Wilson Cano

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Joelson Gonçalves de Carvalho*

Depoimento sobre o professor e economista falecido em 03 de abril de 2020.

Espero que muito se fale e se escreva sobre o professor Wilson Cano, um dos intelectuais fundadores do que hoje se chama Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), que nos deixou na tarde do dia 03 de abril. Alguns depoimentos e relatos já circulam nas redes sociais. Muitos trazem a autoridade da amizade de longa data, outros a legitimidade da proximidade nos últimos tempos. Todas as homenagens são e serão muito bem-vindas, pois é inquestionável a importância deste intelectual na gênese e consolidação de um pensamento crítico e autônomo sobre a economia latino-americana e brasileira em termos gerais e para a dinâmica da economia regional e urbana no Brasil mais especificamente.

Minha última conversa com Wilson Cano foi em setembro de 2015. Não contei com nenhum status especial de proximidade: fui mais um dos seus muitos alunos e um de seus orientandos. É nesta condição que gostaria de acrescentar essas linhas às muitas homenagens já escritas sobre Wilson Cano.

Conheci o professor Cano primeiro pelos seus textos. Seu livro clássico, Raízes da concentração industrial em São Paulo (Difel, 1977), era leitura obrigatória na graduação em Ciências Econômicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Naqueles tempos, a UFU contava com muitos professores que tinham passado pelo Instituto de Economia da Unicamp e, sob essa influência, dirigiam seus cursos e inspiravam seus alunos. Eu inspirado, quis conhecer a fonte: fui fazer mestrado e doutorado em Desenvolvimento Econômico no IE da Unicamp. Ali tive aulas com Wilson Cano nestes dois momentos, que se estenderam de 2001 a 2011. Para minha satisfação, ele aceitou me orientar em meu doutoramento.

Intelectualmente, seria impensável tentar fazer um resumo de suas contribuições aqui. Cabe apenas dizer que sua explicação para as disparidades regionais, mais visíveis no período pós-1930, mesmo convincente não agradou a todos. Seu argumento central, em certa medida, inocentava o Estado de São Paulo por sua concentração de atividades econômicas, notadamente das industriais. Não raro, ouvi colegas com outras referências e influências acadêmicas e intelectuais, acusarem-no de “sãopaulocentrista”.

Os críticos, no afã da manifestação da discordância, perderam a oportunidade de ter uma compreensão mais profunda e imbricada. Se esse ente chamado “São Paulo” não era o culpado, quem era? Na resposta, Wilson Cano mostrou toda sua erudição, não se ensimesmando no economicismo: segundo ele, entre outros fatores, precisávamos entender o conservadorismo das elites nacionais no bloqueio à reforma agrária.

Minha experiência ao lado de Wilson Cano me faz querer destacar algumas lembranças que o mostram como o homem generoso e incansável que é (no presente). A generosidade de Wilson Cano talvez não tenha sido sua característica mais reconhecida, mas sem dúvidas, foi a que mais me marcou pessoalmente, mesmo a despeito de um dos muitos diálogos que tivemos como esse que reproduzo, quando estava em fase de escrita de minha tese de doutorado: – Professor, te envio essa primeira versão do meu capítulo, não está muito boa, mas segue para sua apreciação.– Se o senhor mesmo acha que não está boa, porque acha que eu tenho que perder o meu tempo lendo?

Quando nós, seus orientandos de mestrado e doutorado daqueles primeiros anos da década de 2000, conversávamos sobre situações como essa, víamos que todos tínhamos algo assim (ou mais constrangedor) para contar. Mas a sisudez nem de longe foi a memória que ficou, pelo menos não para mim. Não sei se por dó ou por espanto, quando soube que eu era filho de uma boia-fria e um padeiro e que, para piorar tudo, estava sem bolsa de mestrado, não sei de onde, me arrumou um trabalho: ajudá-lo em uma pesquisa qualquer. Me dava tarefas compatíveis com meus estudos e me pagava o valor compatível com uma bolsa. Por suposto, isso foi fundamental para que eu conseguisse terminar o mestrado e seguir em frente.

Cano gostava de estar com colegas e alunos no bar. Quando estive por Campinas, o bar obrigatório para depois das aulas era o Bar da Coxinha, em Barão Geraldo. Ali ele deixava de lado a sisudez corriqueira e se abria em sorrisos, entre chacotas e zombarias que ele gostava de fazer com quem dividia a mesa. Em algum momento que não sei precisar, mas que sei que foi no bar, saiu uma piada direcionada a mim, por ser eu o único mineiro na mesa.

Disse alguém: – “Joelson, você sabe que Minas Gerais têm três problemas. Telemar, Itamar e não ter mar”. O chiste, bradado com forte entonação do erre retroflexo, poderia ter ficado só numa grande gargalhada dele, mas eu emendei com uma verdade constrangedora aos colegas da mesa: “nem me diga, eu só fui uma vez na praia”. Não muito tempo depois, Wilson Cano me chamou em sua sala para me emprestar a chave de sua casa em Ubatuba, me dando indicações do melhor trajeto, em tempos que o waze não existia.

Cano continuou a trabalhar até seus últimos dias, mesmo tendo se aposentado em janeiro de 2008 – aposentadoria essa que só veio compulsoriamente, quando de seus 70 anos. Mesmo aposentado, Wilson Cano dava aulas, orientava, pesquisava, escrevia, dava palestras. Como ele mesmo disse certa vez em uma entrevista à TV Unicamp [1]: “Eu continuei aqui na casa. Como eu não aprendi a pescar na minha vida, não sei fazer outra coisa, a não ser um pesquisador e um professor, então eu aceitei de bom grado o convite que me fizeram para que passasse então para professor colaborador”.

Sua generosidade – e também seu espírito incansável – se mostram em uma de suas últimas iniciativas: a criação de um site pessoal, em julho de 2019, com todos os seus livros, artigos, notas de aula, programas de disciplinas e outros escritos de acesso livre e fácil. Ali, logo na apresentação o leitor se depara com a seguinte informação [2]: “Poderia parecer estranho que, doze anos após me aposentar, e mais recentemente, depois de ter passado por “pesada” cirurgia no pâncreas e por um enfarte, tenha decidido fazer um site pessoal”.

Sim, mesmo depois de tudo isso, Wilson Cano estava ativo e trabalhando, mas não, mestre Cano, não parece estranho. Como você mesmo ressaltou, disponibilizar toda sua obra irá estimular e auxiliar jovens pesquisadores Brasil afora e, assim, você continua incansável e generoso. E não há morte que possa por fim a isso.

Wilson Cano, presente!

*Joelson Gonçalves de Carvalho é professor de economia do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar.

Notas

[1] TV Unicamp. Memória Científica. Wilson Cano: pensamento e trajetória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3sdXX1Qmyck&t=1911s.

[2] O endereço do site é: https://www.wilsoncano.com.br/.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Juarez Guimarães Salem Nasser Antonio Martins Otaviano Helene Remy José Fontana Marcelo Guimarães Lima Tadeu Valadares Manuel Domingos Neto Paulo Martins Jorge Luiz Souto Maior Denilson Cordeiro Igor Felippe Santos André Singer Marcos Aurélio da Silva Leda Maria Paulani Alexandre Aragão de Albuquerque Antonino Infranca Michel Goulart da Silva Rafael R. Ioris Ricardo Abramovay José Luís Fiori Dennis Oliveira Marcos Silva Benicio Viero Schmidt Gilberto Lopes Annateresa Fabris Elias Jabbour Eugênio Trivinho Luiz Werneck Vianna João Carlos Loebens Antônio Sales Rios Neto Michael Roberts Eliziário Andrade José Micaelson Lacerda Morais Slavoj Žižek Samuel Kilsztajn Luiz Eduardo Soares Francisco Pereira de Farias Érico Andrade Eduardo Borges João Carlos Salles Michael Löwy Atilio A. Boron Marilena Chauí Ricardo Fabbrini Mariarosaria Fabris Celso Frederico Ladislau Dowbor João Sette Whitaker Ferreira Mário Maestri João Adolfo Hansen Claudio Katz Thomas Piketty Tarso Genro Boaventura de Sousa Santos José Raimundo Trindade Marjorie C. Marona Chico Alencar Gilberto Maringoni Caio Bugiato Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Carla Teixeira Walnice Nogueira Galvão Bernardo Ricupero Alysson Leandro Mascaro Luiz Marques Luis Felipe Miguel Kátia Gerab Baggio Chico Whitaker Plínio de Arruda Sampaio Jr. Armando Boito Heraldo Campos José Dirceu Daniel Brazil Fernando Nogueira da Costa Fábio Konder Comparato Gerson Almeida Lincoln Secco Fernão Pessoa Ramos João Paulo Ayub Fonseca Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marilia Pacheco Fiorillo Eleutério F. S. Prado Daniel Afonso da Silva Anselm Jappe Luiz Bernardo Pericás José Geraldo Couto Flávio Aguiar Ricardo Musse Rodrigo de Faria Julian Rodrigues Andrés del Río Milton Pinheiro Carlos Tautz Leonardo Sacramento Ronaldo Tadeu de Souza João Feres Júnior Afrânio Catani Osvaldo Coggiola Bruno Fabricio Alcebino da Silva Paulo Fernandes Silveira Maria Rita Kehl Lucas Fiaschetti Estevez Sergio Amadeu da Silveira Valerio Arcary André Márcio Neves Soares Marcelo Módolo José Costa Júnior João Lanari Bo Henri Acselrad Luiz Roberto Alves Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Favaretto Dênis de Moraes Valerio Arcary Leonardo Avritzer Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Pierre Chauvin Matheus Silveira de Souza Renato Dagnino Henry Burnett Francisco Fernandes Ladeira Lorenzo Vitral Rubens Pinto Lyra Paulo Capel Narvai Paulo Sérgio Pinheiro Yuri Martins-Fontes Bruno Machado Sandra Bitencourt Ronald León Núñez Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Eleonora Albano Vladimir Safatle Ricardo Antunes Alexandre de Freitas Barbosa Luís Fernando Vitagliano Ronald Rocha Airton Paschoa Berenice Bento Alexandre de Lima Castro Tranjan Leonardo Boff Ari Marcelo Solon Liszt Vieira Bento Prado Jr. Gabriel Cohn Marcus Ianoni Vanderlei Tenório Vinício Carrilho Martinez Luciano Nascimento Daniel Costa Luiz Renato Martins Manchetômetro Jorge Branco Priscila Figueiredo José Machado Moita Neto Andrew Korybko

NOVAS PUBLICAÇÕES