Por JOELMA L. V. PIRES*
O movimento neoliberal constitui uma agressão ideológica radical sobre o que o Estado deve ser
O golpe político é articulado e empreendido contra um suposto adversário que ameaça interesses de poder de grupos hegemônicos. Tais grupos buscam assegurar sua dominação política e econômica intensificada por meio do golpe, desconstruindo a democracia com referência na esfera pública, pois o compromisso com essa democracia do bem comum impossibilita a ação baseada na barbárie imprescindível ao êxito do golpe com fundamento na exacerbação dos privilégios da minoria contra os direitos da maioria.
Nos últimos quarenta anos o capitalismo desenvolvimentista deu lugar ao capitalismo financeiro-rentista. Esse se tornou realidade depois da Segunda Guerra Mundial e, especialmente, depois da virada neoliberal, logo, o capitalismo financeiro-rentista é o neoliberal. A classe dominante contemporânea é principalmente uma classe rentista em associação com outra tecnoburocrática-financista.
Os rentistas, muitos herdeiros de empresários e agentes sociais ociosos, são os proprietários do capital e recorrem aos tecnoburocratas (altos executivos) como seus intelectuais orgânicos, para gerenciar as suas riquezas. “[…] Os financistas interessam-se pelo liberalismo econômico porque seu papel é cada vez menos financiar investimentos e cada vez mais administrar a riqueza dos rentistas […]” (BRESSER-PEREIRA, 2017, p. 141). Em consonância, os rentistas e os financistas estão interessados nas suas rendas capitalistas de curto prazo (BRESSER-PEREIRA, 2017 e 2018). Para tanto, eles operacionalizam golpes políticos e financeiros contra governos e povos de diferentes países, e investem no obscurecimento e desconstrução da democracia da esfera pública para a imposição da sua ditadura de mercado travestida de democracia, que resguarda e amplia o funcionamento dos seus interesses da esfera privada.
A propósito, os capitalistas financeiro-rentistas inauguram uma nova configuração do capitalismo baseado no neoliberalismo, com centralidade na subjugação dos trabalhadores à condição máxima de exploração e perda de direitos. Dessa perspectiva, a estrutura do capital versus trabalho ancorada na sociedade salarial é desestruturada pela constituição da condição do capital propulsor do precariado.
O trabalho foi um dos principais obstáculos para o contínuo acúmulo de capital e a consolidação do poder da classe capitalista na década de 1960, pois nessa época o trabalho tinha influência política, era organizado e razoavelmente bem pago, havia escassez de mão de obra, tanto na Europa quanto nos EUA. Por isso, os capitalistas estimularam a imigração e o uso de tecnologias que economizassem trabalho, provocando o desemprego (HARVEY, 2011).
Nessa conjuntura, as empresas aumentam a produtividade com o uso intensivo de tecnologia, rompendo com a estrutura fordista de geração de milhares de empregos, empregando menos pessoas e pagando menos salários, criando a situação de alternância entre emprego e não emprego. A desestabilização dos estáveis é decorrente da mudança no paradigma produtivo, com a supremacia do capital financeiro sobre o capital industrial.
Enquanto na sociedade industrial clássica, o empresário retornava parte de seu lucro para a sociedade por meio do pagamento de salários e geração de empregos com a abertura de novas fábricas, atualmente, ele responde aos interesses dos investidores e acionistas. Assim, o dinheiro que, antes, voltava parcialmente para a sociedade, agora é transferido para o mercado financeiro (SANSON, 2021).
Segundo David Harvey (2011), embora a teoria neoliberal defenda o não intervencionismo estatal, “[…] um dos princípios básicos pragmáticos que surgiram na década de 1980, por exemplo, foi o de que o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a todo custo […]” (p. 16). Esse princípio surgiu a partir da crise fiscal da cidade de Nova York de meados da década de 1970. Sendo assim, o neoliberalismo expressa um projeto de classe que surgiu na crise dos anos 1970 para restaurar e consolidar o poder da classe capitalista. Dessa ordem, cabe ao Estado salvar os lucros dos capitalistas financeiros e colocar os sacrifícios nas pessoas. David Harvey (2011) identifica o estilo predatório da onda de financeirização que ocorreu a partir de meados da década de 1970.
Portanto, o neoliberalismo representa a hegemonia dos capitalistas financeiros rentistas contra a classe trabalhadora e os seus direitos. Tais capitalistas se negam a dividir os ganhos de produtividade com os trabalhadores, os excluindo ao máximo destes ganhos, e transferindo para eles os custos da reprodução social. “[…] Nos Estados Unidos, por exemplo, a renda familiar desde a década de 1970 está em geral estagnada em meio a uma imensa acumulação de riqueza por interesses da classe capitalista. Pela primeira vez na história dos EUA, os trabalhadores não têm participação em qualquer dos ganhos de produtividade crescentes […]” (HARVEY, 2011, p. 18).
Como bem analisa David Harvey (2021), o neoliberalismo é um projeto político da classe capitalista corporativa para esmagar a classe trabalhadora, como a realidade indica. A classe capitalista o colocou em prática pouco a pouco para transformar modos de resistência e controlar a sociedade, a imprensa, as universidades e todas as instituições, e tem adquirido êxito.
A classe capitalista vem implementando processo contundente de precarização do trabalho com ataque aos direitos dos trabalhadores, constituindo o precariado global, transferindo riscos e inseguranças para os trabalhadores e suas famílias e disseminando a lógica do mercado para todos os aspectos da vida. Conforme Standing (2020), o precariado é flanqueado por exército de desempregados, é uma nova classe social mundial emergente e em formação, cujos indivíduos integrantes não se sentem ancorados em uma vida de garantias trabalhistas e sequer possuem empregos permanentes.
A marca social desses indivíduos é a insegurança, eles se encontram em condição temporária de algum tipo, fazem trabalho temporário com renda precária, portanto, o status de mão de obra temporária compreende aspecto central do precariado. Esses indivíduos têm relações de confiança mínima com o capital e o Estado, e não têm nenhuma das relações de contrato social do proletariado. Consequentemente, são desapegados da sociedade que também se desapega deles e quase sempre descompromissados politicamente, tendem a afirmar a individualidade e a identidade dentro de experiência coletiva de precariedade.
Segundo Standing (2020), o precariado não faz parte da classe trabalhadora ou do proletariado, ele carece de uma identidade segura baseada no trabalho. Os indivíduos do precariado, “[…] são propensos a ouvir vozes desagradáveis e a usar seus votos e seu dinheiro para dar a essas vozes uma plataforma política de crescente influência […]” (Ibid., p. 15).
Ao tratar da realidade estadunidense, George (2009) menciona a diminuição do tamanho da classe trabalhadora por motivo da eliminação de postos de trabalho de muitos trabalhadores nos últimos vinte e cinco anos, mas não introduz nenhuma discussão sobre a constituição do proletariado como classe. Devemos lembrar que esse período de vinte e cinco anos deve ser considerado de acordo com a data de publicação do livro da autora em 2009, hoje podemos acrescentar quatorze anos.
George (2009) analisa que juntamente com a diminuição dos postos de trabalho as políticas de proteção social foram desconstruídas, consequentemente aumentou significativamente o número de pobres com a inclusão de membros da instável classe média. Esses indivíduos desesperados e com sentimento de abandono são facilmente manipulados e encontram consolo na direita cristã radical como a nascente variedade do fascismo ao estilo americano. As igrejas prometem comunidade, utopia e para muitos vingança e não há nenhuma autêntica força política contrária aos dirigentes das igrejas evangélicas. Os líderes fanáticos de Jesus estão seguros de que serão cegamente seguidos por suas tropas como os precursores de Adolf Hitler, Benito Mussolini, entre outros ditadores.
A religião reacionária que satisfaz as almas exerce o controle social e corresponde aos interesses das elites eficientes, para o avanço do Estado autoritário, antidemocrático e controlado pelas corporações empresariais. A direita está ganhando a batalha das ideias. O pensamento ultraconservador está conquistando as mentes da maioria dos indivíduos e servindo para consolidar a hegemonia ideológica a todos os âmbitos da sociedade. Essa tendência analisada por George (2009) também pode ser observada no Brasil, considerando a sua especificidade, e contribuiu para o golpe de Estado de 2016 com a intensificação desse movimento e a apropriação do Estado com a predominância de um Governo ultra-autoritário.
Tal realidade é construída e explorada pelos capitalistas financeiro-rentistas transnacionais em um contexto de neoliberalismo. De acordo com Standing (2020), a flexibilidade do mercado de trabalho é reivindicação neoliberal consolidada na década de 1980 para a diminuição dos custos trabalhistas, e são muitas as dimensões da flexibilidade, incluindo a salarial, a de vínculo empregatício, a do emprego, a de habilidade, todas as dimensões criadoras de condição de insegurança para os indivíduos que logo é justificada como medida necessária para a manutenção do investimento e dos empregos.
Dessa perspectiva, os capitalistas neoliberais não gostam do Estado, e reconhecem como negativas as suas intervenções ainda que por intermédio de governos escassamente centralizados com planejamento e aparato regulatório. Diante disso, “[…] na medida em que ocorria a globalização e os governos e corporações se perseguiam mutuamente para tornar suas relações trabalhistas mais flexíveis, o número de pessoas em regime de trabalho inseguros aumentou […]” (Ibid., p. 22).
O movimento neoliberal constitui uma agressão ideológica radical sobre o que o Estado deve ser (Harvey, 2011). Para Milton Friedman, o grande guru do movimento pelo capitalismo de livre mercado e que foi considerado o economista mais influente do último meio século, “[…] as únicas funções do Estado seriam ‘proteger a nossa liberdade, tanto contra os inimigos externos quanto contra os nossos próprios concidadãos: preservar a lei e a ordem, reforçar os contratos privados, fomentar os mercados competitivos’ […]” (KLEIN, 2008, p. 12).
Milton Friedman dedicou a sua vida contra aqueles que acreditavam que os governos tinham responsabilidade de intervir no mercado a fim de aparar suas arestas. Ele entende, por exemplo, que o conceito integral de um sistema educacional administrado pelo Estado significa socialismo (KLEIN, 2008). A saber, o neoliberalismo é uma elaboração teórica do pensamento da Sociedade de Mont-Pèlerin que constitui um projeto de ruptura com o liberalismo clássico de Locke, Smith e outros, na sua concepção de homem, de valor econômico, de Estado, de história e outros aspectos.
Tal sociedade foi fundada em 1947 por Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Karl Popper, Frank Knight e outros liberais, a maioria economistas, embora o início da elaboração das suas ideias tenha sido em 1927, com a obra Liberalismus, desenvolvida por Popper, Hayek, Friedman e Mises. A posição de Mises para a sustentação do neoliberalismo é a de que o liberalismo é um programa político que não se realizou plenamente, uma vez que o liberalismo social de John Stuart Mill, Keynes, Hobhouse e Dewey implica intervencionismo estatal, sendo esses considerados por ele socialistas disfarçados (VERGARA ESTÉVEZ; MENÉNDEZ MARTIN, 2017).
Rosenmann (2023) acrescenta que a oposição e as críticas dos neoliberais aos princípios de Keynes culminou na doutrina neoliberal. Para Keynes, “[…] o desenvolvimento dependia de políticas sociais voltadas a assegurar o pleno emprego e a redistribuição da renda por meio do controle estatal de preços, da inflação e dos salários […]” (ROSENMANN, 2023, p. 1).
No entanto, os capitalistas financeiro-rentistas querem somente a intervenção estatal que assegura os seus interesses, incluindo a desregulação e a eliminação das mínimas garantias de direitos fundamentais e sociais para a classe trabalhadora. Eles pretendem a eliminação da esfera pública, a garantia da total liberdade para as corporações e o gasto social mínimo. Os referidos capitalistas não aceitam nenhuma intervenção regulatória do Estado para conter as suas barbáries e se apropriam dele com os tecnocratas impulsionadores da sua riqueza, subjugando-o aos seus interesses políticos e financeiros.
Nessa direção, tais capitalistas desferem golpes contra os governos que reafirmam a esfera pública, usando como referência a doutrina econômica neoliberal de predominância da ditadura do mercado disfarçada de democracia empenhada na liberdade individual e na fabricação de empreendedores. Os golpes são recorrentes e perpetuam a banalização do mal em sociedades continuamente acuadas e alienadas em um contexto de crise, choque, medo, miséria e violência. É imprescindível reconhecer e compreender esse contexto reafirmando a nossa história e a expressão da nossa humanidade para a superação da barbárie instituída pela classe dominante vigente.
Nesse sentido, devemos estabelecer diálogo com autores que revelam as artimanhas dessa dominação e o seu funcionamento, em uma conjuntura em que a maioria dos autores reproduz a cultura do desempenho e do resultado e compactua com o poder instituído de maneira comportada, dócil e funcionalista. Ademais, o seu ego produtivista neoliberal de servidão aos capitalistas é imensamente maior que a sua inteligência, na busca incessante de se identificar com o poder da classe dominante e com o seu habitus, por recompensas eternamente adiadas. Tudo indica que os autores empreendedores do capitalismo neoliberal não são intelectuais, são tecnocratas voluntários desse capitalismo. Perdem-se no produtivismo de maneira acrítica em cumplicidade com os fomentadores da barbárie. É nessa situação que os estudos de autores que demonstram coragem para reconhecer a verdade no sentido da crítica e da denúncia necessária, tornam-se valiosos, como os que consideramos na elaboração desse texto.
Harvey (2011), considera que a atual estrutura do conhecimento é disfuncional e ilegítima com a predominância de concepções mentais profundamente arraigadas e associadas às teorias neoliberais e a neoliberalização e corporativização das universidades e dos meios de comunicação. Muitos “intelectuais” se tornaram cúmplices da política neoliberal reprimindo as correntes críticas e radicais do pensamento, a maioria deles não tem ideia de quem foi John Maynard Keynes e o que ele defendia, e para eles o conhecimento de Karl Marx é desprezível. “[…] A ampla adesão às ideias pós-modernas e pós-estruturalistas que celebram o particular em detrimento do pensamento mais amplo não ajuda […]” (p. 193).
Considerando esse quadro, Harvey (2011) entende que precisamos de novas concepções mentais para compreender o mundo e contribuir para o impedimento de uma catástrofe para a humanidade, ele convoca os descontentes com o neoliberalismo a aprofundar o debate em andamento sobre a forma de mudar o curso do desenvolvimento humano, juntando-se àqueles cujas condições de trabalho e vida são mais imediatamente afetadas, incluindo as relações materiais, culturais e naturais da sua própria existência.
Buscando contribuir com esse debate, consideramos neste momento do texto, significativas análises de Klein (2008 e 2009), uma jornalista canadense. Klein (2008 e 2009) faz um trabalho sério que acrescenta no processo de aperfeiçoamento dos que optam pela compreensão da realidade e a conscientização como único caminho para a resistência, a emancipação e a libertação. Com o seu trabalho, a autora busca impedir que sejamos anestesiados pelo choque da mentira e executados pela ausência de memória, sensibilidade e inteligência. Com efeito, seja por meio do seu livro A doutrina do choque, seja por meio do documentário com parte desse conteúdo, com o mesmo título, dirigido pelos diretores Mat Whitecross e Michael Winterbottom, a autora nos convida a conhecer de maneira sistematizada os recorrentes eventos de barbárie dos capitalistas financeiro-rentistas.
Dessa maneira, contribui para elaborarmos o nosso conhecimento e entendermos a necessidade de posicionamento pela reafirmação da esfera pública, para constituirmos a ação política de coragem baseada na resistência e superação da esfera privada da dominação, da desumanidade, da violência e da barbárie. Por isso, a necessidade, nesse momento do texto, de reproduzirmos a elaboração de Klein (2008 e 2009) sobre os eventos históricos de terror provocados pelo exercício do poder dos referidos capitalistas e dos seus tecnocratas de plantão. Embora a autora exponha analiticamente o movimento do golpe dos capitalistas financeiro-rentistas em vários países, mencionaremos somente alguns deles, reconhecendo a importância de sugerir a leitura integral do seu livro. Indiscutivelmente, devemos lutar contra o passado sombrio e a permanência da sua herança nefasta com os contínuos golpes contra a nossa liberdade política de compromisso coletivo com o bem comum.
Conforme Klein (2008 e 2009), o saque sistemático da esfera pública por meio da doutrina do choque do capitalismo desregulado culmina na destruição da história e da personalidade das pessoas, na tortura e assassinato dos opositores para impedir resistências. A autora observa que o fundamento da doutrina econômica neoliberal é a exploração da crise e do choque para a constituição do golpe contra os governos que investem nas políticas públicas para o bem comum.
Em função disso, ela reconhece o capitalismo neoliberal como capitalismo do desastre. Klein (2008 e 2009) lembra que o primeiro golpe militar dos capitalistas financeiro-rentistas foi no Chile, na década de 1970, contra o governo popular de Salvador Allende, que ganhou as eleições com uma plataforma de nacionalização generalizada no seu programa. O golpe de Estado de 1973 resultou no assassinato de Allende, com a alegação de que seu governo era marxista. Após o violento golpe de Estado, Friedman como conselheiro do ditador chileno, o general Augusto Pinochet, o aconselhou a impor uma reforma econômica.
Muitos economistas do governo Pinochet, os Chicago Boys, eram chilenos que estudaram sob a orientação de Friedman e outros docentes neoliberais na Universidade de Chicago. A formação acadêmica dos Chicago Boys chilenos e de outros estudantes da América do Sul foi promovida nos Estados Unidos, por meio de bolsa de estudos, para eles aprenderem economia de livre mercado com o neoliberal Friedman, entre outros. Após o assassinato de Allende, os Chicago Boys entregaram o seu projeto econômico ao ditador Pinochet, com a população em estado de choque, Pinochet impôs as políticas de favorecimento aos interesses dos capitalistas financeiro-rentistas, recomendadas pelos Chicago Boys, entre elas, a eliminação do controle de preços, a venda das empresas estatais, a eliminação dos impostos às importações e os cortes nos gastos públicos.
Até mesmo escolas públicas chilenas foram substituídas por escolas privadas mantidas por créditos estudantis emitidos pelo governo na forma de vouchers, até o leite gratuito foi abolido das escolas. Após um ano, a inflação chegou a aproximadamente 375% ao ano, a mais alta do mundo, com o empobrecimento de milhões de pessoas. Os opositores ao golpe foram detidos e encarcerados, muitos deles foram torturados e assassinados.
Rapidamente, ficou claro que as políticas econômicas de Friedman beneficiam os ricos com todo o prejuízo aos pobres. Pinochet governou o Chile como ditador durante dezessete anos. O golpe no Chile foi a estratégia mais extrema de apropriação capitalista jamais tentada em qualquer lugar e ficou conhecida como a revolução da Escola de Chicago (KLEIN, 2008 e 2009). Acrescentando-se que outros economistas integram a Escola de Chicago, tais como, George Stigler, Gary Becker, Robert Lucas Jr., Eugene Fama.
De acordo com Klein (2008 e 2009), o Chile não foi o único país da América do Sul que adotou as políticas da Escola de Chicago, na década de 1970, os discípulos de Friedman tinham postos chave no Brasil e assessoravam o governo do Uruguai. Na Argentina, um golpe militar interrompeu o governo de Isabel Perón em 24 de março de 1976 e os Chicago Boys assumiram cargos econômicos centrais no governo militar, com impactantes restruturações sociais e econômicas, em um contexto de choque e terror contra a população argentina.
A imposição das políticas econômicas da Escola de Chicago aconteceu com o desaparecimento de trinta mil pessoas sob o governo da junta militar, muitas delas ativistas de esquerda, foram aplicadas técnicas de tortura em estudantes, sindicalistas e contra qualquer opositor das políticas econômicas de livre mercado adotadas. Na Argentina a pobreza aumentou, os salários perderam 40% do seu valor, fábricas foram fechadas, entre outras consequências severas.
Na década de 1980, Margaret Thatcher na Grã-Bretanha e Ronald Reagan nos Estados Unidos, implantaram suas políticas econômicas com referência nos mercados livres e desregulados, conforme recomendação de Friedman, reconhecido por Thatcher como o batalhador intelectual pela liberdade. Tais políticas econômicas provocaram a redução da propriedade estatal, os cortes nos gastos públicos, entre outras medidas contra a população. Na Grã-Bretanha, antes de Thatcher, os diretores executivos de empresas que ganhavam dez vezes mais que um trabalhador médio, passaram a ganhar quatrocentas vezes mais. A história do livre mercado contemporâneo pode ser compreendida como a ascensão das corporações. Friedman reconheceu abertamente a importância de Thatcher e Reagan na difusão das políticas da Escola de Chicago em todo o mundo (Ibid.).
Na União Soviética, Mikhail Gorbatchov tentou a implementação de uma terceira via entre a democracia social e o capitalismo de livre mercado, ao acompanhar o desmoronamento dos velhos regimes comunistas. Gorbatchov esperava apoio financeiro para uma reforma gradual na economia. No entanto, foi advertido de que não receberia nenhum tipo de financiamento se não adotasse uma terapia de choque radical e sofreu uma tentativa de golpe de Estado, perdendo muito do seu poder.
O livre mercado chegou à Rússia com Boris Iéltsin, com a adoção das políticas da Escola de Chicago, o que marcou um novo capítulo da cruzada do livre mercado. Para Friedman e para os Chicago Boys abria-se um mundo completamente novo na União Soviética. A maioria dos russos opôs-se à visão radical dos Chicago Boys para o seu país. A terapia de choque de Iéltsin fez com que em 1992 a média dos russos consumissem 40% menos do que em 1991, um terço dos russos caiu abaixo da linha de pobreza, a corrupção se expandiu e o crime organizado cresceu.
Embora, em 1993, o parlamento tenha votado a favor de derrogar os poderes especiais concedidos a Iéltsin, sendo apoiado por seus partidários, Iéltsin declarou um estado de emergência e dissolveu o parlamento, em seguida ele ordenou às tropas a atacar o parlamento, adquirindo o poder absoluto, com a assessoria dos Chicago Boys, governando com uma forma de capitalismo “entre amigos”. Iéltsin adotou a opção Pinochet de governo, com o apoio dos Estados Unidos que o reconheciam como a esperança para a democracia da Rússia. Ademais, empresas estatais foram vendidas criando uma nova classe de empresários multimilionários com enorme influência política. A desigualdade social foi intensificada (Ibid.).
George W. Bush assumiu o poder nos Estado Unidos, com a certeza de que o inimigo a temer era a União Soviética. Após o ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, Bush estabeleceu uma guerra contra o terror, considerando ser uma luta do bem contra o mal. “[…] O 11 de setembro parece ter oferecido a Washington a facilidade de não precisar mais perguntar aos países se eles desejavam a versão norte-americana de ‘livre comércio e democracia’ […]” (KLEIN, 2008, p. 17). A primeira fase dessa guerra foi o bombardeamento do Afeganistão.
A guerra no Afeganistão resultou em dezenas de milhares de vítimas afegãs e norte-americanas. A primeira vez que as técnicas do manual de tortura Kubark – da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) foram utilizadas explícita e publicamente pelas forças americanas foi em Guantânamo. Dos setecentos e setenta e nove presos que passaram pela Baía de Guantânamo, somente três foram condenados por algum delito. Posteriormente, Bush atacou o Iraque, o país com a terceira maior reserva de petróleo do mundo, com o objetivo de criar choque e pavor na população.
O Iraque recebeu três diferentes tipos de choque: o choque da guerra, o choque econômico e o choque da execução, incluindo tortura. No entanto, com todo o ataque e a opressão dos Estados Unidos no país, os iraquianos protestavam nas ruas, mas como os protestos não tiveram nenhum efeito os iraquianos uniam-se à resistência armada e a violência saiu do controle, e medidas mais agressivas foram adotadas pelos Estados Unidos para reprimir a resistência. Posteriormente, os Estados Unidos ainda investiram na estratégia de lucrar com a guerra que provocou no Iraque. Após a devastação do Iraque os Estados Unidos ofereceram ajuda financeira para empresas norte americanas no referido país construírem um sistema mercantil (KLEIN, 2008 e 2009). A situação foi além do que Friedman poderia ter sonhado, dado o investimento de privatizações no Iraque.
Segundo Klein (2008 e 2009), demorou trinta anos para que a experiência econômica implementada originalmente por Pinochet, desse a volta ao mundo e chegasse ao Iraque, mas as semelhanças entre o passado e o presente são impressionantes. As similitudes entre os campos de concentração de Pinochet e o centro de detenção de Guantânamo da administração de Bush, entre os desaparecidos do Chile e os do Iraque, os choques elétricos têm o objetivo de apagar o passado, a personalidade, a memória coletiva, a história, a humanidade e implantar-lhe ideias novas. A tortura tem sido uma parceira dessa cruzada pelo livre mercado. Quando os oponentes do modelo econômico das corporações são eliminados, a eliminação é explicada como parte da guerra contra o comunismo ou o terrorismo e jamais como uma batalha pelo avanço do capitalismo neoliberal.
As políticas da Escola de Chicago adotadas pelos países eliminam as fronteiras entre o Governo e os negócios, com a criação de uma aliança poderosa entre algumas poucas corporações de grande porte e uma camada de políticos muito ricos, que trocam favores e contratos para vantagens mútuas. Consequentemente, a riqueza pública recolhida de gente comum por meio de impostos, é transferida desde as mãos do Governo para as mãos dos indivíduos mais abastados e das empresas mais ricas do mundo.
De maneira corporativa, essas elites e políticos se juntam para trocar favores com o uso de valiosos recursos públicos e, portanto, nesse regime o mercado é tutelado pelo Estado provocando a expressiva desigualdade e miséria social com o extermínio de muitos. No entanto, todos os golpes, guerras e chacinas perpetrados nesse corporativismo para priorizar os interesses das corporações nunca foram tratados como crimes capitalistas (Ibid.). Com efeito, a cruzada pelo livre mercado expõe uma criminosa política de extermínio fomentada pelos capitalistas financeiro-rentistas.
Analogamente, temos a contribuição de Sobral (2023) ao referir-se a James McGill Buchanan, partidário da filosofia libertária. Buchanan recebeu o Prêmio Nobel Memorial em Ciências Econômicas em 1986, por sua “Teoria da Escolha Pública”. Ele era contra os regimes democráticos. Criou a Escola de Economia da Virgínia, com influência em faculdades de economia dos Estados Unidos e formação de estudantes em cursos de pós-graduação do mundo todo, inclusive do Brasil.
Segundo Sobral (2023), ao voltarem para os seus países tais estudantes dirigiam seus próprios programas de pós-graduação e ocupavam disciplinas de graduação, atacando todas as visões divergentes e expulsando professores dissonantes. Tais estudantes especialistas empreendedores amparados pela meritocracia assumiram cargos públicos na justiça, promotorias e varas judiciais, nos bancos privados e no Banco Central, nas assessorias governamentais e parlamentares, e também nos meios de comunicação; até mesmo em governos de esquerda que aderiram ao empreendimento da eficiência e do produtivismo do capitalismo de mercado.
O plano de Buchanan, com a sua “Teoria da Escolha Pública” consiste em: “[…] (a) ataques brutais com assassinatos, de preferência; (b) ataques aos adversários de direita; e (c) ataques à esquerda, ou a todos os que querem algum mecanismo de redução das desigualdades e de humanização social” (Ibid., p. 2). O objetivo de Buchanan com a sua “Teoria da Escolha Pública” é a eliminação das sociedades democráticas e das pessoas que se oponham ao seu plano (SOBRAL, 2023). A saber, Buchanan tem formação também na Escola de Chicago e suas ideias são influenciadas também por essa escola.
O golpe de Estado no Brasil em 2016 foi político e econômico com gravíssimas repercussões sociais, permeado por táticas que correspondem aos interesses dos capitalistas financeiro-rentistas das corporações transnacionais com a colaboração dedicada dos tecnocratas brasileiros. Esse golpe deve ser analisado considerando a conjuntura de crimes desses capitalistas contra a humanidade, para o impulsionamento da sua política de livre mercado e, por conseguinte, da sua acumulação de capital de acordo com a recomendação de Friedman e da cartilha da política econômica dos Chicago Boys, com o uso das técnicas de tortura do manual de Kubark.
Os mentores e agentes desse golpe, no Brasil, são oriundos do submundo da elite brasileira, capazes de cometer crimes contra o seu próprio país e de exterminar o seu povo sem excluir outro na mesma condição de vulnerabilidade em âmbito mundial. Em função disso, interromperam um Governo democrático de compromisso com a reafirmação da esfera pública e implementaram a ditadura do livre mercado travestida de democracia.
O golpe de Estado no Brasil foi articulado pelos capitalistas rentistas das corporações transnacionais com os tecnocratas brasileiros em condição de subjugados, nessa circunstância eles parecem adquirir o status de tecnocratas financistas do livre mercado predispostos a fazer o trabalho consubstancial ao mal, constituindo a caquistocracia (o sistema de governo que reúne os piores, os menos qualificados e absolutamente inescrupulosos).
Os integrantes da caquistocracia brasileira ávidos por qualquer tipo de recompensa financeira e reconhecimento se apropriaram do Estado com artimanhas de ilegalidade, crueldade e disseminação de mentiras com o uso criminoso da tecnologia, instaurando a crise e o choque ao gosto de Friedman, para ludibriar os vulneráveis com a sua manipulação e satisfazer os desejos dos que se identificam com eles. Nesse ínterim, eles foram promovidos empenhadamente pelos espectros de Chicago boys disfarçados de mocinhos da Justiça, que instauraram as determinações dos senhores do livre mercado desde as entranhas obscuras do submundo do sistema judiciário brasileiro, substituindo o direito público pelo direito privado.
E, destarte, os justiceiros de toga que pareciam condenar e desconstruir a suposta corrupção de políticos e outros inconvenientes aos seus interesses se revelaram os próprios corruptos, capazes de qualquer atrocidade para serem merecedores da confiança e da remuneração econômica dos capitalistas financeiro-rentistas das corporações transnacionais.
A configuração dessa estrutura de poder no Brasil expõe um esquema corporativo de um Governo ultra-autoritário, em condição de Estado de exceção, operando para os capitalistas rentistas das corporações transnacionais com o objetivo de lucratividade máxima, com a apropriação dos recursos e bens públicos.
A caquistocracia brasileira reuniu militares, empresários, políticos empresários, políticos empresários fundamentalistas religiosos, milicianos e supostos homens da Justiça, entre outros, na criação da “Sociedade Anônima em nome de Deus, da Pátria e da Família”, com participação em empresas offshores nos paraísos fiscais, reafirmando o lema da liberdade individual que resguarda os interesses de dominação da esfera privada. Em benefício das suas recompensas junto aos capitalistas do livre mercado, a caquistocracia brasileira desqualificou, assediou e exterminou parte do povo brasileiro e se apropriou de riquezas do país.
E, após, dialeticamente interceptarmos o choque e o golpe de apropriação capitalista do país com o pouco de coragem e humanidade que ainda nos resta, embora com muitas sequelas, inclusive com a recorrência da servidão voluntária, cabe indagarmos: até quando permitiremos que os espectros de Chicago Boys e integrantes da caquistocracia arbitrem nas instituições inviabilizando a democracia? Até quando consentiremos que eles articulem golpes desde o Estado, nos meios de comunicação e na sociedade, impondo a política de livre mercado dos capitalistas financeiro-rentistas das corporações transnacionais contra os Governos democráticos de reafirmação da esfera pública?
O indivíduo de comportamento frenético, empreendedor, dissimulado, perverso e alienado do produtivismo e da eficiência neoliberal que busca reconhecimento e projeção no âmbito da ditadura do mercado constitui a sociedade da barbárie, da desumanização e da servidão moderna. Esse indivíduo-capital desconhece a coragem imprescindível para a ruptura com a esfera privada e para a elaboração da ação política da democracia fundamentada no pensamento dialético indispensável para a reafirmação da esfera pública.
A sua displicência e indiferença com a democracia revela a condescendência e a cumplicidade com os crimes dos capitalistas da ditadura do mercado e a adequação à caquistocracia constituída com a corrosão do caráter e a cultura do neoliberalismo.[i]
*Joelma L. V. Pires é professora na Faculdade de Educação na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Referências
BRESSER-PEREIRA, Luiz C. Capitalismo financeiro-rentista. Estudos Avançados, SP, v. 32, n. 92, p. 17-29, jan./abr. 2018.
______. Depois do capitalismo financeiro-rentista, mudança estrutural à vista? Novos Estudos CEBRAP, SP, v.36, n.1, p. 137-151, mar. 2017.
GEORGE, Susan. El pensamiento secuestrado; cómo la derecha laica y la religiosa se han apoderado de Estados Unidos. Barcelona: Biblioteca Pensamiento Critico, PC; Ed. Sol 90, 2009.
HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. Tradução João Alexandre Peschanski. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.
______. O neoliberalismo é um projeto político. Disponível em: esquerda.net/artigo/david-harvey-o-neoliberalismo-e-um-projeto-politico/43872.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vania Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
ROSENMANN, Marcos R. Neoliberalismo. Disponível em: https://www.printfriendly.com/p/g/SadwFU sites.usp.br/portalatinoamericano/espanol-neoliberalismo
SANSON, Cesar. O trabalho nos clássicos da Sociologia: Marx, Durkheim, Weber. São Paulo: Expressão Popular, EDUFRN, 2021.
SOBRAL, Fabio. Um plano bem detalhado. Disponível em: aterraeredonda.com.br/um-plano-bem-detalhado/.
STANDING, Guy. O precariado. A nova classe perigosa. Tradução Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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VERGARA ESTÉVEZ, Jorge; MENÉNDEZ MARTIN, Alan. Pensar la educación; desde Friedman a Dewey. Santiago de Chile: Universitaria, 2017.
Nota
[i] A versão completa deste texto será publicada no livro intitulado Golpismo estrutural e subversão da democracia: saque do Estado, neoliberalismo e imperialismo neofascista (2016-2022), do autor Roberto Bueno.
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