Giulio Carlo Argan

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

O trabalho de argan como historiador materialista e pensador dialético da experiência da arte

Uma divisão

Será que a história da arte consiste num domínio de virtuosismos, de bens raros e preciosos ou, ao contrário, numa investigação sobre modos históricos de produção de valor? E, a prevalecer essa hipótese, então, igualmente, numa economia crítica e, logo, numa reflexão sobre o trabalho – como fonte do valor – e, correlatamente sobre a cidade, a política e a história?

Tal disjuntiva foi posta por Giulio Carlo Argan (1909-92) logo no início de “História da Arte (La storia dell’ arte)” (1969),[i] um ensaio eminentemente teórico em que ele reviu criticamente as principais correntes da historiografia da arte e que dedicou a dois ilustres estudiosos, Lionello Venturi (1885-1961) e Erwin Panofski (1892-1968) – dois espíritos das Luzes na disciplina –, pelos quais nutria veneração, ainda que seus trabalhos trouxessem limites que não deixou de assinalar.

Tal distinção – resumida na disjuntiva inicial – norteou todo o trabalho de argan como historiador materialista e pensador dialético da experiência da arte; vale dizer, desta última não como mera expressão do páthos, mas como modo histórico-filosófico de juízo e totalização. Logo, modo reflexivo em diálogo crítico constante com outros modos de atividade, e, portanto, igualmente, prática apta a delinear projetos de futuro.

Partirei aqui de tal distinção, pois ela vale ainda hoje como um divisor geral de águas no domínio da investigação da arte e da arquitetura – este, um outro campo no qual o trabalho de Argan se desenvolveu de modo correlato e sistemático. Campo cuja natureza, vale notar, intrinsecamente heterogênea – ao conjugar questões históricas, urbanas, estéticas e políticas – contribuiu decisivamente para que a reflexão de Argan sobre a arte se pusesse em dialética permanente com questões da cidade.

Nesse sentido, considerando que as obras de arte participam modernamente do processo geral de circulação e subordinam-se, pois, aos procedimentos e práticas inerentes à representação do valor, Argan propôs uma distinção quanto ao modo de se lidar com a arte: pode-se cuidar do valor, por exemplo, classificando-o, qualificando-o etc. – ou se pode inquirir e refletir sobre o valor, perguntando pela sua condição histórica, constituição, fisiologia etc.

Com base em tal distinção, é possível dividir as linhagens da historiografia da arte em dois grandes agrupamentos de correntes, segundo focos de interesse e horizontes adotados. Uma ampla corrente, além de arraigada na tradição e desde muito dotada de grande poder institucional, visa a forma externa, e já cristalizada, do valor a posteriori; vale dizer, o objeto de arte tido já enquanto tal; logo, tomado como intrinsecamente distinto dos demais objetos postos como utensílios, portanto sem valor inerente e submetidos a diferentes fins circunstanciais.

Tal distinção entre utensílio e obra de arte, ou seja, entre objetos ordinários e outros, com valor em si, deriva em termos de horizonte histórico daquela que outrora distinguia na tradição ocidental a esfera religiosa das demais. Fundada no partido que é indiferente às condições de constituição do valor – e desde então considera a natureza da arte como dada –, essa história da arte busca apenas identificar e classificar o valor do objeto analisado. Ela põe ainda as condições gerais de recepção estética, conservação e circulação do objeto, condizentes com o valor referido. As diversas modalidades de formalismo na história e na crítica de arte apoiam-se nessas bases.

No segundo modo ou regime de tratamento da arte – adotado por Argan – a arte é tomada entre outros processos históricos de produção de valor. Assim, se a teoria econômica clássica adotou pela primeira vez o trabalho como substância de valor e tal proposição foi reaproveitada noutra chave por Hegel (1770-1831) e também Marx (1818-83), por sua vez, Argan tomou a arte de modo análogo dentre outras formas de produção de valor e, segundo tal perspectiva, como modo paradigmático de trabalho. Argan pôde por tal via “combinar a questão artística às investigações ligadas à dinâmica da produção e da economia, sem o risco de reducionismo”.[ii]

Quando a arte se vê inserida na amplitude de tal campo histórico, é sempre indispensável para abordá-la, confrontar-se à variação das formas sociais e dos modos de trabalho. De modo análogo, é condição necessária à sua inteligibilidade estabelecer o paralelo com os regimes de apropriação e acumulação da riqueza que constituem tais formações sociais e que nelas põem a arte concretamente enquanto formação histórica específica.

Regimes de trabalho

Dentre as problemáticas inerentes a tal perspectiva, encontram-se estruturas produtivas, isto é, formações históricas específicas dotadas de um certo poder de moldar ou influenciar condutas. É preciso considerá-las tanto quanto a sua negação, ou seja, as transições cruciais de regimes simbólicos que evidenciam transformações ou rupturas nas estruturas produtivas e que ocorrem certas vezes no curso de uma geração, afetando radicalmente uma trajetória autoral. Pense-se por exemplo no caso paradigmático de Jacques-Louis David (1748-1825), sucessivamente pintor da Academia real, artista da revolução, que depois se tornou um autor entre outros no período termidoriano, e em seguida, homem-chave e artista paradigmático no consulado e no apogeu do bonapartismo, para, por fim, virar artista exilado. Ante tais mudanças, que alteraram decisivamente junto com os regimes políticos também a função da arte, como situar David segundo um único regime autoral ou condição simbólica, enquanto pintor? Em suma, formações históricas e funções autorais a elas inerentes atuam como fatores na composição de um complexo de múltiplas determinações, das quais se extrairá uma síntese específica na forma da prática artística ou do objeto de arte em questão.

Assim, relativamente à Antiguidade grega, é possível delimitar desde o período artístico dito “arcaico” e que precedeu o “clássico”, um primeiro campo de referência no qual estátuas, cerâmicas, mosaicos e edificações eram realizados em geral por escravos ou artesãos em regime de servidão. É importante ter presente que tal periodização quanto ao estatuto do trabalho não se aplica de maneira indiscriminada às demais artes em que a questão do esforço físico não contava (vide as artes da palavra), ao contrário do que ocorria nas artes visuais e arquitetônicas. A distinção entre as artes relativamente ao esforço físico requerido pode passar desapercebida hoje, mas certamente contava quando vigia a escravidão ou a servidão – e o trabalho ou não era tido como fonte de valor ou sequer era considerado.[iii]

Essa consideração não elimina em absoluto as demais questões históricas de forma, técnica ou propriedades dos materiais: estas perduram e exigem obviamente uma investigação noutro plano, tanto quanto as questões tectônicas ou construtivas, por exemplo de sustentação de uma pirâmide, seja para a sua construção mediante o braço do escravo, seja mediante trabalho livre ou outro qualquer. Entretanto, a produção dos objetos visuais associada à coação inscreve as questões relativas ao nexo interno da forma artística e do valor social do objeto num campo histórico muito distinto do nosso – no qual os critérios de liberdade e autonomia se tornaram referências cruciais para os objetos de arte modernos, consoante a oposição proposta por Kant (1724-1804) entre arte como “produção por liberdade” e “artesanato” – em que este último é qualificado sucessivamente como produção “remunerada”, “desagradável”, e possível de “ser imposta coativamente”.[iv]

Uma vez posto esse critério relativo aos regimes de trabalho e valor, pode-se dizer que o campo histórico acima estende-se de algum modo por toda a Antiguidade, antes e depois do período clássico na Grécia tanto quanto à arte imperial romana, e penetra amplos extratos da era cristã pré-burguesa dominada pelo feudalismo.

Nessas bases, um segundo campo pode ser delimitado. Nele, a prática das artes visuais era confiada – mediante contrato, outras formas de encomenda ou aquisição ao trabalhador livre assalariado ou similarmente remunerado, primeiro ligado a corporações, depois submetido às academias difundidas no curso do capitalismo mercantilista. Tal artesão gozava de outra espécie de inserção social. Inscrevia-se num processo já regido pela expansão econômica e no bojo de tal desenvolvimento viria a ser reconhecido segundo especificidades que obedeciam a critérios em moldes aproximados aos de um profissional liberal. Como um artesão qualificado com certo domínio teórico da sua matéria e desfrutando de uma posição até certo ponto invejável nos termos da divisão social do trabalho, tal mestre artesão mantinha com frequência outros trabalhadores sob seu comando. Gozava também às vezes (desde o momento da arte gótica no final do período dito medieval) do poder de individuar a própria produção, o que lhe conferia certas licenças discursivas e a prerrogativa de assinar o trabalho.

Ainda que a história da arte desde o tratado de Giorgio Vasari (1511-74), Le Vite de’ più Eccellenti Architetti, Pittori, et Scultori Italiani (1550/ 1558) que pode ser tido como o primeiro levantamento de autores, dotado de uma certa ambição sistêmica –, seja pródiga em peculiaridades, e as distinções aqui propostas devam ser compreendidas como meros prismas ou parâmetros regulatórios, pode-se afirmar que o processo de reconhecimento do caráter liberal das práticas visuais se processou progressivamente na Europa desde a expansão dos burgos medievais a partir aproximadamente dos séculos 12 e 13 (conforme a região) e atingiu um certo limite paradigmático nas últimas décadas do século 18 na França do absolutismo. Nesta última, o artista profissional podia aspirar, segundo tradição e direito instituídos, ao cargo de “pintor do rei”, acumulando então funções e responsabilidades como a de efetuar encomendas junto aos seus pares para as edificações oficiais e ainda exercer funções pedagógicas e normativas como membro da Academia. Porém, se o “pintor do rei” ostentava privilégios, entre os quais o de instalar o seu atelier no palácio do Louvre, ele todavia não gozava de “autonomia”.

De fato, para os critérios modernos que se estabeleceram histórica e socialmente com a Revolução Francesa,[v] o artista do Ancien Régime desconhecia a liberdade de juízo. Uma certa liberdade reinava e a exceção era tolerada, quando se tratava de gêneros pictóricos considerados “menores”. Assim ocorria no caso das cenas de costumes ou nos moldes das naturezas-mortas ou ainda no caso dos autorretratos, casos em que o pintor dispunha de certa licença e meios necessários para agir por conta própria e frequentemente para negociar com compradores particulares. Ao contrário, quando se tratava de exercer a sua arte no gênero maior, ou seja, naquele dito “histórico” que interessava diretamente à Coroa e se destinava em geral a palácios e igrejas, o artista restava privado de todo poder efetivo sobre os meios, o teor e o destino do seu trabalho.

Logo, à guisa apenas de comparação e exemplo – e cometendo decerto um anacronismo –, pode-se dizer desse profissional da corte com muitos benefícios vinculados ao cargo, que ele era tão carente de poder próprio de decisão quanto um alto executivo de uma corporação multinacional nos dias atuais, que detém múltiplos privilégios ligados às suas funções, mas se sujeita a ditames de várias ordens que o ultrapassam e despojam o seu cargo, não obstante as benesses materiais, da dignidade da liberdade e autonomia de juízo, atribuídas em princípio a uma profissão liberal. Marat, aliás, denominava tais artistas de “operários de luxo” (ouvriers de luxe) e os alinhava aos “agiotas” (agioteurs).[vi]

A arte como laissez-faire

Um terceiro campo de problemas quanto ao modo de trabalho foi constituído pela produção artística fundada na liberdade e então elaborada como prática reflexiva consoante os valores de autonomia. Aqui, o trabalho de produzir objetos visuais viu-se associado, por um lado, a valores próximos ou congêneres àqueles que eram próprios à prática da filosofia, a qual, superando sua sujeição à Igreja cristã, tinha recuperado no período imediatamente precedente à Revolução Francesa o privilégio da liberdade como distinção da servidão, a exemplo da tradição delineada na polis clássica.

Assim, que a pintura e a arte se tornassem filosofia era o que pretendia e proclamava o pintor jacobino Jacques-Louis David durante o breve interregno (1792-4) em que durou a república revolucionária francesa, antes do regime termidoriano.[vii] E analogamente que a arte fosse feita por liberdade e por prazerem contraposição ao artesanato, por dinheiro , vale dizer, que a arte fosse desinteressada, pública e autônoma foi o que propôs Kant na Crítica do Juízo publicada contemporaneamente à Revolução Francesa.[viii]

Entretanto no campo da autonomia política, na acepção liberal que surgiu aproximadamente em período coetâneo à liberdade de empreendimento e ao “trabalho livre” ou assalariado, deve-se considerar que o habitat da arte correlata, se incluiu o princípio da autonomia, compreendeu também novas formas complexas, e agora ambíguas, de constrangimento. Desse modo por exemplo o mesmo David após ter sido, até o golpe de 9-10 Termidor (27-28.07.1794), o artista paradigmático da Revolução, membro da fração dirigente da Convenção e que recebia encomendas diretamente desta salientou-se também (após sair da prisão termidoriana e ter recuperado a sua liberdade em 1795) por abrir seu ateliê agora privado à visitação mediante cobrança de ingressos.[ix]

Tanto Kant como David eram caracteristicamente homens das Luzes que buscavam formular novos parâmetros para o campo das artes; Como noutros campos – em acelerada reestruturação naquela altura –, para as artes, outros critérios e fins já se impunham após o fim do Ancien Régime. Assim, em meados do século seguinte, Delacroix (1798-1863), em primeiro lugar, e Baudelaire (1821-67), em seguida, começaram a se referir desde então à “arte moderna”. O primeiro, de modo prosaico e corrente, em seu Journal, escrito ao longo de quarenta anos, a partir de 1822; enquanto o segundo, já na qualidade de crítico e primeiro pensador do novo fenômeno, que faz do Marat (1793), de David, o primeiro marco da “arte moderna”.[x]

Autonomia?

Um dos elementos ideológicos distintivos da “arte moderna” consiste na oposição aberta a certas formas de tutela e alienação no domínio das artes. Mas na realidade empírica, que se encontra frequentemente em contradição com a oposição acima, a situação complexa e ambígua do artista é bem outra e o leva a se desdobrar em mercador de si e de suas obras. Finalmente, a necessidade de enfrentar essa nova contradição – percebida com a força de um impacto agudo, bem como reflexo inerente à sua nova condição geral – constituiu, como uma preocupação indissociável da produção e da circulação das artes, uma descoberta dramática que atravessou a geração de autores da primeira metade do século 19 vide por exemplo as obras de Daumier (1808-79) e Courbet (1819-77), entre outros. Em suma, tais eram os dilemas cotidianos e constantes dos autores do romantismo e do primeiro realismo moderno.

Nesse novo prisma, a arte em princípio passou a se fazer por liberdade, Kant dixit.[xi] Assim o artista obteve os seus meios de produção liberando-se da tutela da Coroa e da Igreja. De modo análogo, ele também se apossou dos modos de operar e das formas que produzia. Tornou-se, pois, o primeiro responsável e detentor direto dos frutos do seu trabalho, que, tal como outros artesãos e pequenos comerciantes, passou a apresentar diretamente ao julgamento público e aos compradores recorde-se, o caso emblemático de David ao empreender a exibição comercial de suas obras, uma vez findo o período revolucionário da I República francesa.

Desse modo, a autenticidade autoral e a soberania poética, enquanto valores éticos e estéticos, passaram a constituir os fundamentos nominais declarados de um novo contrato social-artístico de base concorrencial, que pedia inovações com frequência, e à luz do qual o respeito aos gêneros e às academias passou a ser tido como elemento característico da arte ultrapassada do Ancien Régime. Entretanto, e também nesses termos, pôs-se a dependência – frequentemente decisiva no domínio empírico – da arte ante o dinheiro.

Negatividade oposta e complementar

Assim e ao mesmo tempo, não deve nos escapar que, no todo e quanto às formas gerais de trabalho e de produção, foi precisamente o oposto que se deu concretamente – ao revés das exigências artísticas de autonomia e autenticidade autoral – e da premissa das práticas artísticas como ofício liberal. Razão pela qual se instaurou então uma nova problemática concernente ao papel simbólico da arte.

Em tal quadro, num dos polos da dualidade complexa que instituiu a problemática nova, camponeses, artesãos e mestres de ofícios, assim como pequenos e médios comerciantes, perderam os seus meios próprios de trabalho e produção e em decorrência todo poder ou autonomia produtiva. À legião de antigos produtores independentes expropriados restou como única possibilidade, tal como aos miseráveis de antes, o regime de trabalho alienado: isto é, o modo no qual os proventos salariais podem variar, mas nunca o grau de liberdade frente à configuração e ao destino final do trabalho, cuja determinação passou a pertencer exclusivamente ao empregador e detentor de capital ou do poder de compra da força de trabalho alheia.  Desse modo, em larga medida no correr do século 19 e na maior parte do 20, no período em que vigeu o regime produtivo-simbólico da “arte moderna”, apartaram-se as vias do trabalho, no campo das artes, e da produção em geral.

Então, nos termos da dualidade acima descrita, passou a ser classificado como “livre”, num dos polos, o trabalhador que não dispunha agora senão de sua força de trabalho para vender – “livre”, bem entendido, por oposição à regulamentação ligada às corporações dos ofícios, mas também dito “livre” por oposição ao escravismo que constituiu a forma dominante de trabalho nas antigas colônias até o final do século 19. Enfim, “livre”, nominalmente, porém privado de todos os meios de produzir, alienado de todas as formas do produto do seu trabalho e, nesses termos, do ponto de vista de sua condição real, um duplo do escravo – pois restava alienado até de seu metabolismo.

No outro polo, em contrapartida, o trabalho no campo da “arte moderna” – do qual se admitirá por hipótese que goza de autonomia segundo a mais ambiciosa das hipóteses críticas, aquela da Crítica do Juízo, de Kant –, converteu-se no paradigma simbólico do trabalho emancipado (apoiado no princípio da “liberdade”, na definição histórica de Kant, acima mencionada). Paradigma agora da “liberação do próprio trabalho de suas negatividades sociais (liberazione del lavoro stesso dalle sue negatività sociale)”,[xii] nas palavras de Argan, a arte passou a valer de certo ângulo ético e cognitivo como horizonte utópico ou promessa para o restante da humanidade – que se via impedida de todo direito à autodeterminação no trabalho e, por conseguinte, igualmente, via-se excluída do direito à consciência, cujo desenvolvimento liga-se ao exercício próprio do trabalho.

Em síntese, a condição contraditória da “arte moderna” – fundada na proposição fundamental da liberdade e no cotejo permanente com o trabalho cativo sob a forma da mercadoria – pôs-se sempre atravessada por tal ambivalência. Vale dizer, situou-se invariavelmente na condição oscilante entre a oposição aberta e a distinção derivada e complementar, em suma, tal um contraponto, frente ao sistema que rege o trabalho, a produção e a apropriação da riqueza em escala geral.

 Argan e a “arte moderna”

Ao se projetar a discussão num outro plano, concernente desta vez à grande variedade das técnicas e formas artísticas entre a Antiguidade e a era moderna, nota-se a ocorrência de rupturas e saltos, mas também sinais de subsistências estruturais de longa duração (sem ignorar, é claro, que no tocante aos vários e distintos regimes de trabalho na era moderna, é preciso sempre detalhar e ajustar).

Deve-se ter presente a especificidade dada pela complexidade e variedade das situações na era moderna. Assim, se no âmbito do estatuto do trabalho, como se viu, é possível observar um progresso que vem culminar na liberdade própria à “arte moderna”, em contrapartida, no campo das técnicas e das formas, as distinções relativas ao juízo de progresso não têm lugar. É óbvio que inexistem, no universo das práticas artísticas, técnicas, matérias, procedimentos e formas por si superiores a outros. Este é um dos preconceitos que existiam nos antros (palácios, igrejas e academias) do, por assim dizer, Ancien Régime da arte, mas que a transição para o novo regime da “arte moderna” varreu. O tratamento das questões da arte deve abranger esses distintos planos porque em todos eles se verificam processos de constituição de valor que pedem análises específicas; igualmente se faz necessário o juízo histórico que situará um modo-valor em contradição com outro, dentro de uma mesma obra, uma obra diante de outra etc.

Até agora praticamente só listamos problemas. Porém como ir além dos juízos descritivos e distintivos, rumo a uma nova síntese? Vale dizer, no campo em foco – ou seja, da história da arte como investigação dos modos de valor –, como precisar o método investigativo proposto por Argan em ligação com a história do trabalho?

Em primeiro lugar, como se viu no início, seu partido ou princípio filosófico é o de conceber conceitualmente a arte como prática produtiva ou modo de trabalho. Enquanto tal, segundo perspectiva claramente hegeliana e marxista – aquela que faz da experiência do trabalho condição indispensável para o modo da consciência –, a arte será também modo de consciência ou prática reflexiva na medida em que, ao se esclarecer como tal, vier a conceber a si própria como trabalho.

Isso envolve duas ordens de consequências que pedem atenção. A primeira é que, para se estabelecer o valor de uma dada forma artística, é indispensável situá-la em meio às formas de trabalho e produção existentes, ou seja, cotejá-la a outras formas sociais objetivas na formação social histórica a que pertence. Um exemplo: ao se estudar a talha ou a arquitetura barroca na América portuguesa, é preciso não só distinguir as suas especificidades, demarcar a sua novidade frente à tradição e ao contexto artístico, no caso, junto ao barroco e aos estilos contemporâneos na Europa e nas colônias, mas também é preciso efetuar o cotejo frente ao modo escravista de trabalho em oficinas, como frente a outros ofícios manuais e modos de fabricação manufatureira.

Segunda consequência que convém salientar: o ponto de vista da “arte moderna” é aquele escolhido por Argan, dentre as referências artísticas, para analisar a vastidão oceânica da história da arte. Ou seja, Argan, que em sua interpretação de Manet (1832-83) aplica a célebre divisa de Diderot (1713-84) – “é preciso ser do seu tempo [il faut être de son temps]) [xiii] –, observa por princípio igualmente à mesma diretriz. A “arte moderna”vale então como “a sua causa”, como a matriz de ideias presente em suas afirmações, tal como os ritmos melódicos de um idioma nativo.

A efetuação do trabalho crítico-reflexivo a partir da experiência formativa propiciada pela “arte moderna” é que confere ao historiador o ardor ímpar da reflexão empenhada; vale dizer, o calor do juízo reflexivo ao proceder à análise de formas artísticas passadas, que se traduz no poder da observação de longo alcance, porém próxima e atenta ao pormenor. Em suma, Argan observa e fala na primeira pessoa sem deixar de ser reflexivo, pois tal é a formação que a “arte moderna” lhe incutiu.

Entretanto, vale insistir, o fato de Argan adotar o ponto de vista da “arte moderna” não constitui nem um simples caso de gosto nem uma questão contingente. O partido da “arte moderna” é indissociável de sua escolha filosófica. Ou seja, ao conceber a arte como trabalho e este último, na esteira de Hegel e de Marx, como condição fundamental para a consciência, Argan teve que priorizar a experiência da “arte moderna” porque apenas esta, dentre outras espécies de arte, se pôs exclusivamente como trabalho na acepção soberana ou emancipada , ao assim concebera si própria consoante suas posições mais conscientes e consequentes.

Mais ainda, é porque, na concepção adotada, a experiência do trabalho em curso de emancipação, consoante as condições cognitivas próprias à livre determinação, é por si mesma objetivação e projeto – isto é, reflexão sobre o passado, determinação do presente e intenção projetada para o futuro –, em síntese, juízo histórico concretizado na ação produtiva no presente; é por tal razão, em suma, que a história da arte se fez possível em sentido efetivo. Noutras palavras, possível não como história encomiástica de personalidades ou obras maiores – algo que já existia desde o tratado de Vasari –, mas possível e efetiva como ciência humana, como crítica dos valores e inquirição racional autônoma da história dos contextos culturais e de suas dinâmicas artísticas.

Em resumo, na plataforma crítico-materialista proposta por Argan – em que se instituiu a condição de possibilidade da história crítica da arte, por obra de uma síntese própria à “arte moderna” –, arte e história da arte confluem e se entremeiam indissociavelmente. A ideia reguladora comum é o juízo crítico que é por excelência o juízo histórico, ou, nas próprias palavras de Argan, ao retomar agora em Arte e Critica d’Arte, uma afirmativa já feita em sua “História da Arte”, “a artisticidade da obra não é outra coisa do que a sua historicidade [l´artiscità dell’opera non è altra cosa dalla sua storicità]”.[xiv]

*Luiz Renato Martins é professor-orientador do PPG em Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Conspiracy of Modern Art (Chicago, Haymarket/ HMBS) (https://amzn.to/44t8LXq).

** Extrato da primeira parte da versão original (em português) do cap. 12, “Seminário Argan: arte, valor e trabalho”, do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Paris, éditions Amsterdam (2024, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9).

Notas


[i] G. C. ARGAN; História da Arte como História da Cidade, trad. P. L. Capra, São Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 13-4 (https://amzn.to/3ORfqVF); Storia dell’Arte come Storia della Città, a cura di Bruno Contardi, Roma, Riuniti, 1984, p. 19 (https://amzn.to/3qPASm1).

[ii] Rodrigo NAVES, “Prefácio”, in G. C. ARGAN, Arte Moderna/ Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, pref. R. Naves, trad. Denise Bottmann e Federico Carotti, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. XIX (https://amzn.to/3qMIAgI).

[iii] Sobre a distinção, fundamental na Grécia antiga, entre o homem que agia e aquele que fabricava, e a inexistência correlata de um termo correspondente a “trabalho”, ver Jean-Pierre VERNANT, “Trabalho e natureza na Grécia Antiga” e “Aspectos psicológicos do trabalho na Grécia antiga”, in Mito e Pensamento entre os Gregos, trad. Haiganuch Sarian, São Paulo, Paz e Terra, 2002, pp. 325-48, 349-56 (https://amzn.to/3swDYMo); « Travail et nature dans la Grèce ancienne » et « Aspects psychologiques du travail dans la Grèce ancienne », dans Mythe et Pensée chez les Grecs, Paris, La Decouverte, 1988, pp. 274-294, 295-301 (https://amzn.to/3PdUbyR).

[iv] Ver Immanuel KANT, “Da arte em geral” (parágrafo 43 da Crítica do Juízo), in Kant (II)/ Textos Selecionados, seleção de textos de Marilena Chauí, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo, Os Pensadores/ Abril Cultural, 1980, pp. 243-4; Emmanuel KANT, “# 43.

[v] A Revolução, após decretar em 1791 o fim do controle da Academia Real de Pintura e Escultura sobre o Salão, abrindo-o aos artistas nacionais e estrangeiros, em agosto de 1793 aboliu definitivamente e nos diferentes campos todas as academias “último refúgio de todas as aristocracias [dernier refuge de toutes les aristocraties]”, no dizer do pintor David, também dirigente jacobino. Cf. Régis MICHEL, “L’Art des Salons”, in Philippe BORDES e R. MICHEL et al., Aux Armes & Aux Arts ! / Les Arts de la Révolution 1789-1799, Paris, Adam Biro, 1988, p. 40 (https://amzn.to/3PdOdxV).

[vi] “Bastou os artistas, os operários de luxo, os mercadores, os agiotas verem seus ganhos diminuir com a revolução, para lamentar o reino dos cortesãos, dos sanguessugas públicos (…) e suspirar pelo restabelecimento da escravidão, que lhes fazia entrever suas vantagens pessoais no retorno dos opressores do povo, dos dilapidadores do tesouro público (…) [Les artistes, les ouvriers de luxe, les marchands, les agioteurs n´eurent pas plutôt vu leurs gains diminuer par la révolution, qu´ils regrettèrent le règne des courtisans, des sangsues publiques (…) et qu´ils soupirèrent après le rétablissement de l´esclavage, qui leur faisait entrevoir leurs avantages personnels dans le retour des oppresseurs du peuple, des dilapidateurs du trésor public…]». Cf. J.-P. Marat in L’Ami du Peuple, n. 669, 09.7.1792 (https://amzn.to/45xtCuo), in Michel VOVELLE (ed.), Marat : Textes Choisis, Paris, Éditions Sociales, 1975, p. 219 (https://amzn.to/3sztbRm).

[vii] Desse modo por exemplo David afirmou no momento em que, como membro do Comitê de Instrução Pública, apresentou à Convenção a proposição de um júri nacional das artes: “Cidadãos (…) o vosso Comitê [de Instrução Pública] considerou as artes em todas as relações nas quais devem contribuir para a ampliação dos progressos do espírito humano, para a propagação e a transmissão à posteridade dos exemplos marcantes dos sublimes esforços de um povo imenso, guiado pela razão e a filosofia, trazendo à terra o reino da liberdade, da igualdade e das leis./ As artes devem, portanto, contribuir poderosamente para a instrução pública, mas regenerando-se: o gênio das artes deve ser digno do povo que ele ilumina ; ele deve caminhar sempre acompanhado da filosofia, que não o aconselhará que ideias grande e úteis.../ Demasiado tempo os tiranos, que receiam até as imagens das virtudes, tinham, acorrentando até o pensamento, encorajado a licença dos costumes; as artes não serviam então mais do que à satisfação do orgulho e do capricho de alguns sibaritas empanturrados de ouro; e corporações despóticas circunscreviam o gênio no círculo estreito dos seus pensamentos (…)./ As artes são a imitação da natureza no que ela tem de mais belo e de mais perfeito; um sentimento natural do homem o lança ao mesmo objeto./ Não é apenas encantando os olhos que os monumentos artísticos atingem o objetivo, é penetrando a alma, é deixando no espírito uma impressão profunda, parecida à realidade; é então que os traços de heroísmo, das virtudes cívicas, oferecidas aos olhares do povo, eletrizarão a sua alma e farão nele germinar todas as paixões pela glória, a devoção pela salvação da pátria. É preciso então, que o artista tenha estudado todos os impulsos do gênero humano; é preciso que ele tenha um grande conhecimento da natureza; é preciso, numa palavra, que ele seja filósofo. Sócrates, hábil escultor; J.-J. Rousseau, bom músico; o imortal Poussin, traçando sobre a tela as mais sublimes lições da filosofia, todos são testemunhas, que provam que o gênio das artes não deve ter outro guia que a chama da razão [Citoyens (…) votre Comité a considéré les arts, sous tous les rapports, qui doivent les faire contribuer à étendre les progrès de l’esprit humain, à propager, et à transmettre à la posterité l’exemple frappant des sublimes efforts d’un peuple immense, guidé par la raison et la philosophie, ramenant sur la terre le règne de la liberté, de l´égalité et des lois./ Les arts doivent donc puissament contribuer à l’instruction publique; mais c’est en se régénérant: le génie des arts doit être digne du peuple qu’il éclaire ; il doit toujours marcher accompagné de la philosophie, qui ne lui conseillera que des idées grandes et utiles./ Trop longtemps les tyrans, qui redoutent jusqu’aux images des vertus, avaient, en enchaînant jusqu’à la pensée, encouragé la licence des moeurs; les arts ne servaient plus qu’à satisfaire l’orgueil et le caprice de quelques sybarites gorgés d’or; et des corporations despotiques, circonscrivant le génie dans le cercle étroit de leurs pensées (…)/ Les arts sont l’imitation de la nature dans ce qu’elle a de plus beau, dans ce qu’elle a de plus parfait ; un sentiment naturel à l’homme l’attire vers le même objet./ Ce n’est pas seulement en charmant les yeux que les monuments des arts ont atteint le but, c’est en pénétrant l’âme, c’est en faisant sur l’esprit une impression profonde, semblable à la réalité : c’est alors que les traits d’heroïsme, de vertus civiques, offerts aux regards du peuple, électriseront son âme, et feront germer en lui toutes les passions de la gloire, de dévouement pour le salut de la patrie. Il faut donc que l’artiste ait étudié tous les ressorts du genre humain ; il faut qu’il ait une grande connaissance de la nature ; il faut en un mot qu’il soit philosophe. Socrate, habile sculpteur ; Jean-Jacques, bon musicien ; l’immortel Poussin, traçant sur la toile les plus sublimes leçons de philosophie, sont autant des témoins, qui prouvent que le génie des arts ne doit avoir d’autre guide que le flambeau de la raison (…)]”. Na conclusão desse discurso, David propôs uma lista composta de sábios, de artistas de todos os gêneros e de magistrados para formar o júri nacional das artes. Cf. J. L. DAVID, apud Marie-Catherine Sahut, « Témoignages et Documents », in M.-C. Sahut e R. MICHEL, David/ L’Art et le Politique, Paris, Gallimard-RMN, 1989, pp. 159-60; o discurso de David, extraído dos arquivos parlamentares, é citado também por Daniel et Guy WILDENSTEIN, Documents Complémentaires au Catalogues de l´Oeuvre de Louis David, in « Chapitre II – 1789-1797, David et la Révolution », Paris, Fondation Wildenstein, 1973, p. 71; para o mesmo discurso, ver também E. J. DELÉCLUZE, Louis David son École & son Temps/ Souvernirs par E. J. DELÉCLUZE (Paris, Didier, 1855), préface et notes de Jean-Pierre Mouilleseaux, Paris, Macula, 1983, pp. 158-59.

[viii] A primeira edição ocorreu em 1790 durante a Assembleia Constituinte; a segunda em 1793, ano II da República.

[ix] Ver L. R. MARTINS, “Vestígios de Volúpia” neste volume; versão anterior publicada in idem, Revoluções: Poesia do Inacabado, 1789-1848, vol. I, São Paulo, Ideias Baratas/ Sundermann, 2014, pp. 116-8.

[x] Ver Charles BAUDELAIRE, « Le Musée classique du Bazar Bonne-Nouvelle », O. C., vol. II, pp. 408-410. Publicado em Le Corsaire-Satan (21.091.1846), data do 53.o aniversário da execução de Luís 16 (https://amzn.to/3Z8dz3P). 

[xi] Ver I. KANT, op. cit., p. 243.

[xii] Cf. G. C. ARGAN, “Ancora sulla storia dell’arte nelle scuole”, in Occasioni di Critica, a cura di Bruno Contardi, Roma, Riuniti, 1981, p. 139.

[xiii] Cf. Denis DIDEROT apud G. C. ARGAN, “Manet e la pittura italiana”, in idem, Da Hogarth a Picasso/ L’Arte Moderna in Europa, Milano, Feltrinelli, 1983, p. 346 (https://amzn.to/3Efogrx).

[xiv] Cf. G. C. ARGAN, Arte e Crítica de Arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988/ Arte e Critica d’Arte, Roma-Bari, Laterza, 1984, p. 145 (https://amzn.to/3QXMRJ4).

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