Milan Kundera (1929-2023)

Imagem: Elisa Cabot / Wikimedia
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

O escritor checo parecia mais sentir a opressão de viver naquela sociedade do que pensar em qual saída desejava

O escritor checo Milan Kundera faleceu no dia 11 deste mês. Embora sua obra mais famosa seja o clássico A insustentável leveza do ser, o livro que me marcou muito na juventude foi seu primeiro romance, A brincadeira, de 1967. Na época não entendi muito bem seu conteúdo político e o quão simbólica era tanto a figura de Milan Kundera como o ano de publicação do livro, se visto no contexto da Primavera de Praga, de 1968. E, igualmente não entedia de forma muito precisa a riqueza artística e intelectual do período na Checoslováquia, do qual sobressaíram, além do próprio Milan Kundera, nomes como o frequentemente referenciado filósofo Karol Kosik e os cineastas Milos Forman e Vera Chytilová.

Portanto, ainda que A brincadeira e A insustentável leveza do ser possam ser lidos como obras dramáticas ou mesmo românticas, não é possível tirar essas obras de seu contexto político e perceber o quanto esses elementos aparecem nos dois textos. O primeiro evidencia o burburinho que vinha agitando o conjunto dos países do Leste Europeu, que, a despeito de terem expropriado o capitalismo, se viram estagnado diante da possibilidade de construção do socialismo, por conta dos limites políticas e estratégicos da direção stalinista. Não custa lembrar alguns acontecimentos emblemáticos na luta contra a burocracia stalinista em diferentes lugares, como em Berlim Oriental (1953), na Hungria (1956) e na própria Checoslováquia de Kundera (1968).

Esses processos não são iguais e tiveram diferentes causas imediatas, mas todos expressaram a necessidade da classe trabalhadora desses países de construir efetivamente um poder seu e, com isso, garantir para o futuro a construção do socialismo. Era evidente que a burocracia stalinista, em suas diferentes versões nacionais, não faria isso. Pelo contrário, nesses países que orbitavam em torno da União Soviética, diferente do poder nascido da revolução de 1917, os processos de expropriação da burguesia e de transformação social estagnada sempre tiveram um viés centralizador na burocracia dos partidos governantes. Portanto, na maior parte dos países, a classe trabalhadora ainda precisava viver sua experiência de governo e de encontrar sua própria forma de Estado.

Quando explode a Primeira de Praga, em 1968, não se trata de um evento isolado, mas da expressão política de uma sociedade que se organizava e lutava para efetivar a promessa de um futuro socialista, que não cabia mais na retórica demagógica da burocracia governante. Uma série de fatos prévios marcam essa luta, a começar pelas tensões internas no partido governante em torno do “socialismo com rosto humano”, mas o que envolve diretamente o nome de Milan Kundera é o encontro a União de Escritores, realizado justamente no lançamento de A brincadeira, em 1967.

Milan Kundera, seja no livro de 1967 ou no mais famoso de 1984, evidencia uma oposição à burocracia governante. Contudo, essa posição não me parece ter uma evidente perspectiva estratégica, como a revolução política defendida pelos trotskistas, mas é muito mais a expressão da ojeriza sentida pelo escritor em relação aos burocratas stalinistas vinculados a Moscou e da decepção em relação às promessas dos reformadores que assumiram o governo por alguns meses em 1968. Minha impressão é a de que Milan Kundera parecia mais sentir a opressão de viver naquela sociedade do que pensar em qual saída desejava.

Contudo, independentemente de qualquer ambiguidade estratégica, está evidente em sua obra a oposição ao governo e ao partido, e isso se expressa na busca por mostrar a subjetividade de seus personagens. Em A brincadeira, uma das coisas que mais chama atenção é a forma quase caricatural com que Milan Kundera representa a obediência ao partido e ao governo.

Uma personagem, quando conta os dissabores de seu casamento com um camarada, afirma: “só o Partido nunca me decepcionou, e eu sempre paguei na mesma moeda, mesmo nas horas em que todos tinham vontade de abandoná-lo”.[i] Um desses momentos de crise, segundo a mesma personagem, teria sido diante da denúncia de crimes de Stalin, em 1956. Diante disso, segundo ela, “as pessoas ficaram loucas na ocasião, cuspiam em tudo, achavam que nossa imprensa mentia, as casas de comércio nacionalizadas não funcionavam, a cultura sufocava, as cooperativas rurais não deveriam ter existido, a União Soviética era um país sem liberdade e o pior era que mesmo os comunistas se exprimiam assim em suas reuniões”.[ii] O seu marido, um intelectual que atuava numa universidade, era uma dessas pessoas que criticavam a situação. A narradora dizia ver em seu companheiro “os germes da apatia, da desconfiança, da descrença, germes fermentados em silêncio, em segredo”.[iii]

Milan Kundera mostra, um ano antes da explosão da Primavera de Praga, sem saber que aquele processo político viria a acontecer, que aquela sociedade, a despeito do discurso oficial, está marcada por apatia, desconfiança ou mesmo dúvidas em relação ao futuro da promessa socialista feitos pelos burocratas do governo. Além disso, parece que há sempre uma resposta pronta no sentido de desqualificar qualquer um que questione a situação política.

Não parece ser por acaso que outro personagem é acusado de ser trotskista apenas pelo fato de ter escrito em uma carta endereçada à namorada que o “o otimismo é o ópio do gênero humano”.[iv] O personagem alega ter sido uma brincadeira, mas o que Milan Kundera parece querer mostrar é como a coerção funcionava naquele sociedade, a ponto de as os membros do partido e do governo terem acesso e poderem esquadrinhar a correspondência pessoal dos próprios camaradas.

Se A brincadeira pode ser considerado a expressão da subjetividade das pessoas às vésperas da Primavera de Praga, A insustentável leveza do ser apresenta elementos de balanço sobre aquele processo escritos depois de 15 anos. Em determinado momento da obra, apresenta-se uma caracterização do novo governo, que chegou ao poder entre a tentativa de renovação do partido e a invasão dos tanques soviéticos, quando uma revista publicou um texto de Tomas, protagonista do livro: “Isso aconteceu na Primavera de 1968. Alexandre Dubcek estava no poder, cercado de comunistas que se sentiam culpados e estavam dispostos a fazer qualquer coisa para reparar seus erros. Mas os outros comunistas, que uivavam que eram inocentes, temiam que o povo enraivecido os julgasse. Iam todos os dias se queixar ao embaixador da Rússia”.[v]

Nesse embate, o segundo grupo acabou saindo vitorioso, afinal, nas palavras de Milan Kundera, “os russos decidiram que a livre discussão era inadmissível no domínio deles e mandaram seu exército ocupar no espaço de uma noite o país de Tomas”.[vi] Milan Kundera descreve os anos que se seguiram à invasão soviética como “um período de enterros”.[vii]

O texto de Tomas, médico, protagonista de A insustentável leveza do ser, que foi publicado então em meio ao levante dos trabalhadores na Primavera de Praga, nem fazia alusão direta ao contexto político. O texto, deturpado pela censura da burocracia governante, era sobre Édipo. Contudo, em uma conjuntura explosiva, nem mesmo isso poderia ser aceito pela repressão.

Milan Kundera então narra, passado algum tempo desde a revolta popular, a conversa do protagonista com um agente da repressão do Estado sobre uma possível retratação. Dizia o burocrata: “O senhor é um grande especialista, doutor! Ninguém pode exigir que um médico entenda de política. O senhor se deixou envolver, doutor. É preciso corrigir essa situação. Por isso, queremos lhe propor o texto de uma declaração que o senhor deveria, em nossa opinião, pôr à disposição da imprensa”.[viii] No texto dessa declaração proposta a Tomas, segundo narra Milan Kundera, “havia frases sobre o amor à União Soviética e a fidelidade ao Partido Comunista, havia uma condenação aos intelectuais que, estava escrito ali, queriam levar o país à guerra civil”.[ix]

O debate estratégico em Milan Kundera não aponta para a transformação social ou mesmo a superação daquela sociedade, mas evoca muito mais questões subjetivas e parece mais preocupado em expressar os seus sentimentos e os de seus contemporâneos diante daquela sociedade. Certamente essa ausência de uma perspectiva estratégica e mesmo eventuais erros políticos de Milan Kundera não devem ser atribuídos apenas à individualidade do escritor, mas à ausência de uma alternativa política.

Coube aos regimes stalinistas reprimir toda a oposição, à esquerda e à direita, ao longo de décadas. Nesse processo, diante da derrubada dos aparatos stalinistas, não se construiu qualquer alternativa que pudesse encabeçar a revolução política, levando a esquerda em todo o mundo ou a se iludir com a ideia de reformar o capitalismo ou a procurar o que eventualmente possa ter havido de positivo nos regimes stalinistas.

Se Milan Kundera acabou superando os ideais de 1968, isso não significa que sua obra perca o valor, seja o estético, como em belíssimas passagens de A brincadeira, seja o político, como em suas ácidas críticas contra aqueles que atacaram a Primavera de Praga mostradas em A insustentável leveza do ser. Kundera deixa um importante legado literário, que tanto expõem reflexões sobre um momento histórico riquíssimo como aponta para tarefas políticas inconclusas a serem realizadas pelas novas gerações.

*Michel Goulart da Silva, pós-doutorado pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), é professor no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] KUNDERA, Milan. A brincadeira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 30.

[ii] KUNDERA, Milan. A brincadeira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 31.

[iii] KUNDERA, Milan. A brincadeira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 31.

[iv] KUNDERA, Milan. A brincadeira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 52.

[v] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 190-1.

[vi] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 191.

[vii] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 246.

[viii] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 203.

[ix] KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 203.


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