O cerco a Márcio Pochmann

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Por SANDRA BITENCOURT*

O jornalismo econômico da mídia padrão faz parecer que determinados dogmas são inapeláveis

Na disciplina de jornalismo especializado – ênfase em economia – que ministrei por alguns anos, começava a delinear conceitualmente a função do jornalismo econômico de um modo bem simples. Essa função seria de fornecer às pessoas informações que as tornem capazes de aproveitar as oportunidades e fazer escolhas disponíveis no dia a dia, auxiliando na busca de bem-estar.

Em muitos aspectos, o jornalismo como um todo, e não apenas o econômico, trata de ofertar informações e interpretações que permitam a tomada de decisão, desde as mais triviais como escolher o melhor trajeto no trânsito, levar ou não o guarda-chuvas, até as mais cotidianas como o momento para acessar o financiamento da casa própria, comparar os preços dos alimentos, ou as mais complexas, como optar por um projeto político, lutar por determinada política pública, posicionar-se nos rumos de sua cidade ou investir em bens e oportunidades econômicas.

O fato, é que cabe ao jornalismo narrar fatos, investigar, checar, comparar, selecionar, hierarquizar e editar informações, acompanhar acontecimentos, ouvir fontes diversas e cotejar posições. O que muitos chamariam de busca da verdade factual. Em síntese: o jornalismo trabalha com fatos. Esmiuça, compreende, mostra distintas abordagens e variadas fontes para oferecer todos os lados ao público. Mesmo as opiniões, cujo espaço de interpretação é legítimo nas coberturas jornalísticas, precisam ser sustentadas em… fatos! Nunca em meros sentimentos, sensações ou premonições. Fatos. Vamos a eles.

Márcio Pochmann foi anunciado para presidir o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que gerou imediato repúdio de boa parte do jornalismo econômico da mídia corporativa. Rapidamente foram questionadas sua capacidade técnica e sua idoneidade para o exercício de cargo público em instituição tão relevante. As acusações foram na direção de sua formação teórica (acusado de ideológico), da sua atuação acadêmica (vilipendiada por sua ênfase crítica a determinadas correntes do pensamento econômico) e da sua gestão a frente de outras entidades (foi chamado de intervencionista).

Ocorre que objetivamente (os fatos, eles novamente), Márcio Pochmann tem capacidade técnica e atuação acadêmica inquestionáveis, já testado por seus pares e com grandes contribuições ao pensamento econômico. Tanto é verdade, que as instituições de ensino onde se formou e forma emitiram notas de apoio. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, onde fez sua graduação, e a Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, onde o economista é professor manifestaram indignação com a tentativa de ferir a tradição de pluralidade teórica, metodológica, epistemológica e ontológica dentro da área de economia.

O público teve informações suficientes para tomar posição e saber o que esperar do economista? Não. Os questionamentos jornalísticos não passaram de insulto, calúnia e difamação. Por quê? Primeiro, porque o rótulo de ideológico não se aplica igualmente na cartilha da mídia corporativa ao pensamento econômico ortodoxo. Ou alguém viu em algum momento Paulo Guedes ser taxado de ideológico? Pelo contrário. Era feita a distinção entre um governo ideológico e outro técnico – que pertenceria ao milionário ministro – até para justificar a conivência e tolerância da mídia com um governo criminoso em todos os níveis.

Segundo, porque as acusações gravíssimas de possível manipulação de indicadores não se fundam em nenhum fato. Nunca Márcio Pochmann foi acusado de violar dados ou manipular evidências científicas. Comentaristas apontaram dois exemplos para justificar o grave ataque à reputação do economista. O primeiro é a gestão de Márcio Pochmann na frente do IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007 a 2012). Houve alguma denúncia de manipulação de dados? Não. Nunca.

O argumento é que ele demitiu especialistas e se cercou de quem tinha um pensamento alinhado à tradição econômica que ele defende. O segundo exemplo, pasmem, vem da Argentina. Situações ocorridas nos governos Kirchner no órgão de pesquisa daquele país poderiam ser um alerta do estrago que Márcio Pochmann potencialmente poderia fazer por aqui.

A reação às acusações vinda de instituições sérias fez o valente jornalismo apostar então na intriga. Seria intolerável que o anúncio não tivesse sido feito pela ministra do Planejamento e sim pela área de Comunicação do governo. Um detalhe que talvez peque pela gentileza com a titular da pasta, mas que não é capaz de interditar o nome do economista para o exercício de função para a qual está absolutamente habilitado.

A rigor, o jornalismo econômico costuma ser em grande medida a voz do tal mercado. Aquele que define tanto e tantas coisas, mas que não sabemos exatamente o que ou quem é. Não se trata do sistema de trocas que inclui um conjunto de transações e permite a produção e distribuição de riqueza. É o mercado com temperamento. Que tem temperaturas e alergias a tudo que passe perto de igualdade ou distribuição.

Vale nos socorrermos de um dos grandes estudiosos do jornalismo econômico. Bernardo Kucinski nos alerta que a economia é um sistema complexo, repleto de contradições e paradoxos. Ele aponta três paradoxos que marcam a economia brasileira: o contraste entre abundância e indigência; a falta de uma moeda forte e a incapacidade de acumular capitais necessários a uma industrialização autossustentada. Esses três paradoxos, prossegue Bernardo Kucinski, contribuem para a disfunção do jornalismo econômico, associados a outros elementos: a dificuldade de compreensão já que os processos econômicos se definem em outro plano do saber convencional, além é claro da captura ideológica e da baixa formação de jornalistas- e leitores- por diversos obstáculos.

No Brasil, são raras as publicações voltadas à macroeconomia e à economia política. O senso comum, por seu turno, ignora o saber das teorias econômicas e desconhece que determinadas posições e fórmulas propostas derivam basicamente de uma visão teórica que pode ser debatida com outras tantas. “Um dos problemas centrais do jornalista dedicado à economia é a precariedade das teorias econômicas, divididas em grande número de escolas, cada qual com seus axiomas, manejados como instrumentos de persuasão” nos diz Bernardo Kucinsky (1996). Jornalistas que se movem nesse cenário e desconhecem ou são orientados a ignorar essas relações econômicas “tendem a fazer ilações simplistas e tirar conclusões sem fundamento nos fatos ou na razão”.

Bernardo Kucinski vai além ao observar como se dá o debate econômico, com uso abusivo de falácias, argumentos com premissas aparentemente corretas, mas cujas conclusões são falsas. Tanto economistas quanto jornalistas formulam leis gerais e relações de causalidade com base em observações singulares.

Essas características permitem a produção de falsos consensos e a fetichização de determinados fundamentos, ainda que o resultado produzido seja a miséria e o aniquilamento das funções públicas capazes de dotar o Estado com ferramentas para a produção de certa igualdade e distribuição.

Detectar discursos ideológicos, filtrar ou contestar afirmações dogmáticas, sofismas e falácias é tarefa árdua para o público leitor e missão recusada pela mídia. Esta só acusa de ideológico o que contraria determinados dogmas da cartilha liberal que as elites tão habilmente fazem parecer ciência.

Normalmente a coisa é mais sofisticada. Ou seja, o jornalismo econômico da mídia padrão faz parecer que determinados dogmas são inapeláveis. A figura elaborada, capaz -técnica e politicamente- como o economista Márcio Pochmann exigiu deixar sutilezas de lado. Melhor a intriga e o insulto. E o medo. Sempre ele, acionado para fazer crer que mudar é uma ameaça.

Dois públicos distintos são destinatários do jornalismo econômico e cada um tem códigos próprios para se comunicar. Os especialistas, grandes empresários, financistas e profissionais do mercado leem e compreendem de outro modo determinados embates. O grande público e os pequenos comerciantes estão permanentemente agredidos pela linguagem excessivamente técnica e de difícil explicação. Dizer apenas que o sujeito vai mentir e manipular atende um. Mas também atende o outro.

Uma agência de alta credibilidade como o IBGE é realmente um perigo se estiver nas mãos de quem mostra outras verdades sobre motivações ideológicas, interesses midiáticos e necessidades econômicas.

*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).


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