Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Considerações sobre a reação do “mercado” e da “grande mídia” à nomeação de Fernando Haddad como ministro de Fazenda
“Vestiu uma camisa verde-e-amarela / E saiu por aí / Tirou o seu anel de doutor / Para não dar o que falar / E saiu, dizendo, eu quero mamá/ Mamãe, eu qué mamá, mamãe, eu quer mamá / Levava uma arma no cinto…” (Ary Barroso)
Carmem Miranda ao cantar mais ou menos isso antecipava o futuro de uma Nação atrasada, em termos de desenvolvimento socioeconômico, e particularmente inculta. O Brasil figura só acima da África do Sul, cujo regime de profunda e violenta segregação racial – o apartheid – foi mantido de 1948 a 1994, como penúltimo colocado entre os países emergentes e desenvolvidos em número de pessoas com curso superior. Isto sem falar na falta de cultura de inúmeros diplomados em faculdades particulares.
Haja vista a reação de O Mercado, vulgos Faria Limers, frente à nomeação de um professor universitário, Fernando Haddad, com grande experiência como ministro da Educação e prefeito da maior cidade brasileira, para o cargo de ministro da Fazenda. Desde logo, pautou próceres do PIG (Partido da Imprensa Golpista) para o desmoralizar!
O PIG retomou o hábito de desinformar a opinião pública, posicionando-se a priori contra quaisquer “temas heterodoxos”, por exemplo, a chamada Teoria Monetária Moderna (ou MMT), moeda comum do Mercosul e o novo/velho papel do BNDES. Como é contumaz, a diretora-adjunta de redação do jornal Valor Econômico intitulou sua coluna com uma afirmação leviana: “MMT é uma traquinagem juvenil”. Faz citações de desconhecidos “especialistas” (sic), pois só falam sob a condição de anonimato.
O covarde diz leviandades sem ser apresentada sua identidade (será fictícia?) e/ou um contraponto de quem defende posição oposta. “Começar a falar de MMT é uma bobagem sem tamanho. Assim como se falar sobre moeda comum do Mercosul e de acabar com a TLP [taxa de juros de longo prazo] do BNDES e voltar ao velho esquema de subsídios são iniciativas na vertente da ‘traquinagem juvenil’”.
Na “grande” (sic) imprensa brasileira, não há debate público plural, desde o início do golpismo contra a presidenta Dilma Roussef. Economistas social-desenvolvimentistas, especialmente os da Unicamp, onde ela fez o curso de doutorado, não foram mais aceitos em suas páginas com a rara exceção (Luiz Gonzaga Belluzzo) para confirmar a regra.
No dia (09/12/22) da nomeação de Fernando Haddad Haddad, o colunista-mor da Folha de S. Paulo busca responder a questão: “O que pensa Fernando Haddad sobre economia?” Denuncia-o: “já demonstrou apreço pela ideia de o aumento de gasto ter efeito multiplicador (a despesa extra vai render crescimento do PIB e da receita bastante para ser compensada), o que é, como tese geral, no mínimo controverso e inspiradora de besteira econômica grossa” [?!].
O “çábio” (sic) refuta esse conceito de origem keynesiana, provado de maneira lógica e estatística, em uma crítica não construtiva por não apresentar alternativa. Ele não justifica essa desclassificação conceitual, feita como ele fosse o dono-da-verdade e não necessitasse cumprir sua obrigação jornalística de informar aos leitores a respeito dessa sua opinião simplória com desconhecimento de causa.
Outro repórter do Valor, especialista (quase um porta-voz) no Banco Central do Brasil, pelo menos tenta reproduzir os argumentos dos proponentes da MMT. “Só há um limite para o quanto o governo pode financiar de gastos com a emissão de moeda: se a economia estiver em pleno emprego, rodando com toda a capacidade, a expansão fiscal poderá gerar inflação”.
Para os defensores dessa teoria, o Banco Central deve manter os juros os mais baixos possíveis, de preferência perto de zero. Os surtos inflacionários devem ser combatidos pelo governo não com a alta de juros, mas sim com o aumento de impostos ou o corte de gastos públicos, ou seja, com a política fiscal.
Os economistas ortodoxos e o mercado financeiro, porém, acham os partidários da MMT superestimarem o papel da ociosidade da economia para baixar a inflação e ignorarem outros fatores provocadores da alta de preços, como as expectativas. Se o governo saísse emitindo dinheiro para bancar mais gastos, os agentes econômicos adeptos da TQM (Teoria Quantitativa da Moeda) passariam a prever um aumento da inflação.
A alta nas expectativas de inflação se traduziria, de fato, em inflação mais alta, porque empresários e trabalhadores iriam se defender com maiores reajustes de preços e salários. O pressuposto é todos pensarem tal e qual os economistas ortodoxos!
Caso os juros fossem reduzidos drasticamente, os investidores chegariam à conclusão de a remuneração não compensar o risco de uma dívida pública com crescimento sem limites. Provavelmente, haveria uma fuga para o dólar, provocando a depreciação da moeda nacional e trazendo a inflação importada.
Esse ponto já foi alertado nos debates acadêmicos, realizados no Instituto de Economia da Unicamp, com o mais conhecido divulgador da MMT no Brasil: o respeitável André Lara Resende. Disse-lhe – e ele aceitou o argumento – a MMT não ser uma Teoria Geral aplicável em todos os lugares e tempos: depende do ciclo econômico, nos Estados Unidos, além de circunstanciar a uma economia periférica, quando aqui for aplicada sua dedução.
Todas boas decisões práticas têm como pré-requisito alguma teoria abstrata comprovada, cientifica e empiricamente, baixar para o nível de teoria aplicada transdisciplinar, reincorporando o antes abstraído, e finalmente datar e localizar. No caso de economias sob o império do dólar, é necessário, primeiro, verificar se ela (governo e empresas estatais e privadas) não está muito endividada em dólar.
Caso esse endividamento esteja sob controle e o país dispuser de reservas cambiais suficientes para estabilizar a taxa de câmbio, o problema a ser monitorado – além da fase do ciclo (grau de ociosidade da capacidade produtiva) – refere-se ao gerenciamento da liquidez. No caso brasileiro, com este comportamento o Banco Central coloca a Selic-mercado no nível da Selic-meta, de acordo com o regime de meta inflacionária.
O limite para definir um excesso de liquidez seria uma taxa de juro muito baixa em lugar da costumeira disparatada brasileira. Não garantiria mais a concentração da riqueza financeira? Provocaria fuga de capital para o dólar como ocorre na Argentina? Seria um “Deus-nos-acuda” (senão “as FFAA nos acuda”) como clamam os vestidos de camisa verde-e-amarela nas portas dos quarteis?
Quais são os fundamentos teóricos dessa gente golpista a favor de uma ditadura militar contra a alternância democrático-eleitoral de poder? É difícil crer ela ter pelo menos “dois neurônio (sem “s”)”…
Mas basta consultar na página do site Mises-Brasil para verificar as ideias de os “austríacos tupiniquins” não serem distintas das tão raras dos “patriotários”. Paradoxalmente, os adeptos da Escola Austríaca e, principalmente, do neofascista Ludwig von Mises, cujo clamor principal era contra o intervencionismo estatal, são aliados dos defensores da “intervenção militar e/ou federal”! Por qual razão? Porque colocam acima de tudo sua doutrina anticomunista. Em nome dela, Von Mises defendeu o fascismo italiano com fosse uma justa barreira.
Comunismo utópico – uma crítica da realidade capitalista – nunca existiu de fato. Houve sim, em nome dele, uma experiência da URSS com regime totalitário, mas criticada por democratas igualitários e findada no fim de 1991, ou seja, há mais de 30 anos! A China tirou seu atraso socioeconômico e tecnológico com capitalismo de Estado ou socialismo de mercado? Na verdade, com planejamento articulando Estado e mercado!
Anacronismo consiste em erro cronológico, quando determinados conceitos, pensamentos e costumes são usados para retratar uma época diferente daquela a qual de fato pertencem. Ele é caracterizado pelo desalinhamento e falta de correspondência entre as particularidades das diferentes épocas, quando fatores próprios de cada tempo são, erroneamente, misturados em uma mesma narrativa.
Em artigo (https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1015), os libertários “austríacos” de extrema direita listam “as medidas julgadas essenciais e inegociáveis a serem implantadas para a liberdade finalmente chegar ao Brasil”: reduzir acentuadamente os gastos do governo; reduzir acentuadamente todos os impostos; desregulamentar e desburocratizar todos os setores da economia; descriminalizar a produção, a venda e o consumo de todas as drogas; abolir o banco central, os ministérios e as agências reguladores; privatizar todas as empresas estatais; acabar com a previdência pública compulsória; liberar o porte irrestrito de armas; acabar com o monopólio estatal sobre a justiça e a segurança; acabar com a obrigatoriedade do diploma e liberar o ensino domiciliar (homeschooling).
Os “desemparados pela ditadura militar” usam e abusam da Falácia do Espantalho: apresentam de forma caricata os argumentos da esquerda, com o objetivo de atacar essas falsas ideias em vez dos argumentos em si. Aqui, não faço isso com os argumentos da direita, pois cito literalmente o defendido pelos estatofóbicos: o capitalismo selvagem sem nenhuma salvaguarda para os desamparados pela “sorte do berço”.
Camisa da Seleção da Áustria (epa!).
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/