Anjo do bem, gênio do mal

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Por ANDRÉ RICARDO DIAS*

Comentário sobre o livro de Paulinho Lima

Anjo do bem, gênio do mal, escrito por Paulinho Lima, nome importante para tantas carreiras e obras do cinema, do teatro e da música popular brasileira, é uma contribuição para a escrita da nossa história, como sentencia o poeta Antônio Cícero já na contracapa. O título remete à canção “Perigo”, gravada por Zizi Possi e que fora composta pelo autor em parceria com o letrista Nico Rezende.

Com livros à mão cheia, um pesquisador interessado na cultura brasileira da segunda metade do século se depara com nomes que, embora pouco conhecidos do grande público, constam como definidores de tantos eventos e produtos da cultura que delinearam os rumos de uma certa modernidade tardia formadora do nosso mainstream. Isto, se tomarmos esta história como produto do mercado, uma de suas faces. Outra, poderia falar mais da visceralidade desta formação. Improvisos, puros atos de criação, acasos, afinidades, eletividades que formaram e criaram os rumos de uma história que comporta acontecimentos e personagens que povoam o nosso imaginário de fãs, pesquisadores ou de quem simplesmente curte o que de melhor pudemos fazer, até hoje, estão ali relatados.

Paulinho Lima é um desses nomes dos bastidores, das letras, dos enredos e, também, dos negócios que envolvem o mundo da cultura. E, pelas próprias letras, em seu livro faz jus à sua história com a honestidade e generosidade de quem viveu uma trajetória que faz inveja ao admirador saudosista de um passado que não viveu. Lemos sobre o homem, o trabalhador da cultura, o artista, o fã, o pensador, o amigo.

Dizemos sua história porque Anjo do bem, gênio do mal é uma espécie de diário aberto. Não uma biografia, mas um diário na sua verdade sem plumas. A vida do autor é narrada desde sua infância, o que, à princípio, deixa intrigado o leitor ávido pelas histórias dos artistas com os quais o autor conviveu e os momentos que viveu e acontecimentos que viu, já anunciados nas capas do livro.

Entretanto, logo se vê que a história pessoal dialoga e introduz uma compreensão maior da história dos grandes eventos e personagens. Trata-se, a seu modo, de uma história social de capítulos importantes da cultura brasileira. E nela, a Bahia é o porto e nascedouro de uma geração da qual todo o país deverá o muito do que de bom aqui se criou. A história pessoal nos ajuda a entender a formação de um jovem da década que nos deu nomes como Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Glauber Rocha, isto, para ficarmos apenas em território baiano. Nela, a migração ao sudeste, as idas e temporadas na Europa são contemporâneas ao surgimento e à explosão da nossa música popular e do nosso cinema-novo quase que simultaneamente, aqui e no exterior.

Essa mesma história nos leva em especial ao sul da Bahia, ao ciclo do cacau, à modernidade do interior, modernidade que causa surpresa ao senso comum que pressupõe um atraso econômico e social e o regionalismo caricatural nas formações sociais de nossos sertões, sobretudo quando se fala em décadas em que, do universo rural, despontavam nomes e formas de uma cultura que criou um nordeste próprio e, com ele, suas alegorias. Tema tão debatido e que se desvela pelas andanças – as nossas – pela Itabuna da infância e da juventude do autor nas páginas dos primeiros capítulos.

Quando Paulinho Lima descreve suas lembranças com uma verdade que salta da prolixidade, dos detalhes, dos afetos vertidos nas palavras, da coesão e coerência históricas patentes, o cacau, a música, o teatro e o cinema se ligam de modo natural. Tudo isto, na Itabuna dos anos 1950 e início dos anos 1960, conformam um verdadeiro e delicioso enredo próprio de uma novela de Dias Gomes.

Paulinho Lima protagonizou os eventos que despertam nossa curiosidade e admiração, nós, que fazemos nossa cabeça ouvindo, assistindo e acompanhando artistas e movimentos contemporâneos dos seus trabalhos. Dos teatros, grupos teatrais, atores e atrizes que definiram a dramaturgia, os palcos e o cinema (Tônia Carrero, o casal Cacilda Becker e Walmor Chagas, Fernanda Montenegro, Odete Lara, Sergio Britto, Glauber Rocha e tantos outros) vamos à endereços no Rio, em Salvador, São Paulo, Londres e Roma. Passamos pela vida privada, conhecemos fatos e afetos, obscuridades, gentilezas e o caráter destes tantos personagens.

Tanto que, quando menos se espera, estamos no apartamento de Caetano e Dedé Veloso no exílio londrino. Sabemos do dia-a-dia de um Caetano Veloso deprimido e o vemos desolado, agora, através de outro prisma, para além de seus relatos por vezes contados em livros como Verdade Tropical, em entrevistas e artigos. Vemos a cena em que o autor lava os cabelos de um Caetano Veloso desamparado, inerte na banheira desse mesmo apartamento. No Brasil, entramos nas casas alugadas por Gal Costa no Rio. O cotidiano do início de carreira, de muito trabalho, aperto econômico, suor e esforços que trazem à tona a trabalhadora, a amiga e a filha por trás da artista.

Já na região central do Rio, entramos na casa de Ítalo Rossi, abrigo do autor na sua chegada à cidade, na cobertura-comunidade dos Novos Baianos. Nos apartamentos e conjugados pagos com dificuldade por estes e outras dezenas de artistas, cantores, atores, compositores, músicos com os quais conviveu o autor. Um contexto de vida em que, pela força da migração exigida pelo mercado das artes naqueles tempos, inovar e transgredir as normas vigentes custariam a própria sobrevivência. A tudo isto, soma-se a ditadura civil-militar que tanto reprimiu artistas, produtores e ameaçou a existência e integridade dos próprios artistas e de espaços de cultura. No livro, encontramos relatos de episódios pessoais e de fatos notórios no campo da cultura decorridos durante este período.

No avançar das décadas, chegamos aos anos 1980, momento em que o livro traz histórias e relatos valiosos sobre o período, sobretudo devido à pouca literatura sobre a cultura brasileira nestes anos. Zizi Possi, Angela Ro Ro, Marina Lima, Fafá de Belém, Sueli Costa (esta, dentre seus colegas compositores), são algumas das personagens destas páginas que perfizeram uma inflexão na música popular, introduzindo novos sons e ritmos, como o pop de Marina Lima e a verve de Ângela Ro Ro. A história pessoal de Paulinho Lima adentra os anos 2000, trazendo términos, mudanças e recomeços. Também a partida de nomes caros ao autor e os novos rumos tomados por uma história de mais de sessenta anos no mundo da cultura.

Descobri Anjo do bem, gênio do mal no contexto da partida de Gal Costa. Senti vontade de ler algo que trouxesse, em livro, um pouco de sua história e soube que ali havia muito sobre o início de sua carreira. Recebi meu exemplar pelo correio, enviado pelo próprio autor. O endereço remetente localiza-se em Salvador. Nas redes sociais, Paulinho Lima informa aos seus seguidores de seu regresso à Bahia. Mais uma vez do Rio à Bahia, como vimos em tantos episódios narrados no livro. E assim fica uma vontade grande de ver o autor voltando ao Rio para fazer tudo de novo. No fundo, gostaríamos que histórias como estas se repetissem. A do autor e de tudo o que se desenvolveu ao seu redor.

*André Ricardo Dias é professor de filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF Sertão PE).

Referência


Paulinho Lima. Anjo do bem, gênio do mal. Rio de Janeiro, Luz da cidade, 2016, 536 págs (https://amzn.to/45aqSTe).

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