Primeiro a estratégia, depois a contabilidade

Imagem: Christhian Gruhh
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Por JOSÉ LUÍS FIORI*

A importância de uma aliança estratégica entre Brasil e Argentina, para formar um bloco de poder regional capaz de enfrentar as ameaças internas e resistir às pressões externas

“Não há como uma economia nacional se expandir simplesmente por meio do jogo das trocas, nem há como uma economia capitalista se desenvolver de forma ampliada e acelerada sem que ela esteja associada com seu próprio Estado e com seu projeto de acumulação do poder e de transformação ou modificação da ordem internacional estabelecida” (José Luís Fiori, História, Estratégia e Desenvolvimento, p. 28).

A visita do presidente argentino, Alberto Fernández, imediatamente depois da eleição do novo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, tem várias conotações simbólicas ligadas às suas relações pessoais, e associadas às relações históricas entre os dois países. Ao mesmo tempo, a rapidez da visita chama atenção para a urgência do desafio e para a gravidade da ameaça que paira sobre a sociedade argentina, e a brasileira, divididas neste momento, e polarizadas por uma luta sem quartel entre dois projetos de futuro absolutamente antagônicos, para si, para o Cone Sul e, de certa forma, para toda a América do Sul.

Brasil e Argentina competiram pela hegemonia sul-americana durante quase um século, desde a Guerra do Paraguai, mas ao mesmo tempo foram o território privilegiado de dois grandes ciclos de crescimento econômico, que tiveram duração quase idêntica: na Argentina, entre 1870 e 1930; e no Brasil, entre 1930 e 1980. Entre 1870 e 1930, a economia argentina cresceu a uma taxa média anual de cerca de 6%; e já no início do século XX, havia se transformado no país mais rico do continente sul-americano, e na sexta ou sétima economia mais rica do mundo, com uma renda per capita quatro vezes maior do que a dos brasileiros no mesmo período.[1]

No entanto, depois de 1940, a Argentina entrou num longo processo entrópico de divisão social e crise política crônica, por não conseguir definir e consensualizar uma nova estratégia nacional de desenvolvimento adequada ao contexto geopolítico e econômico do pós-Segunda Guerra Mundial. Foi quase no mesmo momento da desaceleração argentina que começou o take-off da aceleração econômica brasileira, na década de 1930, estendendo-se até a década de 1980, quando a economia brasileira cresceu a uma taxa média anual de 7%, ultrapassando a Argentina e transformando-se na principal economia da América do Sul já nos anos 1950. Completou-se, assim, um longo período de quase 110 anos de crescimento contínuo, no Cone Sul do continente sul-americano, onde se deve incluir também o caso simultâneo do sucesso econômico uruguaio, pelo menos até a década de 1950. Um desempenho econômico notável, mesmo se tomarmos em conta a história mundial do desenvolvimento capitalista.

Também no caso brasileiro, esse desempenho econômico foi interrompido nos anos 1980 e entrou em crise terminal depois do fim da Guerra Fria, quando a economia brasileira experimentou e fracassou na sua experiência neoliberal; depois experimentou um novo projeto progressista de crescimento econômico, com a montagem de um Estado de bem estar social, que foi derrubado por um golpe de Estado e por um governo de extrema-direita instaurado e liderado por militares, que contaram uma vez mais com o apoio externo norte-americano. Por isso se pode dizer que o Brasil também foi acometido, nos últimos trinta anos, pela mesma “enfermidade” que atingiu a Argentina em meados do século passado, e que mantém o país vizinho em estado crônico de letargia econômica e empobrecimento social progressivo.

Assim se pode afirmar, com toda a certeza, que o encontro do presidente Fernández com o presidente Lula, no último dia 31 de outubro, pode passar para a história como o momento em que os dois países decidiram enfrentar em conjunto esse desafio comum através de uma aliança estratégica que aprofunde os laços econômicos entre ambos, e sustente em bloco seus interesses nacionais e regionais dentro de um sistema internacional que é extremamente fechado e hierarquizado. Um sistema internacional que sempre foi controlado por um número muito pequeno de “grandes potências” que acumularam, através do tempo, uma quantidade de poder econômico, financeiro e militar desproporcional com relação a suas dimensões territoriais. E exercem o “poder estrutural” de que dispõem – de forma implacável – para defender sua posição monopólica dentro do sistema, bloqueando a ascensão dos países concorrentes através de uma competição predatória que desrespeita sistematicamente as “leis do mercado”.

Neste momento, entretanto, esse sistema está atravessando uma crise e transformação de enorme complexidade, que devem durar por muito tempo, provocadas em grande medida pela ascensão asiática e o fim da hegemonia civilizatória eurocêntrica, e ainda pelo declínio do poder militar global dos “povos de língua inglesa”. Mas atenção, porque é exatamente nesses momentos – e quase só nesses momentos – que se abrem brechas e oportunidades para a ascensão de novos países dentro da hierarquia de poder e riqueza do sistema internacional. São momentos raros, verdadeiras bifurcações históricas, que podem ser aproveitadas pelos países situados fora do núcleo do poder global, mas que também podem se transformar numa grande oportunidade perdida de escalar posições na hierarquia do poder e da riqueza internacionais.

A história ensina que nas horas de grandes crises e transformações, como a que estamos vivendo, existem três grandes alternativas estratégicas que podem ser seguidas pelos países situados fora do “núcleo central” do sistema:

(i) A primeira, imposta pela guerra ou pela livre escolha de alguns países, é uma estratégia de subordinação, integração ou vassalagem consciente com relação às grandes potências, que em troca oferecem acesso privilegiado a seus mercados e sistemas de crédito e financiamento. Muitos falam num tipo de “desenvolvimento a convite” ou “desenvolvimento associado”, como foi o caso dos “domínios” ingleses, ou também dos países que foram derrotados na Segunda Guerra Mundial e depois transformados em protetorados militares norte-americanos, como Alemanha, Japão ou Taiwan, por exemplo. Estes países seguem quase sempre a cartilha ortodoxa da política econômica recomendada ou imposta pelo poder das potências vencedoras ou “protetoras”.

(ii) A segunda estratégia foi seguida quase invariavelmente através da história por todos os países que quiseram ou se propuseram a mudar sua posição relativa dentro do sistema internacional, desafiando seu status quo político e econômico e enfrentando as sanções de seus “grandes controladores”. Muitos chamam de estratégia de catch-up, mas também poderia se falar de um “modelo insurgente”. Em geral, esses países adotam políticas econômicas mais protecionistas ou mercantilistas, e seus Estados costumam promover ativamente o desenvolvimento tecnológico e a expansão internacional de seus capitais privados, enfrentando a competição predatória das grandes potências. Esses países podem ser bloqueados ou mesmo destruídos pelas potências que controlam o sistema, como foi o caso de Alemanha, Japão e União Soviética, no século XX; mas eles também podem vencer e seguir em frente, como foi o caso dos Estados Unidos, no século XIX, e da China, no século XXI.

(iii) Por fim, não se pode falar exatamente de uma estratégia quando se refere aos países situados no “andar de baixo” ou na “periferia” do sistema de poder mundial e que não têm vontade política nem dispõem de instrumentos de poder para desafiar a ordem estabelecida. Neste caso, se poderia falar talvez de uma “vassalagem gozosa”, tratando-se de países que aceitam, até com algum entusiasmo, sua condição de fornecedores de bens primários, ou de alguns insumos industriais especializados, das potências dominantes. São economias que vivem em condições de quase permanente restrição externa, e de submissão completa às determinações, flutuações e ajustes da política economia das grandes potências.

O sucesso econômico da Argentina, no século XIX, se deu à sombra da afirmação vitoriosa da Inglaterra como potência naval, econômica e financeira, e pode ser considerado como um caso pioneiro da estratégia de “desenvolvimento a convite” da Inglaterra, diferentemente de seus domínios de “fala inglesa”. Da mesma forma, o “milagre econômico” brasileiro do século XX pode ser classificado como um caso de “sucesso a convite”, ou de “desenvolvimento associado”.

Mas houve pelo menos dois momentos, nos últimos 80 anos, em que o Brasil tentou transitar para um modelo ou estratégia “insurgente” ou de catch-up, com algumas tomadas de posição que desafiaram a ordem internacional estabelecida. Uma primeira vez, já no final de uma ditadura militar que foi extremamente subserviente e reacionária, com exceção talvez da política externa do governo do General Geisel; e uma segunda, já no início do século XXI, entre 2003 e 2015, com a política externa dos governos de Lula e Dilma Rousseff, interrompida justamente por mais um golpe que contou com o apoio americano e a participação decisiva dos militares e das forças civis de extrema-direita, como já havia acontecido no golpe de Estado de 1964.

Mas neste momento, depois do rotundo fracasso da coalisão golpista e do seu projeto econômico ultraliberal, o Brasil optou democraticamente por um caminho diferente a ser construído pela aliança eleitoral que saiu vitoriosa das eleições de 30 de outubro. Apesar da destruição que o Estado e a sociedade brasileira viveram nos últimos seis anos, o Brasil já adquiriu uma dimensão e um peso internacional que devem resistir e podem ser restaurados depois da derrota eleitoral do projeto conservador e ultraliberal da extrema direita.

Assim mesmo, para levantar-se sobre suas próprias pernas e sair do pântano a que foi levado pelo caos provocado pelo último governo paramilitar, de extrema direita e ultraliberal, o novo governo brasileiro terá que fazer escolhas e tomar algumas decisões estratégicas fundamentais para viabilizar a construção e sustentação interna e externa do novo modelo de sociedade e de soberania nacional que está se propondo construir. Terá, sobretudo e antes que nada, de construir um bloco de poder nacional e um sistema flexível de alianças internacionais capazes de sustentar seu novo projeto de futuro. E deverá ter claro, de antemão, que ao escolher este caminho enfrentará ataques de todo tipo e que virão de todos os lados, de dentro e de fora do país.

Neste ponto, não há como enganar-se: ao propor ascender dentro do sistema internacional, terá que questionar inevitavelmente o status quo e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta a atual ordem ou desordem internacional. Como disse Norbert Elias, dentro deste sistema interestatal, “quem não sobe cai”,[2] mas ao mesmo tempo há que ter claro e estar preparado, porque “quem sobe” deverá ser bloqueado e submetido a todo tipo de sanções por não se submeter à vontade dos donos do poder global.

Por isso mesmo, a importância fundamental – nesse momento – de uma aliança estratégica entre o Brasil e a Argentina, para formar um bloco de poder regional capaz de enfrentar as ameaças internas que virão da extrema direita dos dois países, e para resistir às pressões externas que virão de dentro e de fora da América.

*José Luís Fiori é professor Emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

Notas


[1] Fiori, J. L. História, estratégia e desenvolvimento. São Paulo: Editora Boitempo, 2014, p. 271.

[2] Elias, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, vol. 2, p. 134.

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