Por LUCIANO NASCIMENTO*
Uma das sequelas mais perversas da escravidão – do racismo, por metonímia – é o embotamento afetivo que tão comumente nos cala
“Do fundo do meu coração \ Do mais profundo canto em meu interior, \ Pro mundo em decomposição \ Escrevo como quem manda cartas de amor”
(Emicida, “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”).
Minha filha adolescente me encostou contra a parede cobrando que eu demonstrasse sentir orgulho dela. Não era birra; a cobrança era justa.
Tenho orgulho dos meus três filhos. Naquele momento específico, um grande orgulho dela, que acabara de atuar com sucesso num evento na maior universidade federal do país, de cujo Programa de Iniciação Científica Júnior ela é estagiária, graças a um convênio interinstitucional UFRJ-CPII. Minha filha tem apenas quinze anos; foi lindo vê-la emoldurada pela fachada imponente do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista.
A fachada neoclássica construída durante o império por mãos negras escravizadas servindo de pano de fundo para a menina preta falar para criancinhas de todas as cores sobre a história daquela instituição e seu acervo museal. Foi lindo principalmente porque essa menina preta, minha filha, sabe de onde veio, se vangloria por ser preta, e não estava ali alienada. É óbvio que tive – que tenho – orgulho dela. Deles três, claro! Então, por que eu digo isso tão pouco a eles? Pode parecer só uma questão pessoal, mas não é.
Porque uma das sequelas mais perversas da escravidão – do racismo, por metonímia – é o embotamento afetivo que tão comumente nos cala (nos silencia, nos emociona e, principalmente, nos enche de calos). Porque não é fácil fruir sentimentos positivos em meio à luta sem trégua contra o fantasma quadricentenário da desumanização. Digo isso sem a pretensão de declinar uma verdade universal; reconheço algumas pessoas pretas (todas públicas) que parecem ser fontes de ternura, carinho, acolhimento, amor… enfim, tudo que o senso comum entende por afeto. Mas convivo (privadamente) com um número enorme de negres com tremendas dificuldades para expressarem – ou apenas lidarem intimamente com – sua própria afetividade. E os relatos (reais ou ficcionais) que ouço e leio sobre pessoas em condições semelhantes são inúmeros.
A demanda por “ser duas vezes melhor em tudo o tempo todo”, a certeza de que “qualquer escorregão seu vai virar tombo”, o medo constante de ser encontrado por alguma bala perdida, o pavor de passar pelo corredor do shopping que dá nas estatísticas dos milhares de “casos isolados de racismo” que acontecem por hora no Brasil, as corriqueiras agressões ao já milionário Vinícius Jr. nos estádios da Espanha… tudo isso nos coloca em alerta constante, sempre prontes para reagir e lutar pela própria vida.
Pior: prontes também para ensinar nosses filhes pretes a estarem sempre prontes para lutarem o tempo todo pelas deles. Sim: isso vira um looping, uma redução desumana de vidas inteiras à finalidade única de repetir diuturna e microfisicamente a busca pela própria sobrevivência. Numa só palavra, pais e mães pretes de filhes pretes vivemos a “neurose” de tentar não sucumbir à “neurose” a que o racismo diário quer nos acorrentar.
Em meio a esse brejo emocional, imersa nesse constante “Estado de podridão” (Cf. https://aterraeredonda.com.br/estado-de-podridao/), é quase antinatural brotar a flor singela do afeto positivo espontâneo. A dureza atávica é a face aparente da contínua necessidade de ser “antes de tudo, um forte”; o estoicismo é um luxo menos intelectual que espiritual. Para nós, navegar é preciso, e viver, mais ainda.
Mas “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só atirou hoje”. A pedra de hoje, a bronca que levei da minha filha (uma pretinha tão enfezada quanto doce), me levou a esta reflexão sobre nosso caminho até aqui. Uma reflexão que, sem nenhum romantismo, talvez tenha sido registrada em texto escrito submetido à avaliação profissional visando à publicação em veículo abalizado menos por altruísmo do que por um certo tipo de egocentrismo (mesmo se duvidoso) advindo da necessidade subjetiva de reconhecimento social. A alienação é capciosa…
De uma forma ou de outra, pensar sobre a bronca que levei me fez enxergar a “bruta flor” do tempo (de colher) bem diante do meu nariz: eu tinha trinta anos em 2004, quando pela primeira vez, já pai dos dois meninos mais velhos, me tornei aluno da UFRJ, no mestrado em Letras Vernáculas; estamos em 2023, minha filha tem só quinze e já frequenta a mesma universidade na condição de bolsista – coisa que eu nunca pude ser por, ironicamente, sempre estar trabalhando enquanto me pós-graduava. Sim, é muita informação, são muitos paradoxos. Mas, olhando com carinho, dá até para querer acreditar que “o mundo pode ser bão, Sebastião”…
De uma forma ou de outra, pensar sobre a bronca que levei esses dias da filha minha pretinha adolescente me fez enxergar a urgência de vencermos o embotamento afetivo e vivermos e declararmos nossos amores e orgulhos. Mesmo que esses gestos-sentimentos precisem ser mediados pela mais pura razão crítica.
Então, meus filhos, que vocês (e o mundo) saibam que eu me orgulho de vocês. Da “chorridente” sensibilidade destemida da minha caçula; da serena habilidade do meu mais velho para, com a sua música, fazer as pessoas sorrirem; e do dom do meu filho do meio de, simplesmente, ser sorriso. Eu, “gauche na vida” sem ser “Carlos”, me envaideço, sobretudo, pelo fato de vocês três serem Gente – com inegociável inicial maiúscula –, honrando a presença edificante da sua mãe que, inclusive, sempre declara em nome de nós dois o orgulho que eu e ela sentimos de vocês três. Também por isso as palavras “orgulho” e “vaidade” não comportam a felicidade de ter uma companheira assim.
Enfim, por agora enxergar e conseguir dizer tudo isso a vocês, acabo me orgulhando também um pouco de mim. Hoje e ontem. Tomara que amanhã também. Ainda que, pelo menos por enquanto, só a razão permita a este preto dizer isso de si mesmo e cogitar, neste momento, que talvez a razão seja o componente essencial da pedra atemporal de Exu… Quem sabe?
Mas, sem dúvida, quem põe essa pedra em movimento é o afeto.
*Luciano Nascimento é doutor em Literaturas pela UFSC e professor titular do Colégio Pedro II.
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