A utopia informacional

Imagem: Andrey Matveev
image_pdf

Por LUIZ MARQUES*

Nota sobre o ensaio “Big Tech”, de Evgeny Morozov

Quando a máquina elétrica de debulhar milho chegou ao campo, os peões de estância exclamaram: “Não falta inventar mais nada!”. Era o auge do progresso. Com a digitalização, a tecnologia – da informática – adquiriu uma importância na geopolítica, na finança mundial, no consumismo e até na apropriação corporativa dos relacionamentos íntimos. Agora, debulha-se os dados para extrair as predições. Como no poema de William Blake: “A humilde Ovelha exibe o chifre ameaçador”.

Ideologia neoliberal

Urge a criação de dispositivos reguladores das tecnologias. “A tarefa futura da política progressista, no Brasil e em outras partes, deve ser a de desenvolver uma estratégia para assegurar esse controle, evidentemente, por meios democráticos”, alerta Evgeny Morozov, no prefácio redigido para a edição brasileira do ensaio Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. O bielorrusso é colaborador do The New York Times, The Economist, The Wall Street Journal, Financial Times e Observer (The Guardian), sendo republicado também em jornais da Espanha, Itália e Alemanha.

Escolhido um dos europeus mais influentes, o escriba reza pelo milagre. “O que se requer é um poderoso ethos de dinamismo empresarial, associado ao compromisso de repensar radicalmente o funcionamento da sociedade, e o papel que a tecnologia desempenha nela” (p. 10). Se não crê que a evolução cibernética, per se, coiba abusos contra a privacidade; acredita que “a utopia tecnocrática da política apolítica” possa vir a gestar um novo habitus no capitalismo, por um passe de mágica (p. 92). Mas a antinomia sugerida não depõe em desfavor do ensaísta, que não se perde pelo detalhe.

A tese central do livro é simples: “Toda discussão de tecnologia implica sancionar, muitas vezes involuntariamente, alguns dos aspectos perversos da ideologia neoliberal” (p. 25). A coisa acontece porque a discussão se dá com a gramática e sintaxe da tecnologia, elidindo a reflexão política. O modelo “dadocêntrico” liquidifica as dimensões da existência cotidiana em ativos rentáveis. Um leilão secreto ocorre sobre as preferências e as dúvidas monetizáveis dos indivíduos. Toma-se conhecimento sobre quem venceu o leilão por intermédio das ofertas comerciais no celular. Byung-Chul Han denomina “infocracia” esse intrusivo processo contábil de codificação mercadológica.

Uma doce fantasia

O Vale do Silício reinventou o Iluminismo. Larry Page (Google) e Mark Zuckerberg (Facebook) encarnam Diderot e Voltaire. O saber e as pesquisas produzidas nas universidades parece ocioso, frente ao empreendedorismo idealizado da cartilha hegemônica. Os empreendedores seriam os portadores das luzes que levam à autonomia e ao “socialismo digital”, pelo empoderamento do usuário – fazendo com que os generosos mercados despejem benefícios materiais aos que estão relegados às margens da sociedade. Uma doce fantasia: “O Facebook interessa-se por ‘inclusão digital’, como os agiotas se interessam pela ‘inclusão financeira’ – em  função do dinheiro” (p. 55).

A “inteligentificação” da cotidianidade faz o Google intermediário entre o consumidor, a geladeira e a lixeira – para o monitoramento. Algoritmos só não informam para quem trabalham. “Se favorecem os plutocratas que evitam impostos, as instituições financeiras globais interessadas nos orçamentos nacionais equilibrados ou as empresas que fabricam softwares de rastreamentos, – dificilmente se trata de um êxito democrático” (p. 87). Miram o consumidor. O cidadão não existe. Foi abduzido.

As avaliações se atêm à eficiência econômica e evitam os critérios políticos do bem comum. Os neotecnólogos almejam “a morte da política”. Os problemas sociais devem ser resolvidos com aplicativos, sensores e ciclos infinitos de retroalimentação – propiciados por startups enxutos. Os conflitos entre as classes sociais seriam subprodutos analógicos. A colonização digital recrudesce a convicção no fim da luta de classes e ideologias. Dados infocráticos apagam teorias antissistêmicas, guerras de posição e movimento. A mensuração algorítmica reorganiza o Estado. As cinco irmãs (Apple, Google, Facebook, Microsoft e Amazon) pressionam para digitalizar afazeres públicos. Mas a Suécia, após quinze anos, retirou das escolas os tablets e devolveu livros físicos às salas de aula.

Economia em rede

“Somente por meio do ativismo político e de uma vigorosa crítica intelectual da própria ideologia do ‘consumismo da informação’, subjacente a essas aspirações, poderemos prevenir o desastre” (p. 131), sublinha Evgeny Morozov. O ponto de partida para uma autocrítica é a crise climática. O século XX estipulava o pagamento da energia com a tabuada do pegue-pague. Anulava qualquer juízo de valor ambiental. O arranjo para a troca de créditos de carbono foi concebido para corrigir o problema, antes do colapso. A racionalidade adveio de campanhas dos ambientalistas militantes.

Há dilemas éticos. Os sensores precificam cifras de mercado para o conjunto dos usuários. Se uma decisão prejudicar alguém, o fator moral cobra um exame de consciência. Não bastam os cálculos sobre a vantagem financeira na economia compartilhada. “Devemos nos empenhar ao máximo para sustar a aparente normalidade econômica do compartilhamento de informações” (p. 134). Incentiva-se a competitividade transindividual para o capital espichar os tentáculos funcionais na sociedade.

Os casos de Julian Assange e Edward Snowden são cruciais ao futuro da democracia, cuja virtude é admitir a imperfeição, recorrer ao coletivo e otimizar a aprendizagem frente as ameaças da extrema direita. O “Estado de bem-estar digital, paralelo e privado” funda-se nas políticas de austeridade fiscal. O sucesso do Uber, por exemplo, depende da liberalização do trabalho e da precarização da mão da obra. Para David Harvey, na fase neoliberal do capitalismo prevalece a “acumulação por espoliação” dos pobres, enquanto se agravam as desigualdades. A renda básica compensaria o fim do salário como instituição social, pelos excluídos inempregáveis “no universo high-tech” (p. 161).

Assange e Snowden

O extrativismo de dados pela “inteligência artificial” (desde 1993, verbete no Dicionário do pensamento social do século XX, de William Outhwaite e Tom Bottomore) mascara contradições do sistema; não equaciona-as. As informações evocam o petróleo em priscas eras. O dublê de Saddam Hussein é o ativista Julian Assange, à espera da extradição. O “crime” do fundador do WikiLeaks (2006) foi publicar o subterrâneo das invasões do Afeganistão (2001), Iraque (2003), o ataque aéreo a Bagdá com vítimas civis (2007) e revelar que o Gmail de líderes estrangeiros fora violado no CableGate (2010). A imprensa evapora a perseguição. A vassalagem ao imperialismo é vergonhosa.

Edward Snowden, com sacrifícios pessoais, reuniu-se com Glenn Greenwald (Intercept Brasil) em Hong Kong para repassar provas das acusações de espionagem da Agência de Segurança Nacional, da potência do Norte. Exilou-se para escapar à vingança oficial. Foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em 2013 e 2015. O documentário sobre a vigilância de massas pela CIA, de Laura Poitras, Citizenfour, conquistou o Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Oliver Stone filmou a cinebiografia de Edward, intitulada Snowden. Seu heroísmo já está no mural da história.

O “consumismo informacional” compara-se ao crack: vicia. A compulsão da nação imperial, em crise, impede a frase que a libertaria da doença: “Meu nome é ‘Estados Unidos’ e sou viciado em dados”. A sensação ao final da leitura lembra Jean-Jacques Rousseau, em As confissões (1762-1765): “No abismo dos males em que estou submerso, sinto os golpes que me são dirigidos; distingo o instrumento, mas não posso ver a mão que o dirige, nem os meios de que se utiliza”. O livro de Evgeny Morozov desnuda a mão de dedos tentaculares e desmonta os ardis antidemocráticos.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES