Por Joelson Gonçalves de Carvalho*
Depoimento sobre o professor e economista falecido em 03 de abril de 2020.
Espero que muito se fale e se escreva sobre o professor Wilson Cano, um dos intelectuais fundadores do que hoje se chama Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), que nos deixou na tarde do dia 03 de abril. Alguns depoimentos e relatos já circulam nas redes sociais. Muitos trazem a autoridade da amizade de longa data, outros a legitimidade da proximidade nos últimos tempos. Todas as homenagens são e serão muito bem-vindas, pois é inquestionável a importância deste intelectual na gênese e consolidação de um pensamento crítico e autônomo sobre a economia latino-americana e brasileira em termos gerais e para a dinâmica da economia regional e urbana no Brasil mais especificamente.
Minha última conversa com Wilson Cano foi em setembro de 2015. Não contei com nenhum status especial de proximidade: fui mais um dos seus muitos alunos e um de seus orientandos. É nesta condição que gostaria de acrescentar essas linhas às muitas homenagens já escritas sobre Wilson Cano.
Conheci o professor Cano primeiro pelos seus textos. Seu livro clássico, Raízes da concentração industrial em São Paulo (Difel, 1977), era leitura obrigatória na graduação em Ciências Econômicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Naqueles tempos, a UFU contava com muitos professores que tinham passado pelo Instituto de Economia da Unicamp e, sob essa influência, dirigiam seus cursos e inspiravam seus alunos. Eu inspirado, quis conhecer a fonte: fui fazer mestrado e doutorado em Desenvolvimento Econômico no IE da Unicamp. Ali tive aulas com Wilson Cano nestes dois momentos, que se estenderam de 2001 a 2011. Para minha satisfação, ele aceitou me orientar em meu doutoramento.
Intelectualmente, seria impensável tentar fazer um resumo de suas contribuições aqui. Cabe apenas dizer que sua explicação para as disparidades regionais, mais visíveis no período pós-1930, mesmo convincente não agradou a todos. Seu argumento central, em certa medida, inocentava o Estado de São Paulo por sua concentração de atividades econômicas, notadamente das industriais. Não raro, ouvi colegas com outras referências e influências acadêmicas e intelectuais, acusarem-no de “sãopaulocentrista”.
Os críticos, no afã da manifestação da discordância, perderam a oportunidade de ter uma compreensão mais profunda e imbricada. Se esse ente chamado “São Paulo” não era o culpado, quem era? Na resposta, Wilson Cano mostrou toda sua erudição, não se ensimesmando no economicismo: segundo ele, entre outros fatores, precisávamos entender o conservadorismo das elites nacionais no bloqueio à reforma agrária.
Minha experiência ao lado de Wilson Cano me faz querer destacar algumas lembranças que o mostram como o homem generoso e incansável que é (no presente). A generosidade de Wilson Cano talvez não tenha sido sua característica mais reconhecida, mas sem dúvidas, foi a que mais me marcou pessoalmente, mesmo a despeito de um dos muitos diálogos que tivemos como esse que reproduzo, quando estava em fase de escrita de minha tese de doutorado: – Professor, te envio essa primeira versão do meu capítulo, não está muito boa, mas segue para sua apreciação.– Se o senhor mesmo acha que não está boa, porque acha que eu tenho que perder o meu tempo lendo?
Quando nós, seus orientandos de mestrado e doutorado daqueles primeiros anos da década de 2000, conversávamos sobre situações como essa, víamos que todos tínhamos algo assim (ou mais constrangedor) para contar. Mas a sisudez nem de longe foi a memória que ficou, pelo menos não para mim. Não sei se por dó ou por espanto, quando soube que eu era filho de uma boia-fria e um padeiro e que, para piorar tudo, estava sem bolsa de mestrado, não sei de onde, me arrumou um trabalho: ajudá-lo em uma pesquisa qualquer. Me dava tarefas compatíveis com meus estudos e me pagava o valor compatível com uma bolsa. Por suposto, isso foi fundamental para que eu conseguisse terminar o mestrado e seguir em frente.
Cano gostava de estar com colegas e alunos no bar. Quando estive por Campinas, o bar obrigatório para depois das aulas era o Bar da Coxinha, em Barão Geraldo. Ali ele deixava de lado a sisudez corriqueira e se abria em sorrisos, entre chacotas e zombarias que ele gostava de fazer com quem dividia a mesa. Em algum momento que não sei precisar, mas que sei que foi no bar, saiu uma piada direcionada a mim, por ser eu o único mineiro na mesa.
Disse alguém: – “Joelson, você sabe que Minas Gerais têm três problemas. Telemar, Itamar e não ter mar”. O chiste, bradado com forte entonação do erre retroflexo, poderia ter ficado só numa grande gargalhada dele, mas eu emendei com uma verdade constrangedora aos colegas da mesa: “nem me diga, eu só fui uma vez na praia”. Não muito tempo depois, Wilson Cano me chamou em sua sala para me emprestar a chave de sua casa em Ubatuba, me dando indicações do melhor trajeto, em tempos que o waze não existia.
Cano continuou a trabalhar até seus últimos dias, mesmo tendo se aposentado em janeiro de 2008 – aposentadoria essa que só veio compulsoriamente, quando de seus 70 anos. Mesmo aposentado, Wilson Cano dava aulas, orientava, pesquisava, escrevia, dava palestras. Como ele mesmo disse certa vez em uma entrevista à TV Unicamp [1]: “Eu continuei aqui na casa. Como eu não aprendi a pescar na minha vida, não sei fazer outra coisa, a não ser um pesquisador e um professor, então eu aceitei de bom grado o convite que me fizeram para que passasse então para professor colaborador”.
Sua generosidade – e também seu espírito incansável – se mostram em uma de suas últimas iniciativas: a criação de um site pessoal, em julho de 2019, com todos os seus livros, artigos, notas de aula, programas de disciplinas e outros escritos de acesso livre e fácil. Ali, logo na apresentação o leitor se depara com a seguinte informação [2]: “Poderia parecer estranho que, doze anos após me aposentar, e mais recentemente, depois de ter passado por “pesada” cirurgia no pâncreas e por um enfarte, tenha decidido fazer um site pessoal”.
Sim, mesmo depois de tudo isso, Wilson Cano estava ativo e trabalhando, mas não, mestre Cano, não parece estranho. Como você mesmo ressaltou, disponibilizar toda sua obra irá estimular e auxiliar jovens pesquisadores Brasil afora e, assim, você continua incansável e generoso. E não há morte que possa por fim a isso.
Wilson Cano, presente!
*Joelson Gonçalves de Carvalho é professor de economia do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar.
Notas
[1] TV Unicamp. Memória Científica. Wilson Cano: pensamento e trajetória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3sdXX1Qmyck&t=1911s.
[2] O endereço do site é: https://www.wilsoncano.com.br/.