Da lavagem cerebral ao arejamento mental

Imagem: Iam Hogir
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Por FLÁVIO R. KOTHE & JÚLIO CÉSAR BRASIL*

Há um século a população brasileira vem sofrendo de PSYOPS, lavagens cerebrais pela mídia segundo os interesses do governo americano

A formação brasileira tem sido marcada por séculos de lavagens cerebrais inconscientes. Começou com a Igreja Católica, que assessorava a dominação da Corte e recebia ricas prebendas por isso. As cidades eram construídas em torno de uma igreja matriz, para que todos girassem em torno dela. Isso foi estendido para dentro das escolas, em que se doutrinavam crianças que não tinham tirocínio crítico para pensar por si. Abuso de incapazes nunca foi um nome dado a isso.

No entanto, a “inteligência esclarecida” ficou espantada com os delírios golpistas evangélicos, os acampamentos em frente aos quartéis, o chamamento de ETs com celulares para o alto. O ridículo se concentra num ponto para não haver espanto com o delírio permanente da história.

Há um século a população brasileira vem sofrendo de PSYOPS, lavagens cerebrais pela mídia segundo os interesses do governo americano, mas esse conceito não é repassado nos cursos das universidades nem na grande mídia. Não há politização no sentido da conscientização dos vetores geopolíticos que atuam sobre nós. Se começou com simples filmes de faroeste, em que se aprendia a torcer pelo mocinho contra índios e mexicanos, expandiu-se pelos “enlatados”, domina as narrativas na mídia e os noticiários que são apresentados. As pessoas reproduzem o que lhes foi doutrinado e acham que estão pensando por si. São marionetes.

Qual é a consciência crítica brasileira diante do que se diz em filosofia da arte nos últimos anos? Promove-se Danto como grande novidade, sugere-se que, quanto mais o artefato for lixo reciclado, tanto mais contemporânea e artística será a obra (invertendo a hipótese de Hípias de que belo é o ouro, refutada por Sócrates dizendo que Fídias havia preferido o mármore, a prata e o marfim para representar os deuses) ou que colocar algo como um pissoir numa galeria é um choque estético, temos de concluir que não temos nada novo, mas de novo se cometem enganos antigos. Há carência de informações. O principal é, porém, que não se está vendo o que é mais relevante, algo que vem sendo determinado por uma guerra híbrida entre um mundo unipolar e outro que pretende ser multipolar.

Com isso não estamos querendo sugerir que no Brasil se esteja pensando melhor. Pelo contrário, a medianidade do pensamento é assustadora. Os grandes problemas não são postos nem aprofundados. O que prepondera na universidade é certa miopia técnica, que se crê acertada ao só catar detalhes de sua área, sem ver a necessidade de correlação com outras áreas e sem notar que o reexame da dimensão teórica dos problemas práticos muda o modo de os encarar e resolver.

A técnica quer resolver um problema, mas não quer pensar adiante. Evita buscar os caminhos que a pesquisa interdisciplinar já vem propondo há tempos. É difícil ser competente em mais de uma área, mas não se é competente em nenhuma se não se for competente em mais de uma. É mais fácil fazer o mesmo de sempre.

Oscar Niemeyer dizia que não conhece arquitetura quem conhece apenas arquitetura. O minimalismo, por exemplo, pode poupar custos e aumentar lucros. A geração de arquitetos que exercia uma reflexão humanística mais ampla parece ter perdido seus maiores representantes e não foi substituída por uma geração mais apta a continuar o trabalho. Pelo contrário, tem-se cada vez mais o banimento da reflexão filosófica, sociológica, econômica e, principalmente, política.

Desenvolveu-se algo que se tem chamado de “arquitetura verde” e “sustentabilidade”, mas isso tem mais a ver com uma diminuição de custos com água e energia elétrica do que com a discussão das premissas. É mais para fazer o mesmo de sempre. Em vez de se empenhar em romper com os paradigmas estabelecidos, essa abordagem parece contentar-se com modificar superficialmente o status quo. Assim, apesar da intenção de promover avanços, a arquitetura contemporânea frequentemente se encontra aprisionada em uma contradição: almeja inovação, mas muitas vezes produz apenas variações do usual.

A aspiração por uma abordagem minimalista extrema emerge como outro exemplo flagrante dessa contradição. Sob a justificativa de buscar a essência do simples, essa tendência frequentemente oculta uma motivação subjacente mais voltada para a economia e a maximização dos lucros. O que aparentemente seria uma busca pela pureza arquitetônica muitas vezes mascara a necessidade de redução de custos e aprimoramento do retorno financeiro.

Por outro lado, observa-se uma paradoxal tirania da uniformidade e massificação no cenário global das construções. Edifícios lisos, espelhados e concretados, desprovidos de individualidade, parecem surgir em profusão, espalhando-se de um polo ao outro do globo. Nesse emaranhado de estruturas, a diversidade de estilos e expressões arquitetônicas dá lugar a uma paisagem repetitiva e homogênea. A busca por eficiência e padronização resulta na perda da identidade própria de cada local e cultura.

Assim, a arquitetura contemporânea se encontra em uma encruzilhada intrigante. Enquanto os intentos de inovação, simplicidade e sustentabilidade são proclamados, as forças subjacentes de economia, lucro e uniformidade limitam o alcance dessas aspirações. A riqueza potencial da arquitetura como expressão cultural e artística enfrenta desafios no mundo atual, convidando a uma reflexão sobre os valores subjacentes que moldam o ambiente construído.

A arquitetura se destina a promover conforto. Todos querem uma casa boa numa vizinhança agradável. Uma pergunta primária seria, porém, saber se o ser humano realmente merece isso, se ele é “humano”. Qual é a relação entre construir e destruir? Até que ponto o conforto humano é feito às custas do desconforto da natureza? A premissa simples se torna simplória. A resposta não é apenas apontar para mansões construídas por traficantes em favelas ou condomínios horizontais.

Delimitar a validade da premissa exige examinar a relação intrincada entre conforto e mérito humano em um contexto mais amplo. Não se trata apenas de constatar extremos, mas de explorar nuances e complexidades que envolvem o que caracteriza o “humano”. O homem não sabe o que ele é, mas tem certeza de ser melhor do que de fato é. A aparente simplicidade da premissa arquitetônica exige contemplação mais ampla. Não há resposta plena, mas a pergunta transcende exemplos extremados e adentra um terreno que abarca variáveis éticas, sociais e filosóficas.

Vitrúvio não tinha dúvidas em dedicar sua obra ao divino César e se concentrar em promover, segundo modelos gregos, a construção de templos, prédios governamentais e palácios que mostrassem a grandeza do império romano. Sua “ideia” era ostentar em prédios a grandeza. Isso está no British Museum, na Museum Insel, em Washington. O imperialismo romano tentou ser uma continuação do helênico e foi sucedido pelo grande império da Igreja Católica, que se expandiu por toda a América Latina e nos atinge diretamente.

Não é por acaso que Washington foi construída no modelo neoclássico da antiguidade. Os ianques queriam fazer um grande império, segundo os modelos antigos. Os Estados Unidos não são apenas um país, uma república que se diz democrática: são um império, que nos domina e nos controla. Estão em guerra permanente. Os dois partidos que o governam são a favor da guerra. São um país que se formou com o genocídio sistemático dos povos indígenas, a anexação de territórios franceses, a tomada de grande parte do México e só não tomou o que hoje é o Canadá porque a Inglaterra não deixou. Tem quase mil bases militares fora do país: os países tomados deixam de ser soberanos.

Os militares brasileiros têm uma tradição de golpes, a começar com a proclamação da república (que exige ser escrita em maiúsculas, o corretor voltou a avisar, para que se respeite a divindade do gesto, sendo suspeito de monarquista quem não o cumpra), mas no século XX passaram a seguir comandos americanos, assim como Dom Pedro I pouco após a independência fez a indecência de largar o governo no Brasil para obedecer ao que os ingleses queriam que ele fizesse em Portugal. Manter a monarquia teria sido dar força aos latifundiários mais reacionários, mas a república não cuidar dos libertos dizia bem do compromisso militar com o latifúndio. São pequenos exemplos de reflexões que não são feitas em aula.

A escola brasileira não desenvolve uma consciência crítica nos jovens. Não houve e não há politização. O problema não é apenas não substituir o livro didático por mídia eletrônica, a ponto de suprimir a leitura de textos densos e longos. O problema é que nem se sabe ler e decifrar a mídia porque a própria mídia corporativa não sabe ler, ou pior, não quer que se leia.

Se a guerra da Ucrânia parece conveniente aos americanos, pois ataca a Rússia sem matar soldados ianques, sem se desgastar com milhares de mortos sendo entregues às famílias nos Estados Unidos, como ocorreu nas tantas guerras em que o imperialismo tem se metido, ela é, no entanto, um sintoma para possíveis mudanças no mundo. O que está em jogo é o rompimento gradual da ordem unipolar, abrindo espaços para a emergência de novas abordagens nas esferas do pensamento, das relações internacionais, do comércio e da convivência entre nações.

Mesmo que a análise da situação na mídia corporativa não vá além da visão superficial, os fatos continuam a carregar as contradições. Isso reforça a necessidade de examinar cuidadosamente não apenas os resultados imediatos, mas também os efeitos mais amplos no tabuleiro das relações internacionais e das nossas reações mentais.

Estamos em plena guerra, militar e digital, fazendo de conta que a militar ainda não nos atingiu, embora esteja explodindo em vários lugares. O BRICS-11 pode ser uma virada na história, mas não é certo que estejamos à altura dessa mudança. A nossa vocação é negacionista. Negamos a morte como negamos que a guerra digital esteja conosco. Estamos mortos no espírito e não sabemos: somos imortais porque já morremos, não podemos morrer mais. Cadáveres adiados que procriam cada vez menos ideias. A agressiva política identitária, se for parte das Psyops em curso, serve para esconder o problema da desigualdade social, da contraposição entre ricos e pobres inerente ao capitalismo. Não pensar e ficar grudado na televisão não irá resolver as coisas: são formas de fuga, como são as religiões.

Essas ânsias imperiais que marcam a história e são etapas de seu percurso mostram a predominância de um ser dito humano, mas que é dominado pela vontade de poder: ele trata de se impor a quem puder, a tudo que puder. A técnica é a aplicação prática dessa ânsia de dominar. Ela quer resolver coisas práticas, sem discutir seus fundamentos. Ela não pensa adiante. Acha que o que importa é o que está no horizonte do que ela olha. Não só, porém, horizontes se deslocam com o andar, dando novas perspectivas a quem quer olhar: as coisas se tornam diferentes, não são mais as mesmas.

Quando de uma coisa firmamos um objeto de conhecimento, fazemos de conta que a coisa é esse nosso objeto; da perspectiva da coisa, o nosso objeto a deixou intangida e intocada. Recobrimos com linguagens várias as nossas percepções, tendo a ânsia de que, quanto mais signos usamos, mais chegamos às coisas, enquanto de fato mais delas nos afastamos. De certo modo, a coisa é o inconsciente do nosso objeto de conhecimento, que se torna então um objeto de encobrimento.

Quando se fala em hermenêutica, supõe-se que ela seja um modo de explicar e explicitar o que estaria contido num texto: o “conteúdo subjacente”. O que aí se faz é, no entanto, a tradução do seu desconhecimento ao nosso modo de entendimento. Não se vê o que foi “contido”: impedido de ser acessado, manipulado para que não se visse. Não entendemos o “original”, pois ele se torna a projeção de nossa reconstrução, a tradução de nós no outro como se fosse o outro. Traduzimos como original a tradução e versão que dele fizemos para nós.

A “análise” deveria partir de um não-texto, de algo que não é o texto que nos é apresentado para ser explicado e explicitado em outra linguagem. A análise precisa se negar como mera aplicação de esquemas a priori para poder chegar a si mesma. O texto proposto só se entende a partir do texto não posto. A compreensão do texto dado emerge somente em relação ao texto que só foi “presenteado” como ausência, escamoteado.

O ausente, aquilo que não foi dito, pode delinear, porém, com mais clareza o perfil do que nos é proposto e imposto. A compreensão do ser se sugere e surge a partir da concepção do não-ser. Só se pode pensar o ser a partir do não-ser, mas também o não-ser só a partir do ser.

Por que existe o ente e não o nada? A questão de Leibniz tinha uma teologia evidente: porque Deus assim o quis. E se não há deus nem vontade? Será que as coisas são como o homem pretende determinar que elas sejam? É essa vontade de poder que de fato move toda a tradição filosófica, científica e técnica ocidental?

Não basta Martin Heidegger dizer que a dominação americana sobre o mundo é uma continuação da ânsia europeia de dominar e colonizar o mundo. Há uma diferença aí. No que ele diz, é como se a Europa continuasse a dominar o mundo numa Europa dominada. Falta ver que a Europa – com suas antes poderosas metrópoles coloniais – se tornou colônia de uma antiga colônia britânica. Os pensadores europeus não sabem pensar isso, não ousam pensar que seus Estados não são soberanos. Os que tentaram foram eliminados ou postos de escanteio. Eles têm medo de pensar o que dói no seu orgulho de antigas metrópoles, ora invadidas por carentes das antigas colônias e lutando para manter formas de neocolonialismo.

Aos poucos surgem preocupações com a preservação do meio ambiente e com a necessidade de pensar o social em termos de ecossociologia. Elas não chegam, porém, a ver o “humano” da perspectiva das vítimas. Endossar a dominação da natureza é aceitar a dominação social. A arte tem dado sustentação e apoio a ambas. É preciso desconfiar de sua aura e seu tabu.

A história da civilização tende a ser uma história de destruições, que se vê só como construção positiva. Há um endosso dos senhorios do passado para acatar a dominação ora vigente: submeter-se. Essa visão retrospectiva limita o pensamento prospectivo, tornando difícil a formulação de soluções avançadas.

Quando a projeção para o futuro é negligenciada, ocorre uma interrupção no processo de reflexão. Constitui um empecilho para que se pense adiante. Quando não se pensa adiante, não se pensa: fica-se a repetir, parado. Pensar é errância: busca de acertos em meio a erros. Acerto não é apenas o resultado prático de conseguir o que se pretende.

Essa tendência ao eco também encontra eco não só na formação dos arquitetos modernos, onde o enfoque excessivo no tecnicismo não antevê que a evolução tecnológica conduzirá cada vez mais ao trabalho realizado por máquinas, programas de computador e plataformas ainda desconhecidas. O aluno é preparado para tarefas que, em breve, serão redundantes, enquanto a preparação para as futuras demandas é negligenciada. Essa falta de antecipação é um mecanismo de conforto, pois pensar adiante traz consigo desconforto e desafio. Em vez da autonomia do pensamento, há preferência pela submissão.

Se o tecnicismo na formação acadêmica em geral não vê que o trabalho será cada vez mais feito por máquinas, por programas de computação, por plataformas que ainda sequer conhecemos, se o aluno está sendo preparado para fazer o que não vai precisar e não está sendo preparado para o que será preciso fazer, o estabelecido é um negacionismo. Está superado e não sabe que está. É cômodo não pensar adiante. Pensar dói, faz mal, gera mal-estar. Quer-se olhos baixados e joelhos genuflexos, não autonomia do pensar.

A universidade brasileira está apenas formando mão de obra especializada, mas não está pensando. Apenas pensa que pensa. Ela é alienada, sem politização. Quer o máximo de produto no mínimo de tempo e gasto possível.

Refletir em uma antiga colônia é apenas aparar e reproduzir a luz da metrópole. Não é espaço de pesquisa para pensamento mais avançado. A piada é que os intelectuais brasileiros tomam como metrópoles de referência países que já se tornaram colônias de uma antiga colônia, com o território ocupado por tropas estrangeiras já não são mais Estados soberanos, mas os intelectuais europeus não ousam pensar isso que os determina e define.

Quem pensa pode pensar errado. Tem de pensar errado. Não pensa quem pensa nos parâmetros do estabelecido. Ele apenas faz variações em torno do já sabido e dito. Quem pensa “direito” supõe que pensa errado quem pensa diferente.

“Entender” o dito alheio é fazer a sua tradução para os conceitos de quem supõe estar entendendo. Ele supõe estar, porque reduziu a alteridade à sua egoidade, num ego que é incapaz de saber seus limites porque pressupõe estar apenas dizendo as delimitações e os limites do “objeto” de sua identificação. Ele recobre a “coisa” com seu objeto identitário. É uma ficção alienada.

A “pesquisa” proposta por editais tem itens de avaliação problemáticos, que regem tudo há mais de vinte anos. Por exemplo, um artigo vale dez pontos, um capítulo vale dez: e um livro inteiro vale dez! Ora, quem escreveu isso? Quem não consegue escrever um livro e, se escrever, não vai fazer diferença. Outro item diz que só valem as publicações feitas nos últimos dois anos, no máximo cinco: a quem serve isso? É uma discriminação contra quem tem uma vida de produções. Coloca-se como critério que o autor seja de um gênero determinado, de uma etnia, de uma predileção sexual. Isso não tem nada a ver com a qualidade do texto, que deveria ser o único critério. Sob a aparência de ser “criterioso”, é-se discriminador e preconceituoso.

O problema é ainda pior. Quem realmente pensa não pode ser avaliado pelos “´pares”, pois ele não tem pares, ele é ímpar, diferenciado, desigual. Os pareceristas vão dizer que é inviável todo projeto que não for viável para as suas limitadas “inteligências”. Quanto mais limitados são, mais poder lhes é atribuído. 

Só para dar outro exemplo: nos cursos de Letras faz-se a doutrinação do cânone brasileiro e da gramática normativa da língua portuguesa como se fossem absolutos. Faz-se assim a interiorização do colonialismo lusitano e a propaganda da oligarquia de origem latifundiária e escravista. Sem saber que se faz ou se, sabendo, tanto faz quanto fez, exerce-se a prepotência como se fosse sabedoria.

O problema corrente mais sério de leitura talvez não seja sequer o analfabetismo funcional por via eletrônica nem o analfabetismo fático e a falta de leitura da maior parte da população. O texto mais importante na sociedade ocidental ainda é a Bíblia, mas não há um curso de Letras que discuta para valer essa questão, enquanto padres, pastores e doutrinadores ficam ocupando canais e mais canais de televisão, templos e púlpitos, microfones e públicos cantantes para ditar o caminho da salvação. Não há enfrentamento, não há liberdade de expressão. Uma antena emissora é como um púlpito: ditado de cima para baixo, sem perguntas.

Pensar exige que se vejam as coisas de fora daquilo que se supõe que elas sejam. Quando se converte uma coisa em objeto do conhecimento, passa-se a crer que a coisa seja este objeto mental, mas ele serve para encobrir o que a coisa é, e a deixa inatingida embora tenha a pretensão de ter resolvido tudo. Que o ser humano seja dominado pela ânsia de dominação que o caracteriza tem por sequela a devastação que ele deixa como rastro de sua presença.

A história da civilização é a história do avanço da barbárie. Só quando passarmos a ver as coisas pelo avesso do que nos tem sido ensinado é que, talvez, possamos começar a pensar. O que se tem feito, por enquanto, é evitar o vazio daquilo que dizemos ser o ser das coisas, fazendo de conta que o que dizemos é o bastante, é tudo o que há para dizer. Só caindo nesse vazio poderemos captar algo do não-ser daquilo que se tem dito que é, só assim talvez aprendamos a voar e pensar. O nosso medo de nos esborracharmos no precipício é, porém, tamanho, que ficamos paralisados, como se congelados no ar estejamos nos preservando.

Quando Martin Heidegger, o maior filósofo do século XX, propunha que a coisa se torna coisa pelo mundo em que o homem a insere, voltava a fazer tudo girar em torno do sujeito do conhecimento. Ora, a maioria das coisas que há pelos espaços siderais não são do conhecimento humano, não fazem parte do seu mundinho. Somos uma espécie precária e provisória de animal, que há de desaparecer como milhões de outras já desapareceram. Podemos até rezar para que os ETs nos visitem e possamos nos sentir menos sozinho e angustiados, mas serão apenas rezas nossas. Há muita coisa inexplicada. Nossas explicações antes as encobrem do que revelam.

Jan Mukařovsky tentou uma explicação da arte como um processo de comunicação. O autor seria o emissor, autor de um artefato que, ao ser apreendido pelo receptor, se tornaria um objeto estético. O autor é, porém, o primeiro receptor de seu artefato e, ao constituir um objeto estético, formaria a obra, assim como o receptor, ao reconstruir o artefato mediante as decifrações propostas no seu objeto estético, formaria também a obra. A obra do autor nunca seria idêntica à do receptor. Entender é desentender.

Daí se propôs que a do autor seria superior à do receptor, mas isso é problemático, pois muitas vezes o autor não sabe o que realmente é sua obra. Cervantes achava que sua Galateia era mais importante que o Don Quijote, obra que começou como um conto e só se tornou novela por instância de pessoas próximas, só tendo a segunda parte sido escrita para se contrapor a imitações e continuações que já estavam aparecendo. Deixou morrer seu personagem no fim.

O que o autor deixa para os outros é a ruína da obra, enquanto os pósteros tendem a deixar a obra em ruínas. Os receptores precisam recriar a obra, para que ela continue viva. Jan Mukařovsky não desenvolveu a diferença entre a coisa que da obra restou, enquanto materialização de uma concepção do autor, e aquilo que a obra se torna com a ressurreição feita pelos receptores. A arte não é um processo de comunicação, ainda que algo disso nela ocorra. Tornar comum o que era de um não é o que a grande obra de arte faz. Ela como que se resguarda em si, ela esconde da vista alheia o mais recôndito que a move. Ela se descomunica.

É preciso, portanto, desconfiar do que semioticistas e filósofos dizem sobre a arte. Quando psicanalistas falam sobre romances, discorrem mais sobre suas teorias profissionais do que se abre ao diferente da obra. Grosso engano dos filósofos é acharem que o belo seja o condutor da ideia, como se as obras de arte fossem ubres cheios em que eles podem ir mamar ideias. O sociólogo que examina arte pode estabelecer correlações curiosas, mas em geral não consegue ver no autor mais que alguém que expressa a opinião de um grupo social.

A arte não se resolve pelas ciências do entendimento, pois o belo e o sublime estão além do que pode ser apreendido por conceitos. É preciso a vivência da obra, captar suas pulsões e tensões internas, para sentir sua abrangência. Só começamos a entender uma obra quando captamos algo daquilo que dela não conseguimos entender. Se ela não conseguiu expressar isso, não se realiza como arte. A hermenêutica deve nos levar mais a interrogações do que a respostas.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética e pesquisador sênior na UnB. Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática).

*Júlio César Brasil é doutor em filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).


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