Agildo Barata nos arrepiou. Era um sujeito moreno, miúdo, insignificante, e parecia-me difícil que houvesse conseguido, preso, sublevar um regimento. A força dele se manifestava no olhar vivo e duro, na fala breve, sacudida, fria, cortante como lâmina”.[16] Graciliano Ramos não escamoteou o militarismo autoritário de ex-tenentistas que aderiram ao PCB na esteira do levante. E criticou os métodos decisórios que adotavam no coletivo de presos políticos: “Afirmativas enérgicas, lançadas por duas ou três pessoas, bastavam para fingir um julgamento coletivo”. Cumpre salientar que tais observações eram passagens contextualizadas na atmosfera humilhante de privações e arbitrariedades impostas pelo governo Getúlio Vargas aos presos políticos.
Memórias do cárcere constitui vigorosa denúncia dos métodos repressivos e desumanos do estado de exceção, bem como a sensível revelação dos laços de resistência, solidariedade e afeição que se teceram entre presos políticos em meio ao cotidiano sufocante. A reação hostil da cúpula do PCB ao livro foi injustificável. No entender de Alfredo Bosi, a despeito das estocadas de Graciliano Ramos, há no livro ausência de discussão ideológica. Graciliano Ramos não se coloca como intérprete das razões e dos desdobramentos da rebelião; limita-se, “como observador arredio e perplexo”, a criticar o voluntarismo político que cegou uma correta análise da correlação de forças, naquele momento histórico, pela cúpula comunista. “O autor simplesmente não se propôs olhar e, menos ainda, avaliar os seus companheiros enquanto sujeitos de um drama político”.[17]
Próceres do PCB quiseram ler os originais de Memórias do cárcere, mas Graciliano os repeliu: “Se eu tiver que submeter meus livros à censura, prefiro deixar de escrever”.
Tensões e contrapartidas
No quadro de contradições internas do PCB, alguns escritores e artistas estavam em desacordo com o jdanovismo, mas se mantinham fiéis à organização que, à época, era praticamente a única alternativa de esquerda. Mesmo entre os que dissentiam, velada ou nitidamente, da política cultural do partido, certas concessões eram admitidas, como, por exemplo, enaltecer a figura de Luiz Carlos Prestes, numa reedição local do culto à personalidade de Stalin.
Até Graciliano o praticou, embora de modo contido. Na edição de 1° de janeiro de 1949 da Voz Operária, dedicada às comemorações dos 50 anos de Luiz Carlos Prestes, Graciliano Ramos assinou um perfil elogioso, ainda que o tom seja muito distante da grandiloquência rasgada dos demais colaboradores. Ele sublinhou traços da personalidade e a coragem do secretário-geral. Apenas no parágrafo final deixou fluir a admiração: “Chegamos agora a um ponto em que não distinguimos nenhum sinal de oposição: há em Prestes uma dignidade fundamental, incontrastável. É a essência de seu caráter. Admiram-no com exaltação, odeiam-no com fúria, glorificam-no e caluniam-no. Seria difícil achar quem lhe negasse respeito à autoridade imutável, maciça, que o leva a afrontar serenamente duras fadigas e sacrifícios horríveis – coisas previstas e necessárias”.
A camisa de força ideológica e as exigências impostas à militância deixaram parte expressiva da intelectualidade de fora da direção partidária, ocupando-se de atividades em entidades sociais, movimentos culturais e políticos que davam cobertura legal ao PCB, conferências, congressos, publicações e assinaturas de manifestos. Isso nos ajuda a entender por que escritores e artistas gabaritados jamais ascenderam ao topo da hierarquia ou exerceram influência na formulação de seu ideário. Os mais próximos do Comitê Central limitaram-se a funções de assessoria ou foram incumbidos de tarefas específicas, como a representação cultural junto à União Soviética, entregue a Jorge Amado.
A cúpula do PCB oscilava entre a reprovação de experiências estéticas que pudessem arranhar os cânones do realismo socialista e iniciativas que visavam agregar em torno do partido escritores e artistas de renome. Essas iniciativas abrangiam desde ajudas a camaradas em apertos financeiros até a inclusão em comitivas e delegações em visitas à União Soviética e a países do Leste europeu.
Essas contrapartidas se estendiam à participação de seus escritores na imprensa partidária, notadamente nas revistas Fundamentos, Para Todos e Problemas. Se, por um lado, os mecanismos de controle ideológico incidiam sobre a produção intelectual, por outro não se pode desconhecer que tais publicações constituíam meios alternativos de divulgação e visibilidade a escritores e jornalistas, vários deles discriminados pela imprensa tradicional em razão do engajamento político.
É bem verdade que nem todos os artistas e intelectuais comunistas precisavam da chancela partidária para obter prestígio, pois já haviam conquistado o respeito público (aí incluído o da crítica especializada) a suas obras e criações, independentemente da filiação política. Basta pensarmos em Graciliano Ramos, Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Oduvaldo Vianna, Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Oscar Niemeyer, Villanova Artigas e Francisco Mignone.
Participar das delegações internacionais do PCB equivalia a uma distinção no conjunto da militância comunista, bem como um tipo de reconhecimento político às posições ocupadas na esfera cultural, dentro e fora do partido. Não deixa de ser eloquente o fato de que até os que relutavam e resistiam ao jdanovismo, como Graciliano Ramos, aceitavam integrar comitivas do partido – seja porque se sentiam distinguidos com as escolhas, seja porque consideravam uma oportunidade extraordinária conhecer as experiências socialistas em curso e ampliar os contatos no exterior.
O fascínio de todo comunista pela União Soviética era reforçado pelo mito de Stalin como o “guia genial dos povos” e pela natural curiosidade pelo que lá se passava, alimentada pela propaganda partidária sobre os feitos do socialismo. Faltavam informações confiáveis sobre os países socialistas do Leste europeu, porque a imprensa ocidental se encarregava de enquadrar os países do Leste Europeu na ótica falsa e distorcida do anticomunismo.
Graciliano Ramos não escondia o desejo de conhecer o país que liderava a construção de uma nova sociedade. Formar juízos sobre o bastião do socialismo, sem o capricho das idiossincrasias e dos fanatismos. A seu ver, as paixões e os ódios embaçavam as lentes dos viajantes. Ou endeusavam as conquistas, ou as inutilizavam, sem meio-termo. “Preciso ter a certeza de que o socialismo existe na União Soviética”, comentou com Heloísa Ramos, sua admirável mulher e companheira de militância.
Ao regressar ao Brasil depois de 56 dias no exterior, Graciliano resolveu escrever um livro sobre o que vivenciara. Deu-lhe o título seco de Viagem. Foi a sua última obra, publicada postumamente em 1954. Ilustra a sua habilidade para desviar-se do ufanismo em relação à União Soviética. Apesar de impressões francamente favoráveis sobre educação, saúde, cultura e assistência a crianças e idosos, seu relato em Viagem não freia desconfortos.
A começar pela peregrinação ao túmulo de Lênin: “É uma procissão a que os moscovitas se habituaram, como se cumprissem um dever. Estranhamos não se haverem cansado de repetir há mais de vinte anos a marcha regular, monótona”.[18] Não escondeu a impaciência diante dos louvores excessivos a figuras históricas do comunismo internacional: “Cartazes e mais cartazes; enormes letreiros expostos em quadros levados por muitos indivíduos. Retratos e mais retratos: os dirigentes da revolução, antigos e modernos, de Marx e Engels a Mao Tsé Tung e Togliatti. (…) As aclamações incessantes feriam-me os ouvidos”.[19]
Reprovou o abundante policiamento nas ruas e a desconfiança para com os turistas. Por pouco não abandonou o interminável desfile militar em comemoração ao Dia do Trabalhador, exasperado com os voos rasantes de aviões. Embora se refira a Stalin como “o estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, e nunca o enganou”, fez reparos às exaltações de suas virtudes e de sua personalidade, dizendo que “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior”.[20]
Em síntese, Graciliano Ramos avaliou que a União Soviética progredira, porém, a propaganda às vezes não correspondia aos fatos. Se apontava méritos nos programas sociais, não se furtava a apontar excessos autoritários na execução de metas governamentais.
Tal como Memórias do cárcere, Viagem desagradou à cúpula partidária. É provável que o mal-estar tenha aflorado no prólogo, ao alertar que não endeusaria o governo soviético: “Pretendo ser objetivo, não derramar-me em elogios, não insinuar que, em trinta e cinco anos, a revolução de outubro haja criado um paraíso com as melhores navalhas de barba, as melhores fechaduras e o melhor mata-borrão. Essas miudezas orientais são talvez inferiores às ocidentais e cristãs. Não me causaram nenhum transtorno, e se as menciono, é que tenho o intuito de não revelar-me parcial em demasia. Vi efetivamente o grande país com bons olhos. Se assim não fosse, como poderia senti-lo?”.[22]
Dois dirigentes do PCB foram à casa do romancista inteirar-se do conteúdo do livro. Com duas frases evasivas, Graciliano cortou o diálogo: “Tudo está em manuscrito. Ainda tenho que mexer muito”.
Alinhamento e autonomia
Graciliano Ramos preferiu caminhar no fio da navalha, entre a fidelidade conceitual ao socialismo e a oposição a teses sectárias. Orientava-o um pensamento regulado por razão, técnica e emoção, em proporções simétricas. Se percebia intenção de rebaixar o padrão literário em prol da eloquência tendenciosa, disparava torpedos. Como nesta fala de Luís da Silva, protagonista de seu romance Angústia: “’Proletários, uni-vos.’ Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. (…) Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim”.[23]
O fundamento ético de Graciliano Ramos reivindicava uma efetiva transformação social, sem em nenhum instante negociar a substância estética da revelação da realidade. Foi assim tanto no período de penúria e cooptação do Estado Novo quanto na fase de estremecimentos dentro do Partido Comunista Brasileiro, em função das controvérsias sobre o realismo socialista. Do mesmo modo que recusava a tutela ideológica sobre a imaginação literária, Graciliano Ramos descartava o esteticismo desprovido de significação humana, com a sensibilidade adicional para entender que, numa obra literária digna deste nome, forma e conteúdo evidenciam as tomadas de posição artísticas e ideológicas do autor – posições definidas pelas distinções que as unem e as separam no espaço da criação.
Por mais alinhados que sejam aos oprimidos, escritores e artistas não podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes indique as ferramentas do ofício. O intelectual que se rende aos dividendos políticos abre mão da possibilidade de contribuir para o esclarecimento dos enigmas da cotidianidade. Os postulados dogmáticos baseiam-se em pontos de vista que, em certa época, constituíram a base espiritual para a existência, mas que, em outro contexto, sustentam ideias, posições e atitudes que já não correspondem mais às situações objetivas, “anestesiam o pensamento de indivíduos e grupos” e ofuscam a percepção dos movimentos de renovação do ambiente sociopolítico, como pontuou Lucien Goldmann.[24] A criação cultural passa a ser condicionada por teoremas que subestimam as variações dos processos históricos, atravessados por continuidades e descontinuidades que põem em xeque o sonho intangível de uma vida linear.
Para que a dialética prevaleça na produção intelectual, é essencial afugentar a ameaça de subtração das ideias em nome do jogo das conveniências, como também sedimentar a liberdade que assegura a explicitação do novo. György Lukács sustentou que a arte como forma de conhecimento não pode ser reduzida a um cálculo político efêmero. Os escritores e artistas engajados não têm que abdicar de sua independência de pensamento para se moldar aos estereótipos da militância. O estilo de um autor não é modulado por decisões impostas de fora, e sim pela evolução do próprio artista e de seu modo de pensar.
Como o mundo está em constante ebulição, os horizontes também se modificam, interferindo na forma e no conteúdo das obras de arte. Contudo, essas transformações devem ser voluntárias, fundadas em convicções profundas, e não guiadas por princípios burocráticos que sufocam “as possibilidades do futuro ainda em germe”.[25] O compromisso social do artista não deve pôr em risco a liberdade de criação, porque “até mesmo o mais extravagante jogo da fantasia poética e as mais fantásticas representações dos fenômenos são plenamente conciliáveis com a concepção marxista do realismo”.[26]
A resistência à racionalidade dominadora nada tem a ver com apatia ou deserção frente aos clamores da hora. “O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar”, enfatizou Jean-Paul Sartre na apresentação da revista Les Temps Modernes (outubro de 1945). Para o filósofo francês, a função do intelectual é despertar consciências, impedindo que os homens se alienem ou se resignem diante das interrogações à sua volta.[27] O escritor consciente não se aparta da complexidade de sua época, nem se esquiva dos problemas que afligem o conjunto da sociedade, mas, como ensinou Graciliano, zelando pela integridade dos valores estéticos.
Considerações finais
Ressaltemos que, no período que se seguiu à denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, o PCB rompeu com a política sectária em vigor desde 1948 e alterou sua linha programática. Na Declaração de Março de 1958, o partido propugnava por um governo nacionalista e democrático. O caminho pacífico para a revolução anti-imperialista e antifeudal seria alcançado por uma frente única que englobasse o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia e “os setores da burguesia ligados aos interesses nacionais”. Nas páginas da imprensa partidária, iniciou-se intenso debate sobre as deformações da era Stalin, com autocríticas de diversos intelectuais que haviam aceitado as prédicas do realismo socialista.
Artigos incluídos nas edições de outubro e novembro de 1956 do jornal Imprensa Popular, órgão oficial do PCB editado na clandestinidade, resumiram o sentimento de rejeição aos dogmatismos. Segundo Jorge Amado, “os tremendos reflexos do culto à personalidade entre nós, nossos erros enormes, os absurdos de todos os tamanhos, a desumanização que, como a mais daninha e venenosa das ervas, floresceu no estrume do culto aqui levado às formas mais baixas”. Astrojildo Pereira reclamou dos abusos praticados em nome de “princípios revolucionários”, que denotavam desapreço ao trabalho intelectual. Depois de uma autocrítica (“Incluo-me, cem por cento, entre aqueles que mais entusiasticamente participaram do culto à personalidade de Stalin”), disparou: “A pobreza franciscana do nosso labor teórico resultou na estagnação do pensamento, no embotamento do espírito crítico e autocrítico”.
Graciliano Ramos não estava mais vivo, em fins da década de 1950, para avaliar a repulsa de parcela ponderável da intelectualidade comunista à imposição irracional e à aceitação passiva da arte panfletária, durante o acirramento da guerra fria. Penso ser válido reiterar que, mesmo incompreendido e até difamado, Graciliano Ramos nunca deixou de ter crença no socialismo como saída para a humanidade, nem de situar-se como um homem de partido. Jamais escreveu uma linha sequer contra o PCB, nem evidenciou publicamente suas divergências a respeito do realismo socialista e as contradições daí resultantes.
Penso que o equilíbrio buscado por Graciliano Ramos entre a literatura e a expressão política se deve ao compromisso superior com os valores humanistas. Ele coloca-se do ponto de vista dos grupos sociais marginalizados; grupos que sinalizavam o anseio latente de romper o cerco das desigualdades. Em seu horizonte ficcional, projetam-se vozes que clamam pelo alargamento do nível de consciência da totalidade concreta da sociedade, em particular dos setores subalternos sobre os quais recaem as consequências deletérias do capitalismo. O romancista percebe os reflexos do real sobre as relações sociais, correlacionando o universal e o particular, os dramas sociais e as dores íntimas, a preocupação ética e a grandeza moral.
Em nenhuma circunstância admitiu negociar a substância estética da revelação da realidade. Recusava o esteticismo desprovido de significação humana, com sensibilidade adicional para entender que, numa obra literária digna deste nome, forma e conteúdo evidenciam as tomadas de posição artísticas e ideológicas do autor – posições definidas pelas distinções que as unem e as separam no espaço da criação.
Graciliano encarnou o intelectual crítico que se opõe ao consenso forjado pelas elites dominantes e zela para que o discurso da utopia não degenere em crença messiânica. “O artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas”, esclarecia. Em seus romances, contos, crônicas e memórias, afrontou as injustiças sem recorrer ao ouro falso dos slogans e das fórmulas propagandísticas. Precisou apenas de folhas de papel e frases enxutas para lançar um potente facho de luz sobre os contornos precários de um mundo alienado.
Ao solidarizar-se com as vidas degradadas por discriminações e pelas estruturas espoliadoras do trabalho, Graciliano Ramos está nos dizendo que o resgate da dignidade depende da nossa capacidade de intervir na cena pública da política com ímpeto transformador. Para isso, concebe uma arte irredutível ao panfletarismo, a salvo de ilusões ingênuas ou passageiras, porém comprometida organicamente com a longa luta pela emancipação social.
*Dênis de Moraes, jornalista e escritor, é professor aposentado do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Autor, entre outros livros, de Sartre e a imprensa (Mauad).
Este texto baseia-se em questões abordadas no meu livro O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, que está completando 30 anos de publicação (José Olympio, 1992; Boitempo, 2012, em edição revista e ampliada).
Notas
[1] Edward Said. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 25-26.
[2] Carlos Nelson Coutinho, “Prefácio”. In: Dênis de Moraes. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 8.
[3] Dênis de Moraes, O velho Graça, ob. cit. p. 158-162.
[4] Entrevista de Licurgo Ramos Costa a Dênis de Moraes, “A imprensa por baixo do pano”, Valor Econômico, 15 de novembro de 2002.
[5] Entrevista de Joel Silveira a Gonçalo Jr, “Os intelectuais e o Estado Novo”, Gazeta Mercantil, 1-4 de abril de 1999.
[6] Antonio Candido, “Prefácio”. In: Sérgio Miceli. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 74.
[7] Dênis de Moraes, O velho Graça, ob. cit, p. 183.
[8) Moacir Werneck de Castro citado em O velho Graça, ob. cit., p. 186.
[9] Carlos Nelson Coutinho, “Prefácio”. In: O velho Graça, ob. cit., p. 9.
[10] Consultar Dênis de Moraes. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
[11] A íntegra da entrevista de Graciliano Ramos a Newton Rodrigues, originalmente publicada na revista Renovação, está incluída, como anexo, em O velho Graça, ob. cit., p. 349-356.
[12] Graciliano Ramos. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 1989, p. 94.
[13] Graciliano Ramos citado em Homero Senna. República das letras: entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 207.
[14] Paulo Mercadante citado em O velho Graça, ob. cit., p. 253.
[15] Paulo Mercadante citado em O velho Graça, ob. cit., p. 249-254.
[16] Graciliano Ramos. Memórias do cárcere (vol. 1). Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 248-249.
[17] Alfredo Bosi. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 222.
[18] Graciliano Ramos. Viagem. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 69.
[19] Ibidem, p 48-49.
[20] Ibidem, p. 53 e 55.
[21] Ibidem, p. 7.
[22] Ibidem, p. 7 e 11.
[23] Graciliano Ramos. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 159.
[24] Lucien Goldmann. Crítica e dogmatismo na cultura moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, p. 33.
[25] György Lukács. Marxismo e teoria da literatura. Org. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2010, p. 274-275.
[26] György Lukács. Ensaios sobre a literatura. Org. de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 34.
[27] Jean-Paul Sartre. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993, p. 20-21.
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