Por MIRMILA MUSSE*
Considerações sobre o filme documentário recém-lançado dirigido por Juliana Vicente
Numa balança de dois pratos, pode-se imaginar que há, de um lado, muito sentido, e de outro, sentido algum. A análise do discurso proposta pela psicanálise lacaniana no divã visa, pela interpretação ou intervenção, a esvaziar o sentido daquilo que tem muito sentido e, ao mesmo tempo, dar sentido para aquilo que é, a princípio, indizível. Mas o objetivo não é o equilíbrio da balança. Não se muda o passado, mas é possível, pelas palavras, dar sentido para aquilo que não o tem, na tentativa de não repeti-lo. Esse poderia ser um terceiro prato da balança que, em uma amarração pelas palavras, pode mudar o destino já supostamente escrito.
Mas além da psicanálise lacaniana, há outro discurso que acredito que se pretende a mesma estratégia: a arte que precede, prescinde e ensina a psicanálise porque subverte o discurso. A palavra “revolução” é, segundo o dicionário, um movimento de curva fechada, mesmo quando há substituição do poder. Já a “subversão” destitui, derruba e destrói. É isso que Jacques Lacan tenta mostrar com a teoria dos discursos em pleno maio de 1968, em Paris. Não se trata do ato de dar voltas no discurso, garantido a mesma estrutura, mas de subvertê-lo, irrompê-lo ou precipitá-lo com ímpeto.
O filme Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo, escrito e dirigido pela cineasta Juliana Vicente, recém-lançado na Netflix, mostra a história de trinta e um anos do grupo de rap homônimo. Para além da qualidade técnica e musical, é com letras e palavras que, com maestria, eles ensinam o que é arte. A arte interpreta o social na medida em que toca a singularidade do um por um, no sujeito de muitos do social. O sofrimento individual é reflexo do discurso dominante da época que por sua vez, é intrínseco ao mal-estar estrutural da sociedade. É pela subversão do discurso dominante social e econômico que cada álbum dos Racionais interpreta o mal-estar do momento histórico.
Primeiro álbum: Raio X do Brasil (1993)
Subversão: Uma descrição e a identificação.
O primeiro álbum dos Racionais dialogou com Jorge Bem: Além de ser uma música com “um vocabulário que já vinha com ritmo”, harmônico, segundo Mano Brown, ele foi uma inspiração porque “agregava uma ideia mais política com um ritmo dançante”. O hip hop e do soul já haviam estourado no mundo. Mas o sintoma do Brasil era diferente daquilo que era transmitido nesses dois outros ritmos. A periferia brasileira tinha características muito particulares, diferente do Bronx, por exemplo, onde é explicito os limites raciais e físicos onde um preto pode ou não frequentar. O racismo aqui “não foi simbolizado”, diz Brown.
O nome do primeiro álbum, Raio X do Brasil, é autoexplicativo. Trata-se de uma descrição da exploração social, da divisão de classe, do sistema policial e social e do racismo. Com essas questões, o álbum foi reconhecido pela juventude da periferia que se identificou com as letras e a cultura exposta nas músicas.
Segundo álbum: Sobrevivendo no inferno (1997)
Subversão: Dois lados da força política.
O grupo havia conquistado certo sucesso e os integrantes, uma melhor condição social. Mas mesmo já morando no “asfalto, era menos romântico”. O Capão Redondo era considerado o bairro mais violento de São Paulo, com assassinatos diários. O conteúdo e o tom das músicas tornaram-se mais pesados e violentos. Estávamos na época do massacre do Carandiru, da chacina da Candelária e do Vigário Geral. Não se tratava apenas da violência da periferia de São Paulo, mas da história da escravidão do Brasil. Os prêmios com Sobrevivendo no inferno deram mais visibilidade ao grupo. Mas Ice Blue explica que o grupo sobreviveu porque os “Racionais tinham força, já haviam políticos, advogados e senadores intervindo na censura ou não do show”.
Não era mais só a periferia que se interessava pelas músicas do grupo. A visibilidade veio acompanhada da censura. O fato de estudantes brancos burgueses, padres, ladrões, entre outros, se identificarem com as letras, fizeram os Racionais se questionarem sobre o fenômeno. Ironicamente, mais além da pulverização das músicas, a denúncia do Inferno proporcionou o efeito contrário: esse CD foi o momento em que, segundo eles, o grupo mais se afastou da periferia.
Acontecia justamente o inverso daquilo que os Racionais esperavam. Os shows se tornaram violentos, e um cadáver no pé de Mano Brown durante um deles, foi decisivo para recuar. Se o que o sistema quer é o extermínio dos pretos da periferia, e a ideia era justamente não entrar no sistema e na máquina de matar, foi preciso uma estratégia de subversão do discurso. O momento de mais visibilidade da história dos Racionais foi também o momento de sair de cena.
Terceiro álbum: Nada como um dia após o outro dia (2002)
Subversão: “Lisergia” e o mundo moderno.
Foram cinco anos entre os o álbum Sobrevivendo no Inferno e Nada como um dia após outro dia. A virada do século trazia a promessa de um mundo moderno. O metrô chegou no Capão Redondo, o PCC já comandava e organizava o crime e a violência, Lula estava chegando à presidência. Sair de cena e voltar para a base e para as origens “fez eu entender tudo de novo”, diz Mano Brown. O sofrimento era diferente, os loucos eram diferentes, as drogas eram outras e já haviam outros sentidos para a vida na periferia. Coletivos nasceram, a forma de representação da quebrada não passava mais pela periferia subordinada, oprimida, ignorante e alienada.
Mano Brown diz no filme que este CD precisava de “lisergia” – a composição da palavra “lisérgico”, de onde se derivou “lisergia”: “mente” e “sensorial”. Para o grupo era necessário falar da neurose individual, da fraqueza que todo mundo sofre, mas que ninguém pode falar, como a máxima dizendo que “homem não pode chorar”. O som tinha que ter camadas, ter dimensão, “não podia ser só pedrada na cara”. Milton Nascimento, Milies Davis e a observação por horas da represa Guarapiranga determinaram musicalmente o grupo no terceiro álbum.
Mas em 2007, depois de uma confusão entre o público e a polícia em um show para 100 mil pessoas, na Virada Cultural em São Paulo, os Racionais foram silenciados, proibidos pelo Estado de tocarem em lugares públicos e abertos por dez anos. Eles já sabiam que fazer e falar sobre a revolução negra resulta em perseguição e censura. Mas foi o convite para participarem do filme Marighela que fez o grupo ressurgir.
Durante esse período de dez anos, eles fizeram uma aliança com os espaços privados e fechados para realizar shows. Se nesses espaços não ocorrem mais violência e confusão, isso não é decorrente dessa aliança. Pelo contrário, a subversão está no detalhe do inverso. Essa parceria se deu com o público, não com os espaços físicos e privados. O fortalecimento da conexão dos membros no palco e com seu público foi da natureza de um “cordão umbilical”. A ideia era sustentar a existência e a sobrevivência da vida, conta Eliane Dias, advogada e produtora dos Racionais. A união entre eles é a única razão que garante a passividade nos shows porque “eles escutam os Racionais e os Racionais escutam eles”.
Quarto álbum: Cores e valores (2014)
Subversão: O medo do preto chegar ao poder.
O último álbum, Cores e valores, encontra-se carregado de funk, com referência musical também com Tim Maia. O álbum dá continuidade à “vida loka” dos anos 1990, mas a partir de uma nova realidade. Trata-se de um disco para os tempos modernos com a crítica aos novos meios de segregação e racismo, diz Mano Brown. Agora os pretos das periferias também têm acesso aos bens materiais de consumo da burguesia, e “isso se reflete na música e nas ruas”. O clichê que o discurso dominante impôs, ao associar os Racionais com cadáver e violência, é subvertido pelo grupo. Manterem-se vivo não é o único projeto de vida. A luta não se trava apenas pelos direitos básicos porque os negros estão agora, acompanhados de sonhos e esperança e de projeto de futuro.
Os integrantes do grupo dizem que os Racionais aprendem e ensinam a ter coragem. Guimarães Rosa diz que para existir é preciso ter coragem com juízo. Já Jacques Lacan diz que, diante de uma impossibilidade estrutural, a ética do sujeito está no desejo de agir, na “coragem em vista desse destino fatal”. No filme Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo, Edi Rock afirma que é impressionante o fato de os quatro integrantes do grupo, pretos e periféricos, estarem vivos, quando a única possibilidade era “levar bala”. De fato, é. Mas, mais do que isso, é impressionante que nesses trinta e um anos de existência, os Racionais subverteram, com estratégias brilhantes, o discurso da luta de classe e do racismo.
Outro dia, em um show de um dos fundadores do grupo Fundo de Quintal, no subúrbio carioca, um amigo me chama atenção para o fato de a discotecagem, nos intervalos do show, ser o rap e as músicas dos Racionais, cantadas em coro. Foi isso que acompanhou e formou essa geração da periferia do Brasil. Que me desculpem meus ídolos do samba e meus heróis da MPB, mas a resistência contra as ditaduras modernas é feita pelo rap e pelo funk.
A gangorra de dois pratos agora tem três e a subversão do discurso desequilibra a força desses outros dois. A poesia e o jogo de palavras dos Racionais subverteram a compreensão da história da luta de classe e do racismo no Brasil. Ainda hoje o discurso dominante pretende esvaziar, silenciar e exterminar o povo preto, mas a luta agora é outra: “a voz a gente já tem”, diz Kl Jay no filme.
*Mirmila Musse é psicanalista e professora. Mestre em psicanálise pela Universidade de Paris-VIII (Vincennes-Saint-Denis).
Referência
Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo
Brasil, Documentário, 2022, 116 minutos
Direção e roteiro: Juliana Vicente
Elenco: Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock
O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como