Brasil 2023 – reflexões sobre a reconstrução

Jeppe Hein, Espaço em círculos, 2022
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Por ANDRÉS DEL RÍO & ANDRÉ RODRIGUES*

O país deu seu recado nas urnas. Disse não. Mas ainda é preciso dizer: Nunca mais

Passaram as eleições. Mas não passou o bolsonarismo. Uma sociedade atravessada pelo trauma de mais de seis anos de ataques autoritários à democracia, deu seu recado nas urnas. Disse não! Mas ainda é preciso dizer: Nunca mais! A violência política e simbólica nas eleições atentando contra a democracia se enraizou e devemos reconstruir os horizontes da Constituição de 1988, a partir das ruínas. Uma das saídas, parece óbvia, mas não foi nestes anos: é enfrentar a ilegalidade com a lei. A restituição da lei e sua consequente confiança social é essencial para que o Brasil volte aos trilhos do desenvolvimento, do Estado de direito e da justiça social.

O filme, Argentina, 1985, recentemente lançado, coloca na mesa uma dívida brasileira. Toca nossa ferida: O desfilar dos agentes do estado responsáveis pelas violações massivas aos direitos humanos pelos tribunais. O filme trata do “Juicio a las Juntas”, a causa mais importante desde Nuremberg, mas feita por um tribunal civil. Depois de sete anos de uma ditadura feroz, clandestina e covarde, Argentina voltava ao regime democrático.

Claro, não se volta à democracia ou se deixa um regime autoritário sem continuidades, legados, pressões e interesses contrários vivos nas instituições. Nesse cenário, numa Argentina devastada economicamente, pela implementação de um neoliberalismo destrutivo da própria matriz econômica; com uma sociedade ferida profundamente e com o desejo de reconstrução institucional e democrática, nasceu a oportunidade da causa contra os altos comandos militares das três forças, responsáveis pela utilização do aparelho estatal, de forma ilegal e arbitraria, resultando no genocídio argentino.

No Brasil de Jair Bolsonaro vivemos o reposicionamento dos sentidos dos militares. O revivalismo de uma história não encerrada. Anistiada e cultuada no meio castrense, que segue refratário e sabotador da construção de uma sociedade democrática. E com essa restituição dos sentidos autoritários impunes na caserna, torna-se, mais do que nunca, urgente e necessária a disputa da memória sobre o papel desses setores nas violações aos direitos humanos durante a última ditadura.

Durante o governo da extrema direita, ideologicamente fascista, a militarização e o militarismo tiveram sua vez, demostrando pouco apelo aos sentidos democráticos, mas respaldando a defesa dos interesses corporativos. Uma festança de Viagra, picanha e leite condensado. A gestão pífia nas mãos dos militares nesses anos, reforça a necessidade de redirecionar e canalizar esse setor para o regime democrático, para o espírito democrático.

Talvez a figura do militar Eduardo Pazuello seja o símbolo de incompetência, da falta de humanidade e da falta de transparência, numa gramática de racionalidade militar numa instituição democrática. Em entrevista recente, sua ex-mulher afirma ter telefonado para o general da ativa, então, ministro da saúde, para cobrá-lo sobre medidas urgentes para a falta de oxigênio em Manaus, em um dos momentos mais dramáticos da pandemia no Brasil, recebendo como resposta: “Estou preocupado em comprar os sacos pretos”. Tudo errado. Potentemente desumano.

À diferença do filme e da história argentina, no Brasil foi a Comissão Nacional da Verdade, com suas luzes e sombras, trouxe o esforço da procura da verdade, justiça e memoria ao país. Mas a reação a ela foi letal. O meio militar ileso dos crimes cometidos, passou a conspirar ativamente para o processo golpista que culminou na eleição de Jair Bolsonaro. Ainda temos muito a avançar para encerrar este processo.

Sem existir a responsabilização e restituição da igualdade perante a lei, o Brasil prosseguiu negando sua necessidade estrutural, numa disputa da memória cada vez mais intensa, agora, a partir das próprias instituições democráticas, lideradas pelo executivo nacional. Um paradoxo institucional e um discurso militar: salvemos a democracia golpeando-a. Resulta dos processos de negação da verdade uma desorientação completa dos sentidos sociais e políticos. Os sinais estão trocados.

As forças democráticas, que em sua maioria se organizam no campo da esquerda, são permanentemente postas sob suspeição pela imprensa e pela opinião pública. Enquanto a direita democrática pouco presta contas de seus flertes com forças corrisivas à democracia, apaga-se da história o fato de que foi a esquerda e os movimentos sociais que lutaram e resistiram contra a ditadura e restabeleceram a democracia a partir de 1988. E é à esquerda, através de seu maior partido, que se encarrega agora de reorganizar o campo democrático, abrigando setores da direita que permaneceram, durante mais tempo que o aceitável, omissos ou impassíveis diante da degradação democrática promovida pelos militares no governo de Jair Bolsonaro.

No filme e na história argentina, mesmo numa situação de fragilidade institucional, com perspectivas incertas, se aproveitou uma oportunidade, da forma que se conseguiu restituir a ordem e os valores democráticos, apesar das dificuldades. Neste sentido, num cenário brasileiro com parte da sociedade esgarçando as fronteiras dos sentidos da democracia, a oportunidade existe. Deve ser implementado um processo de enquadramento dos delinquentes e usurpadores da vez, de forma rápida, no calor da mini lua de mel que uma eleição outorga. Parte desse movimento é a restruturação da arquitetura jurídica nacional, reorientando o norte institucional com vistas à defesa dos direitos humanos e restituição da humanidade coletiva.

E dentro deste processo, difícil, lutar pela investigação dos abusos e excessos, que superaram os limites da legalidade, que trazem consequências enormes para o presente e futuro.

Neste desafio, nada estaria mais longe de se estabelecer uma nova Lava Jato, mas uma reconstrução do Judiciário, materializando as finalidades estabelecidas pela Carta Magna. Um dos objetivos dessa reconstrução é garantir a ordem social e econômica do país, e preencher de valores e sentidos aos poderes do Estado, atualmente desnutridos. O Judiciário é, talvez, um dos espaços fundamentais que devem ser reconfigurados, depois da última década, na qual passou de ser um ativo personagem do desequilíbrio a se tornar um mini freio em alguns ataques contra a democracia.

Como no filme Argentina, 1985, a restituição da igualdade diante da lei e defender os valores de justiça na sociedade, são desafios para erguer a democracia brasileira. E nesse movimento, o desfile nos tribunais, de todos aqueles que violentaram as instituições e excederam os limites da legalidade, desviando todas as finalidades institucionais. Com respeito ao devido processo legal e demais garantias judicias, os responsáveis devem pagar, e evitar que a impunidade seja o grande ganhador dos anos das sombras.

O julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos pela gestão da pandemia por Jair Bolsonaro e seus ministros civis e militares pode ser um bom começo. Os crimes são contundentes e sua responsabilização teria caráter exemplar. Esse julgamento pode abrir as portas para que se leve aos bancos dos tribunais a profusão de crimes contra a ordem democrática promovida por um governo que pretendeu abrigar os fascismos no Palácio do Planalto.

Não existe a possibilidade de pensar erguer a democracia das ruínas, sem o preencher de valores de verdade, memória e justiça. A presidência de Jair Bolsonaro nos mostrou o quanto custa não investigar e punir aqueles que cometem violações massivas de direitos humanos, aceitando ter no Planalto o retrocesso e descaracterização do Brasil. A memória é hoje, disputada, e defendida por todos. O governo Jair Bolsonaro (o pior de nós), pode retornar com diferente vestimenta sem a existência de um enfretamento a impunidade.

Não é tempo de ter medo, é tempo de coragem. Sem respeito à lei e à dignidade humana, daremos voltas num labirinto onde somente ganham os mesmos de sempre.

*Andrés Del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

*André Rodrigues é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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