Ameaças à educação

Imagem: Alexander Isreb
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Por FERNANDO BONADIA DE OLIVEIRA*

“Universidade de preto, viado e favelado”: o que o ódio ao pensamento nos dá a pensar?

O pensamento enfrenta o ódio, não foge dele. Entre as linhas de agressividade e violência que fragmentariamente caem das mensagens de WhatsApp recebidas por estudantes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro no dia 03 de abril de 2023,[i] destaca-se uma frase que revela certo tipo de ódio ao pensamento que nos dá a pensar. A frase é: “Vou botar fogo naquela faculdade de preto, viado e favelado”.[ii]

Nem todo ódio ao pensamento dá a pensar. A maior parte desse tipo de ódio atrapalha o pensamento, confunde-o, coloca-lhe obstáculos nos quais ele tropeça, perde a sustentação, deixa de existir para logo dar lugar à reação, a uma reação impensada, embora certamente necessária à primeira vista: chamar a polícia, reforçar o policiamento, prender imediatamente etc.[iii] O ódio ao pensamento que não dá a pensar provoca sempre uma reação e impede o pensamento de pensar e organizar uma ação contra o que se impõe a ele. Quem ameaça a paz, quer tirar a paz, e nada tira mais a paz de um lugar do que a presença de uma das polícias que mais mata e mais morre.[iv]

O pensamento, afetado pelo ódio que o oprime, dá ao seu algoz muito mais do que o algoz deseja: não apenas a presença de uma arma de fogo prestes a disparar, mas a presença de inúmeras delas. Como cantávamos há décadas, uma paz garantida pelos fuzis mais violentos do mundo, “não é paz, é medo”.[v] E o medo é tudo aquilo que impede o pensamento de se criar.

Como essa forma de ódio ao pensamento (comumente vista) se expressa por redes sociais virtuais, a primeira reação é reivindicar regulamentação, controle ou monitoramento das redes, ainda que saibamos que elas são produzidas, financiadas e mantidas por corporações que se valem do ódio, quanto mais o ódio engaja, vende e produz grandes lucros. As redes, estruturadas assim, são feitas para aproximar quem pensa de forma igual e para afastar quem pensa de forma diferente; é uma lógica fascista de desprezo ao outro baseada no “curtir”,[vi] e não por mera consequência acidental da configuração dos algoritmos, mas por princípio. E disso, o pensamento bem sabe enquanto não está abatido.

O pensamento, abandonado a si mesmo, cede lugar à reação, e a reação é criar nas redes sociais (que por princípio engendram o ódio), meios de resistir ao ódio. São, então, criadas páginas emergenciais de reação às ameaças, que nada mais fazem além expor os nomes das pessoas mais dispostas a lutar contra o ódio, permitindo aos odiadores ajustarem suas miras. É o próprio cenário descrito por Etienne de La Boétie: nós damos ao tirano o olho com que ele nos vigia; damos os pés com que ele nos esmaga, e por aí vai.[vii] O pensamento faz de maneira diferente. Ele entende que está sempre na mira de algum ódio, mas evita tanto quanto for possível se expor abertamente aos seus oponentes.

Mas o que, afinal, a experiência do pensamento[viii] nos ensina a fazer diante do ódio? Em primeiro lugar evitar recair naquilo que a realidade imediata quer nos impor: o medo e a reação impensada. Em segundo lugar, entender as causas que levam ao ódio e, por fim, agir contra essa produção incessante de covardes e ressentidos, a fim de que nunca mais tenhamos que reagir contra eles.

Voltemos à frase. A Universidade em geral é vista como o lugar onde circulam os conhecimentos socialmente produzidos no nível mais elevado. Segundo o sentir comum, é no espaço universitário que se encontram as pessoas que mais possuem conhecimento. Contudo, se isso acontece, é apenas por consequência da atividade universitária. A universidade é o lugar do pensamento, não do conhecimento que já vem pronto e estabelecido como verdade; ela não trabalha simplesmente com saberes instituídos e formatados, mas com atividades que instituem novas formas de existência movidas pelo contínuo impulso de produzir sempre outros conhecimentos.[ix] Querer “botar fogo” na universidade é querer transformar não o conhecimento, mas o pensamento, em cinzas.

No caso das mensagens do dia 03 de abril, a proposta de incendiar ou explodir uma universidade não se refere a uma universidade qualquer. Se fosse uma universidade de “branco, heterossexual e rico”, ela estaria a salvo, afinal, produz pensamentos e conhecimentos que servem a brancos, heterossexuais e ricos. Nos termos precisos da frase, o alvo é a raça, a homossexualidade e a classe social. Quem pronuncia a frase quer dizer que o pensar negro, gay ou que vive na favela não deve existir no espaço universitário; e este é justamente o público que a universidade pública, por ser pública e gratuita, deve verdadeiramente abrigar. Quem pronuncia a frase é aliado a todas as forças ocupadas há tempos em destruir a universidade pública.

A compreensão dessa cumplicidade repugnante exige dar um passo decisivo: alcançar um entendimento mais específico do “ódio ao pensamento”. Para não me alongar em uma longa reflexão sobre essa expressão, aproveito-me de uma afirmação feita recentemente pela professora Marilena Chaui: “O ódio ao pensamento é o medo de pôr em questão o senso comum, as ideias preestabelecidas. Por que ódio e medo se juntam aqui? Porque o pensamento, ao questionar o senso comum, tem força transformadora: ao pensar, o pensamento faz pensar, dá o que pensar e abala os fundamentos do senso comum. O ódio ao pensamento aparece no ódio à universidade pública”.[x]

O ódio ao pensamento é o medo de correr o risco da verdade, medo que se manifesta, entre outras formas, nesse constante cinismo notado entre os setores da extrema-direita e nesse gozo incessante de viver no preconceito. Lado a lado com o medo, ele incita sempre o pensamento a depositar toda a atenção nas ameaças (e mesmo nas ações violentas operadas em escolas e universidades), destacando nelas aquilo que é a realidade imediata: as vítimas (que passam a ser vistas como mártires) e os algozes (que são, na verdade, agenciados por redes muito maiores do que eles). Cabe à reação, sem dúvida, a tarefa prática de conter os violadores e reparar, na medida do possível, as pessoas violentadas, mas o trabalho do pensamento se aplica a impedir que novas vítimas se façam e que novos algozes se tornem heróis em seus bandos.

O pensamento só eliminará o ódio se combater a fonte de todas as forças que, forjando projetos lei e reformas do ensino, querem evitar que os pretos e os favelados entrem em uma universidade democrática, pública e livre[xi]. Especificando: a atividade de pensar só conterá o ódio atualmente visto contra instituições educacionais se (1) combater as instâncias que insistem em transformar a universidade, pela privatização, em um lugar exclusivo dos novos aspirantes brancos, e (2) se combater as fundações, organizações e institutos que – na forma de think-tanks – pretendem converter a juventude filha da classe trabalhadora em prestadora de serviços técnicos em um mundo de precarização progressiva das condições de trabalho.

O pensamento supera o ódio que contra ele se volta, quando encontra entre as marcas das ameaças aqui discutidas os traços que revelam sua fusão com os projetos políticos em voga, e consegue nos fazer agir contra esses projetos políticos, lutar pela democratização radical (urgente) da universidade pública e ver, enfim, o óbvio por trás das cenas do crime, isto é, que os algozes têm treze, dezoito, vinte e cinco anos.

 O pensamento, é importantíssimo registrar, não combate pela liberdade de todos porque é bondoso e, por bondade, não adentra as conexões de ódio. O pensamento sabe agir com dureza e agressividade quando alguém (particular) se coloca contra a paz coletiva. Sobre isso, tinha razão o “virtuoso” filósofo Bento de Espinosa, pois mesmo tendo fundado sua filosofia na alegria, no amor e no auxílio mútuo, não hesitou em afirmar no oitavo capítulo de seu Tratado Político, que “se alguém no conselho supremo puser em questão algum direito fundamental (…), será réu de lesa-majestade, e não apenas será condenado à morte e os seus bens confiscados, como além disso se erguerá em público um sinal do suplício, para memória eterna disso”.[xii]

A atividade do pensamento transita também pelas conexões do ódio, mas sabe contra quem se coloca. Em uma sociedade em que todos têm direitos comuns, e em que a lei seja de todos (pois todos igualmente a criam e todos igualmente a obedecem), punições como esta descrita por Espinosa podem até ter cabimento. Não é, porém, digno de uma sociedade que pretende alcançar uma democratização radical ceder ao desejo barato de punir jovens ameaçadores, sabendo que há sempre um bando que lhes arregimenta e protege, e que eles mesmos, por serem jovens, são também de alguma forma pacientes de uma violência anterior.[xiii]

O pensamento não reage ao ódio, age contra ele.[xiv]

*Fernando Bonadia de Oliveira é professor de filosofia da educação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ.

Referências


CHAUI, Marilena. A experiência do pensamento. In: Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1981.

CHAUI, Marilena. Saber X poder: em busca do espaço da reflexão. In: Conformismo e resistência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 155-174.

CHAUI, Marilena. O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira. Palestra (Universidade Federal da Bahia), 22/02/2021. Disponível em: https://www.ufba.br/ufba_em_pauta/o-exercicio-e-dignidade-do-pensamento-o-lugar-da-universidade-brasileira-conferencia

ESPINOSA, Baruch. Tratado Político. Tradução: Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: a dor hoje. Tradução: Lucas Machado. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. São Paulo, Brasiliense, 1999.

SANCHEZ, Mariana. Por que investimento bilionário em segurança nas escolas não impediu aumento de ataque nos EUA. BBCNews, Brasil. Disponível:

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gr34rk8g4o#:~:text=Por%20que%20investimento%20bilion%C3%A1rio%20em%20seguran%C3%A7a%20nas%20escolas,aumento%20de%20ataques%20nos%20EUA&text=Os%20Estados%20Unidos%20vivem%20um,universidades%20como%20nos%20%C3%BAltimos%20anos

SANTOS, Eliane. Estudo em sete estados indica a política do RJ como a que mais mata e mais morre. 06/10/2023. Disponível em

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/10/06/estudo-em-sete-estados-indica-a-policia-do-rj-como-a-que-mais-mata-e-mais-morre.ghtml

Notas


[i] Comunicado da Administração Central sobre denúncias de ameaças (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Disponível em: https://portal.ufrrj.br/comunicado-da-administracao-central-sobre-denuncias-de-ameacas/

[ii] As mensagens circularam muito nas redes em arquivos de captura de tela obtida pelas pessoas ameaçadas. A imagem dentro da qual a frase aqui citada aparece contém ao todo oito frases. Na primeira, o ameaçador se apresenta com um insulto machista/misógino. Na segunda, envolve a Universidade Rural do Rio de Janeiro como lugar onde ele cometeria um primeiro tipo de crime (abuso sexual). Na terceira mensagem, ameaça cometer outro tipo de crime (ferir à bala). Na quarta, faz referência machista a um coletivo de veteranas da Universidade e ameaça outro crime (assassinato coletivo). Na quinta, ocorre a frase aqui citada: “Eu vou botar fogo naquela faculdade de preto, viado e favelado”. Na sexta, comete outro tipo crime (racial). Na sétima, mais um xingamento machista/misógino. Na oitava. ameaça um crime (homicídio) que seria coletivamente efetuado: “A gente vai…”.

[iii] Sobre a saída armamentista, ver a reportagem da BBC Brasil, recentemente publicada, que indica objetivamente o paradoxo vivido pelo sistema educacional dos Estados Unidos: “Estados Unidos vivem um paradoxo: o país nunca investiu tanto em medidas para aumentar a segurança escolar. E, ainda assim, nunca viu tantos massacres em escolas e universidades como nos últimos anos” (SANCHEZ, 2023).

[iv] Ver recente estudo divulgado por Santos (2023).

[v] O Rappa. Minha alma (A paz que eu não quero), 1999.

[vi] O que Byung-Chul-Han (2022) chamou de “sociedade paliativa” ou “sociedade do curtir”.

[vii] Ver Discurso da servidão voluntária de Etienne de la Boétie (1999, p. 78-79).

[viii] Mantenho aqui a concepção de “experiência do pensamento” aprofundada por Marilena Chaui (1981, p. 277-278) a partir da ideia de “experiência da fala” de Merleau-Ponty.

[ix] Sobre o conhecimento como domínio do instituído e o pensamento como domínio do instituinte, ver Chaui (2014).

[x] Transcrição de palestra na Universidade Federal da Bahia (Chaui, 2021).

[xi] Ou que, entrando nela, não possam acompanhá-la por falta de uma base comum curricular autêntica.

[xii] Ver capítulo dedicado ao império aristocrático (ESPINOSA, 2009, p. 102).

[xiii] Mesmo os que têm mais de vinte anos, como o assassino invasor da creche em Blumenau (05 de abril de 2023), carregam no histórico tantos “desvios” que é impossível garantir que tenham sido dados apenas depois dos dezoito anos.

[xiv] Texto lido durante uma das atividades da Semana de Integração do curso de Pedagogia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) no dia 11 de abril de 2023.


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