Por GUILHERME PREGER*
A força da teoria marxista foi colocar o fundamento do valor social no emprego do tempo
Pela teoria dos sistemas, a economia é um sistema social autopoiético[i] cujo meio (medium) é o emprego, isto é, o emprego do tempo.[ii] A distinção do emprego do meio para a economia é entre tempo livre/ocupado. Esta concepção compatibiliza a teoria dos sistemas com a teoria marxista, pois é possível provar que, para Karl Marx, o “trabalho” (Arbeit) como fundamento da economia é basicamente uma variável temporal (horas trabalhadas).[iii]
No entanto, Marx vê o capitalismo como um sistema cuja principal forma é a mercadoria (e não o dinheiro, que é apenas uma das “metamorfoses” da mercadoria). A mercadoria para Marx é uma forma de dois lados. O lado de dentro (capitalista) é o “valor de troca”; o lado de fora (não capitalista) é o “valor de uso”. Assim, entendemos a produção técnica em Marx como uma interface do sistema capitalista com o “mundo de fora” do sistema capitalista, que é o mundo da vida do trabalhador, pois a técnica é aquilo que regula os valores de uso dos objetos produzidos. Karl Marx também associou o valor de uso ao tempo pelo seu “consumo”, mas com outra temporalidade.
Pela ideologia do sistema capitalista, todo “valor de troca” (o lado interno da forma-mercadoria) corresponde à troca de equivalentes. A equivalência das trocas é o principal argumento clássico para a tendência do mercado ao equilíbrio econômico e à justeza das transações. Boa parte de O capital se esforça em desmentir esta tese. É por isso que Marx elabora o conceito de “mais-valia”, assinalando com isso precisamente que não há equivalência nas trocas do sistema capitalista.
A razão é que o “tempo” é uma variável que não permite equivalência de troca. Pela segunda lei da termodinâmica o tempo não admite reversibilidade, o que significa que ele “não se conserva”; portanto, o capitalismo como sistema econômico baseado no emprego do tempo não pode estar baseado numa troca de equivalentes. Marx então prova a “falsidade” da tese liberal do equilíbrio econômico pela não equivalência das trocas.
A mais-valia é entendida em Marx de forma absoluta (exploração direta do trabalho) ou relativa (exploração pela produtividade do trabalho) pela absorção de valor das horas realmente trabalhadas pelo trabalhador. Tal valor reflete a resolução entre “tempo livre/ocupado” observada pelo lado do trabalhador (ou seja, pelo lado do mundo da vida). Porém, o sistema capitalista só reconhece a mercadoria e suas respectivas “metamorfoses” como suas formas básicas (BELLUZZO, 2013). Como o valor de troca é assumido o mesmo da produção ao consumo, a questão temporal interna ao sistema deve ser observada por outra perspectiva, aquela do capitalista.
A questão temporal pela perspectiva do sistema capitalista entra através da consideração da duração do circuito econômico (D-M-P-M’-D’),[iv] ou seja, o circuito se faz do investimento de capital (D) até a sua realização em dinheiro (D’). É interesse do capitalista reduzir ao máximo a duração desse circuito. Ao mesmo tempo, o reinvestimento de capital (D’-D) inicia outro ciclo. Portanto, a redução na duração do circuito individual permite maior número de ciclos anuais. Se um ciclo durava um ano, mas pelo desenvolvimento produtivo ele passa a ser realizado em seis meses, isso significa que no mesmo período de um ano quando havia um ciclo agora há dois. A redução temporal do circuito à metade duplicou a frequência dos ciclos. Quanto maior a quantidade de ciclos, maior a mais-valia acumulada, pois só após a realização completa do circuito é que o capitalista tem o retorno de seu investimento (D’).
No entanto, este processo tem a sua “contradição”. Exatamente porque a redução temporal de um circuito unitário aumenta a frequência dos ciclos, isso gera uma sobrecarga sobre o setor de realização, que basicamente é o setor terciário de comercialização. É esta contradição que gera os problemas da “superprodução”. Um ciclo não deveria começar antes de outro terminar, e a sobreposição dos ciclos satura (“estressa”) o setor terciário responsável por sua realização.
Na atual virada digital da economia pela sua “plataformização”, a duração temporal de um ciclo individual foi substancialmente reduzida pela economia de tempo obtida pela racionalização da logística digital, e pela maior adequação entre a oferta e a demanda dos produtos.[v] A consequência desse avanço técnico é o aumento da frequência dos ciclos, gerando maiores sobrecargas no setor varejista.
É possível especular que o aumento da intensidade da reprodução dos ciclos sobre o setor varejista e sua saturação é uma das principais causas do recrudescimento da extrema direita em termos políticos globais, pois esse movimento, como muitos estudos demonstram, é composto sobretudo pela assim chamada classe “pequeno-burguesa”, que basicamente é a classe dos comerciantes. No caso brasileiro, a ascensão da burguesia varejista no bolsonarismo é caso notável e pacífico. Não desenvolverei essa tese neste artigo; no entanto, observo que tal setor do capitalismo costumava ser o menos privilegiado na acumulação de capital, mas ganhou maior importância sistêmica face justamente ao aumento da frequência dos ciclos produtivos.
Outra consequência antevista do aumento na “rotação” dos ciclos é simplesmente aquilo que entendemos pela “aceleração” do sistema. O sistema está “rodando” mais rápido. Mas essa aceleração tem um custo de entropia que prejudica a questão do “aquecimento global”. Quanto mais rápida é a rotação do sistema capitalista pela frequência de seus ciclos de produção, maior a entropia despejada no ambiente por esse processo. Como o sistema é “alimentado” majoritariamente por combustíveis fósseis, isso se traduz em aquecimento global. Tal é uma preocupação ecológica resultante da aceleração do sistema que merece um artigo exclusivo.
O que importa aqui assinalar como conclusão é que o sistema capitalista literalmente “consome tempo social”. Se a economia é de fato a organização do emprego do tempo, como defendi no início deste artigo, a repetição contínua e mais acelerada dos ciclos econômicos capitalistas mantém a permanente “ocupação” do tempo do trabalho. A produtividade técnica deveria reduzir o tempo ocupado e ampliar o tempo livre dos trabalhadores, mas não é isso o que acontece. Pela mais-valia absoluta, o tempo livre se transforma em desemprego; pela mais-valia relativa (aumento de produtividade), o tempo ocupado do trabalhador permanece o mesmo enquanto a produção aumenta.
O desemprego se torna o problema central do sistema econômico, pois significa que a sociedade não está alocando racionalmente seus recursos temporais, que são finitos pois limitados pela jornada diária de vinte quatro horas. O trabalhador não tem como opção determinar a forma de seu tempo livre; todo seu tempo é “ocupado” pelo desemprego (isto é, na luta pela subsistência).
Karl Marx entendeu o chamado “reino da liberdade” com base em sua concepção de tempo livre. Friedrich Engels famosamente afirmou que a liberdade é o conhecimento da necessidade. A força da teoria marxista foi colocar o fundamento do valor social no emprego do tempo, isto é, pela capacidade de distinguir entre o tempo da liberdade e o da necessidade. Por tal razão, sustento que, ao contrário da voga “aceleracionista”, o comunismo na concepção marxista não significa o aumento irrestrito da riqueza social e a justa distribuição dos maiores excedentes produtivos pelo domínio do aparato técnico pelos trabalhadores.
O comunismo representaria antes uma sociedade sem excedentes, na qual só se produziria o necessário. Ou seja, seria a redução pelo ganho da produtividade técnica do “tempo ocupado” na vida dos trabalhadores. A ausência de desemprego numa sociedade comunista seria o direito social a cada trabalhador de administrar seu tempo livre, minimizado seu tempo ocupado, isto é, seu tempo de trabalho socialmente necessário.
*Guilherme Preger é doutor em teoria da literatura pela UERJ. É autor de Fábulas da Ciência: discurso científico e fabulação especulativas (Ed. Gramma).
Referências
BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto. Para uma recepção crítica da teoria social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010.
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O Capital e suas metamorfoses. São Paulo: Unesp, 2013.
DANTAS, Marcos et alii. O Valor da Informação. De como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet. São Paulo: Boitempo, 2022.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
LUHMANN, Niklas. Social Systems. Stanford, California. Stanford University Press, 1995.
MENDONÇA DA SILVA, Edson. Para uma constituição da categoria capital: comentários sobre as metamorfoses e os ciclos do capital no Livro II de O Capital de Marx. Anais do XXIII Encontro Nacional de Economia Política, 2019. Disponível em https://sep.org.br/anais/2019/Sessoes-Ordinarias/Sessao1.Mesas1_10/Mesa1/013.pdf.
PREGER, Guilherme. Da economia circular à ecologia das redes: as vantagens comparativas da transformação digital para a Economia Solidária. Anais do XVIII Colóquio Habermas e IX Colóquio de Filosofia da informação, 2022. Disponível em https://www.academia.edu/93413690/DA_ECONOMIA_CIRCULAR_%C3%80_ECOLOGIA_DAS_REDES_AS_VANTAGENS_COMPARATIVAS_DA_TRANSFORMA%C3%87%C3%83O_DIGITAL_PARA_A_ECONOMIA_SOLID%C3%81RIA.
Notas
[i] A Teoria dos Sistemas Sociais é uma teoria ampla, em geral atribuída ao nome de Talcott Parsons. Sua versão autopoiética se refere particularmente à extensa obra de Niklas Luhmann (1995).
[ii] Esta afirmação, de minha autoria, é heterodoxa e controversa na recepção da obra luhmaniana. Luhmann caracteriza o subsistema funcional da economia tendo como medium o dinheiro e a distinção básica entre pagamento/não pagamento. Na minha perspectiva isso reduziria o sistema econômico ao sistema monetário. Adicionalmente, não considero que a variável dinheiro seja “autopoiética”, capaz de se autorreproduzir. A caracterização do sistema econômico como sistema monetário torna a obra de Luhmann incompatível com a perspectiva marxista. Esta relação é estudada por João Paulo Bachur (2010). Bachur considera que a diferenciação funcional e o capitalismo se equivalem como descrições históricas. Este artigo é uma contestação desta posição. Se o medium do sistema econômico, no entanto, for considerado como o emprego do tempo, neste caso torna-se possível compatibilizar Luhmann e Marx. A variável tempo é naturalmente autorreferencial, pois a distinção para o emprego do tempo consome tempo. Daí que seja possível distinguir um sistema autopoiético baseado na distinção entre tempo livre e ocupado, que é precisamente a distinção do emprego.
[iii] Desenvolvo essa tese em recente artigo (PREGER, 2022). Embora não explicitamente, Marx considera o trabalho como variável principal da economia de maneira diferente daquela do modelo ricardiano em que se baseou. Para David Ricardo e a teoria clássica, o trabalho é observado pela primeira lei da termodinâmica como transformação de energia e, portanto, é uma variável que se conserva ao longo do processo produtivo. Mas Marx considera que o trabalho é antes relação e não substância. Esta relação é temporal (baseada nas horas trabalhadas). Com isso, Marx chegou à conclusão de que o valor do trabalho não se conserva na produção. Apesar de não ter explicitado a dependência de sua concepção da segunda lei da termodinâmica (que ainda estava em formulação enquanto Marx escrevia sua obra magna), o trabalho é observado na teoria marxista como fonte de organização social e, portanto, como redução da entropia. Como sabido, pela segunda lei da termodinâmica a entropia não se conserva, apenas aumenta. O trabalho assim contraria a tendência do aumento de entropia. O tempo é a variável entrópica por excelência, pois quanto mais o tempo passa maior é a entropia.
[iv] Descrição do circuito clássico da teoria marxista, onde D é o dinheiro investido na aquisição de mercadorias (M). P é o processo de produção que realiza a transformação M-M’. D’ é o acréscimo de dinheiro obtido na realização do circuito. D-D’ é a transformação relativa à mais-valia, como acumulação de capital. Conferir MENDONÇA DA SILVA, 2019.
[v] Conferir a análise de DANTAS, 2022 sobre os efeitos da digitalização das plataformas sobre a redução do circuito econômico capitalista.
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