Por JULIO TUDE DAVILA*
Pensar para além do “capitalismo político”
A hipótese pessimista de Roberto Schwarz para explicar o Brasil de Jair Bolsonaro é a seguinte: “Num quadro de crescimento frustrado, [as pessoas] procuram garantir a qualquer preço os ganhos já alcançados, e passam, quanto ao futuro, para o salve-se-quem-puder”. A interrupção do esforço de integração nacional presente nos governos PT-PSDB teria levado o povo a optar pelo lado que garantiria a manutenção da ordem e não apostar em uma iniciativa progressista, que parecia sem fôlego na nova conjuntura mundial.
É algo similar ao que Bruno Latour propunha, sendo que esse colocava o apocalipse ambiental como horizonte que reorientara a visão de mundo das pessoas. Cientes de que caminhamos a uma catástrofe global, alguns indivíduos se refugiam em grupos identitários e outros buscam o retorno do Estado-nação forte. Ambas iniciativas criam comunidades excludentes que, supostamente, formariam um elo mais forte que os difusos valores progressistas e universais que servem de âncora para os fundamentos da democracia liberal. Dessa forma, os novos modos de organização seriam um jeito mais seguro e poderoso de se proteger quando os conflitos gerados pela crise ambiental eclodissem.
Roberto Schwarz parece dizer que no Brasil o apocalipse é agora: a violência que funciona como nexo geral da sociedade já segregaria vencedores e perdedores com clareza e, portanto, faria sentido optar pelo lado imoderado e truculento.[i]
Talvez seja enriquecedor reler a análise de Roberto Schwarz tendo em mente um artigo recente que tem gerado intenso debate nos Estados Unidos. Dois pesquisadores norte-americanos publicaram, na edição 138 da New Left Review, um artigo que tenta explicar a “guerra cultural” americana de outro modo, e sua discussão pode servir para inspirar uma nova reflexão sobre o fenômeno do bolsonarismo e as mudanças econômicas, sociais e políticas que, supostamente, teriam o gerado.
Dylan Riley e Robert Brenner escreveram “Sete teses sobre a política americana” que tratam, em sua maioria, de especificidades do contexto político contemporâneo de seu país. Mas o que nos interessa aqui é trazer à tona os pressupostos que sustentam a análise, e propor que eles possam nortear uma investigação similar, tendo a política brasileira como objeto. A seguir, tento resumir a visão dos autores, com citações indiretas ao artigo e à entrevista que concederam à Jacobin Radio.
Em primeiro lugar, os autores afirmam que o regime de acumulação que vivemos mudou, se transfigurou naquilo que eles chamam de “capitalismo político”, ou seja, um sistema no qual é partir do poder político que se conquista participação econômica. Isso se dá pelo fato de que o baixo/nenhum crescimento faz com que os capitalistas dependam mais do governo para se desenvolver, gerando algumas mudanças na forma como o sistema se organiza.
Dylan Riley sintetiza: “na era do capitalismo político existe uma contradição fundamental entre as condições de legitimidade das quais a classe política depende e as necessidades econômicas do sistema social, ou seja, basicamente, o que acontece é que todos políticos, tanto Joe Biden como seus adversários republicanos, precisam articular um balanço entre um capitalismo que depende cada vez mais de distribuição do Estado com sua necessidade de atrair eleitores por meio de termos materiais (mas não de classe)”. Mas como é possível enxergar isso na política americana atual e nas manifestações daquilo que chamamos de identitarismo e guerra cultural?
Os autores criticam as visões moralistas que existem tanto na direita quanto na esquerda americana. De um lado, certos grupos da direita acusam uma suposta fração de progressistas cosmopolitas, distantes da realidade do homem comum. Do outro, setores da esquerda classificam os trabalhadores sem formação superior como preconceituosos e ignorantes, os “deploráveis” que Hillary Clinton atacou em sua campanha. Essas visões estariam equivocadas por serem inteiramente idealistas, ignorando os interesses materiais desses grupos. Fundamentalmente, os autores afirmam que aquilo que muitas vezes é compreendido como um defeito moral ou uma visão de mundo deturpada pela ideologia na verdade é uma forma de expressão de um interesse material racional, que eles procuram explicar.
Quando pensamos em trabalhadores tentando reivindicar seus interesses materiais é comum pensarmos em organização de classe, na qual trabalhadores articulam-se como um grupo explorado pelo regime capitalista, mas existe um outro modo do trabalhador conseguir mais renda por seu trabalho, que é a “mercadoria” que ele vende.[ii] Basta fazer com que o valor dessa mercadoria cresça. Para tanto, é preciso cercear o círculo social que pode participar desse mercado.
Nesse ponto, os critérios que definem esse fechamento (os autores usam o conceito de “social closure”, de Max Weber), podem ser de raça, nacionalidade, etnia, sexualidade, qualificação, enfim todo tipo marcador social. É importante ressaltar que o que motiva esse cerceamento é um interesse puramente racional e material: com menos pessoas oferecendo uma mercadoria, o valor dela sobe. Como o trabalhador depende da venda dessa mercadoria (seu trabalho) para sobreviver, é interessante para ele que menos pessoas tenham acesso a essa competição. As disputas políticas que vemos tomar a forma de “guerras culturais” seriam, então, diferentes formas de articulações políticas que se baseiam em modos de organizar a sociedade segundo os interesses materiais dos grupos que sustentam essas alianças.
De um lado podemos observar trabalhadores brancos sem ensino superior que se mobilizam em torno de uma demanda racial, étnica ou nacionalista, defendendo que o verdadeiro direito ao trabalho é deles, e não das minorias. É o que Arlie Hochschild chamou de sensação de ser “um estrangeiro em sua própria terra”. Por outro lado, trabalhadores com ensino superior, por exemplo, têm interesse na valorização do trabalho que exige um determinado tipo de qualificação, já que isso significaria mais renda para eles.
O horizonte do “capitalismo político” é muito importante aqui, pois para ambos os grupos é relevante que sua agremiação política esteja no poder, já que assim podem conduzir a política e a sociedade de tal modo que sua base usufrua melhor da economia. Ainda que a elite de cada um dos grupos lucre mais, existe um favorecimento da base que é crucial para garantir esse processo de valorização do trabalho. A economia tornou-se cada vez mais politizada, ter poder político é hoje o fator mais importante para ter vantagem no mercado, e o cenário de pouco ou nenhum crescimento acirra os conflitos de classe entre trabalhadores. A classe trabalhadora se vê então fragmentada nesses diferentes grupos que procuram, cada um a seu modo, realizar o fechamento social que melhor servirá a seus interesses econômicos.
Nessa perspectiva, a proposta do MAGA (Make America Great Again) e Trumpismo poderia ser resumida assim: fornecer ganhos para trabalhadores americanos brancos e para uma elite capitalista que financiaria e organizaria politicamente esse processo em seu nível mais alto. Assim, a contradição entre classe trabalhadora e elite se desfaz, já que ambos se mobilizaram politicamente em torno de um movimento comum e coerente com seus interesses materiais. O mesmo se dá com o Partido Democrata, mas tendo por base outros grupos e, portanto, outros valores.
Redirecionando o debate ao nosso contexto, podemos ver o recente aumento das bolsas e orçamentos de institutos que fomentam pesquisas a partir desses parâmetros.[iii] Professores, pesquisadores e intelectuais não têm um interesse puramente moral ou ideológico ao apoiarem Lula ao invés de Jair Bolsonaro. Defender que o bolsonarismo traria o “fim do Brasil” é, além de tudo, dizer que ele acabaria com o Brasil no qual esses grupos podem sobreviver. Os cortes feitos pelo governo Bolsonaro na área da educação e da pesquisa destroem os meios de vida de um enorme grupo de trabalhadores que, não à toa, fazem parte de um grupo político adversário que, quando eleito, atendeu às demandas materiais desse grupo, com reajustes significativos nos valores de bolsas e vagas disponíveis para novos pesquisadores.
O texto de Dylan Riley e Robert Brenner tem, como eles mesmo notam, um teor experimental e provisório, e alguns problemas podem ser apontados. Sua cronologia a respeito do capitalismo político, seu surgimento e quando começa a impactar de modo fundamental a política americana peca na precisão, indo do governo Bush a Biden sem muito detalhe ou rigor. Além disso, como já notou Matthew Karp em rápida resposta ao artigo, os autores não levam em consideração o fato de que trabalhadores especializados são a base de três das indústrias mais dinâmicas e poderosas dos EUA: comunicações, finanças e saúde (incluindo farmacêutica).
A revolta dos trabalhadores contra essas elites é mais facilmente explicada se pensarmos no impacto que esses grupos têm sobre suas vidas, como justifica Karp em “Party and class in american politics”, réplica que saiu na última edição da New Left Review: “Na análise de Riley e Brenner, trabalhadores de Hibbing foram movidos por uma resistência ‘racional’ à (largamente hipotética) possibilidade de competição com imigrantes de El Salvador ou Somália. Mas parece mais plausível que eles tenham se mobilizado em uma resistência ‘racional’ às elites especializadas de North Oaks, cujo poder nas indústrias e instituições que afetam a vida [dos trabalhadores] – de páginas do Facebook a centros hospitalares – é tudo menos abstrata”.
Em outras palavras, é uma revolta contra as elites e seu discurso, algo similar ao que Wolfgang Streeck apontou em seu texto sobre o “retorno dos reprimidos”, ou seja, trata-se a revolta dos perdedores da globalização contra a elite vencedora e sua cultura cosmopolita. Pensadores do espectro mais especulativo, como Alain Badiou e Jacques Rancière, apontaram como a esquerda nos últimos tempos reduziu-se a uma defesa do status quo versus a barbárie, fundamentalmente uma não-posição versus uma posição de mudança, independentemente do mérito dessa posição, que ambos criticam. Também é uma alternativa à visão de Dylan Riley e Robert Brenner.
Seja como for, no rescaldo de análises complexas e profundas do bolsonarismo e da eleição de Lula,[iv] é de se pensar se existe algo nos achados dos pesquisadores americanos que possa enriquecer nossa visão sobre a política brasileira contemporânea e se, revendo essas análises à luz deles, podemos elaborá-las de outro modo. Enfim, fica a sugestão de um esforço nessa direção.
*Julio Tude Davila é graduando em Ciências Sociais na USP e em psicologia na Universidade Mackenzie.
Notas
[i] Salvo engano, algo similar é dito por Gabriel Feltran em seu artigo “O valor dos pobres”. Ele argumenta que a dinâmica entre os três grupos que disputam a ordem na periferia, isto é, a Igreja, o Estado e o Crime, dependem da circulação e distribuição de dinheiro de forma satisfatória para todos. Quando isso cessar, os conflitos serão resolvidos na base da violência.
[ii] A classe trabalhadora, segundo a definição dos autores, é aquela que vende seu trabalho para receber uma renda. Eles então avaliam quantas residências nos EUA dependem da renda e, através do censo, chegam ao número de 80%. Essa seria a classe trabalhadora americana. Eles discordam de análises de classe que se baseiam no nível de renda e educação para afirmar o que é a classe. Esses critérios serviriam para distinguir diferentes grupos e setores dentro da classe trabalhadora, mas não definiriam um grupo como tal. Como exemplo do por que sua explicação faz mais sentido, eles chamam atenção para o acentuado número de indivíduos com ensino superior completo que hoje trabalham em empregos que não exigem essa formação, ou mesmo aqueles que possuem algum tipo de pós-graduação que se encontram nessa situação. Certas análises poderiam colocá-los como um grupo distinto da classe trabalhadora, mas o fato é que eles também dependem da venda do seu trabalho em troca de renda para sobreviver.
[iii] https://www.gov.br/cnpq/pt-br/assuntos/noticias/cnpq-em-acao/governo-federal-anuncia-reajuste-de-bolsas-do-cnpq-e-da-capes
[iv] Podemos citar os textos de Feltran para o blog da Novos Estudos, a análise de André Singer na última edição da New Left Review, o livro de Rodrigo Nunes ou as sínteses de Paulo Arantes, expostas tanto em lives no YouTube quanto no livro editado por João Cézar Castro Rocha.
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