Os empreendedores coisificados

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

É com a privatização da esfera pública que é agravada a desigualdade e a injustiça social geradora da peste

Por Joelma Pires*

Os donos do capital com a sua hegemonia estabeleceram a legitimidade do mercado da economia neoliberal, ultrapassaram as fronteiras entre as nações, desqualificaram os povos e as suas culturas e desconstruíram a democracia com referência na esfera pública e no bem comum. Eles instituíram-se como elite financeira transnacional que se sustenta e se reproduz com o capital especulativo em detrimento do capital produtivo que depende da relação laboral constituída por meio da negociação com os trabalhadores como força de trabalho.

O capitalismo produtivo ainda que baseado na predominância da exploração da força de trabalho reconhece seu limite de instauração da barbárie ao não repassar totalmente os custos de reprodução social às pessoas em benefício do capital. Tal limite é imposto aos capitalistas pelos trabalhadores ao estabelecerem uma correlação de forças na qual agem como sujeitos históricos capazes de exigir a garantia de participação mínima nos ganhos de produtividade com poucos direitos sociais que mantém a sua condição básica de existência sem perecer na miséria. No entanto, os capitalistas financeiros da economia neoliberal rompem a fronteira da correlação de forças com os trabalhadores, ignoram o seu limite de instauração da barbárie e repassam às pessoas os custos da reprodução social em seu benefício. Com efeito, operam intencionalmente o desmonte de todos os serviços públicos para a sua apropriação privada.

Com a máxima acumulação de capital, os capitalistas financeiros reconfiguram-se e intensificam o seu poder político e econômico, reinventam a exploração da força de trabalho e desvinculam-se de qualquer responsabilidade com os trabalhadores. Para isso, operacionalizam por meio do Estado a mais intensa precarização dos trabalhadores com reformas trabalhistas desumanas ao extremo. Dessa maneira, a hegemonia desses capitalistas manifesta-se no Estado, ao qual controlam, seja por meio da sua estratégia de ocupar os cargos públicos, seja por meio das suas artimanhas para eleger os políticos que representam os seus interesses. Os capitalistas financeiros são transnacionais e têm uma rede de articulação que os coloca em condição de desresponsabilização com qualquer projeto de desenvolvimento do Estado-nação, pois eles consideram-se o próprio Estado que desconhece fronteiras e promove as suas leis de interesse privado. Os que não integram esse restrito grupo de iguais são seduzidos pelo empreendedorismo ou sujeitados à penúria da exclusão social.

Nessa conjuntura, a estrutura da relação capital e trabalho é desmontada e substituída pela dominação da esfera privada prevalecendo as negociatas dos interesses particulares. Nesse contexto, é enaltecido o indivíduo que apresenta uma subjetividade flexível para a rápida aprendizagem da esperteza ludibriante dos homens de negócio na garantia da sua vantagem, pois esse é referência de sucesso. Sobretudo, esse indivíduo de subjetividade adequada para a operacionalização do projeto do novo capitalismo fundamentado na banalização do mal e na apologia do crime é considerado o modelo de eficiência e produtividade. Para tanto, jaz a ética coletiva que sustenta a condição humana que impede a barbárie de ser a única possibilidade de existência. Jaz a correlação de forças, necessária ao enfrentamento da dominação sem limite, e instaura-se a alienação e a criminalização da resistência. Os trabalhadores já não se impõem à exploração dos capitalistas, pois pretendem não ser identificados como trabalhadores na sua alucinação de serem emergentes no mercado neoliberal, e então, assumem a condição de colaboradores ou de empreendedores. Em vista disso, anulam o significado histórico da relação de trabalho e, por conseguinte, ignoram a sua condição de sujeito histórico em uma estrutura de sociedade que somente pode ser menos desigual e injusta por meio da correlação de forças fundamentada na reafirmação da esfera pública e da política.

De colaboradores a empreendedores os trabalhadores transformam-se figurativamente em sócios precarizados do capitalismo, nessa situação não participam dos ganhos de produtividade, mas tornam-se operadores dos artefatos que favorecem somente os capitalistas financeiros. A subjetividade de colaborador e de empreendedor expressa a escravização de si próprio como manifestação da servidão voluntária por motivo de sobrevivência baseada na necessidade básica ou de autointeresse baseado na compulsão de consumo.

No caso do Brasil, se tal condição de alienação é inerente aos trabalhadores com baixa qualificação não deixa de atingir os trabalhadores altamente qualificados, uma vez que quase todos assumem a condição de empreendedores empenhados na concorrência individualista e na expansão do mercado para todas as relações sociais, reafirmando a esfera privada. Os empreendedores estão no setor privado e no setor público, nas escolas e nas universidades, nos meios de comunicação, no sistema jurídico e no político, disseminando com a máxima obediência a ideologia dominante das leis do mercado nas instituições com o objetivo de transformá-las em empresas rentáveis e garantir a sua almejada parcela de vantagem. Os empreendedores são coisificados em sua condição de alienação. Consequentemente, as instituições são desenraizadas de qualquer compromisso com a democracia que reafirma a esfera pública. A única democracia possível é a do mercado, que subjuga o direito público ao direito privado, impondo, então, a dominação que exacerba a desigualdade e a injustiça social.

É com a privatização da esfera pública que é agravada a desigualdade e a injustiça social geradora da peste. A peste companheira inseparável da barbárie domina uma sociedade que privilegia a pujança da economia que goza com a miséria e desconhece a mínima condição de inclusão social. Essa sociedade despótica, criadora da peste, ao subjugar-se ao trabalho alienado interrompe a cultura fundamentada na dialética do trabalho emancipado instituinte do homem humanizado. Esse é o único capaz de superar a barbárie e impedir qualquer catástrofe, pois a sua ação revela a prática social que possibilita a elaboração do pensamento comprometido com o gênero humano, com o bem comum e com o destino público. O homem humanizado na esfera pública garantida pela política da pluralidade, da igualdade e da liberdade como ética coletiva, problematiza e interrompe o fazer desordenado que é propulsor do produtivismo predador de pulsão psicopata.

* Joelma L. V. Pires é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Julian Rodrigues Claudio Katz Leonardo Avritzer Daniel Brazil Dênis de Moraes Juarez Guimarães Michael Löwy Remy José Fontana Ricardo Antunes Marcelo Guimarães Lima Marilena Chauí Jorge Branco Atilio A. Boron Marcus Ianoni Afrânio Catani Michael Roberts Érico Andrade Chico Whitaker Vladimir Safatle Ronald León Núñez Flávio Aguiar Antonino Infranca Lincoln Secco Eduardo Borges Bernardo Ricupero Milton Pinheiro Paulo Fernandes Silveira João Carlos Salles Eliziário Andrade Celso Favaretto Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Martins Sergio Amadeu da Silveira Bruno Machado Benicio Viero Schmidt Slavoj Žižek Alexandre de Lima Castro Tranjan Airton Paschoa Salem Nasser Igor Felippe Santos Ronald Rocha Vinício Carrilho Martinez João Feres Júnior João Sette Whitaker Ferreira Valerio Arcary Maria Rita Kehl José Costa Júnior Leonardo Boff Paulo Sérgio Pinheiro Elias Jabbour Eugênio Trivinho Otaviano Helene Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Armando Boito Anselm Jappe Caio Bugiato Luiz Renato Martins Mário Maestri José Machado Moita Neto Luiz Werneck Vianna Ari Marcelo Solon Marcelo Módolo Manchetômetro Gabriel Cohn Ronaldo Tadeu de Souza Marilia Pacheco Fiorillo Marcos Silva André Singer Liszt Vieira Manuel Domingos Neto Leda Maria Paulani Paulo Nogueira Batista Jr Leonardo Sacramento Gerson Almeida Fernando Nogueira da Costa Andrew Korybko Henry Burnett Paulo Capel Narvai Valerio Arcary Jean Marc Von Der Weid José Raimundo Trindade Francisco de Oliveira Barros Júnior Eleutério F. S. Prado Luís Fernando Vitagliano Tales Ab'Sáber Eugênio Bucci Fernão Pessoa Ramos Lorenzo Vitral Kátia Gerab Baggio Andrés del Río Luciano Nascimento Thomas Piketty Fábio Konder Comparato Lucas Fiaschetti Estevez Alysson Leandro Mascaro Ricardo Fabbrini Carlos Tautz Everaldo de Oliveira Andrade Luis Felipe Miguel Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Roberto Alves Ricardo Abramovay João Adolfo Hansen Priscila Figueiredo Osvaldo Coggiola Rafael R. Ioris Vanderlei Tenório Jean Pierre Chauvin Sandra Bitencourt Bruno Fabricio Alcebino da Silva Heraldo Campos Rubens Pinto Lyra Celso Frederico Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Samuel Kilsztajn Luiz Eduardo Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Mariarosaria Fabris Annateresa Fabris Chico Alencar Daniel Costa André Márcio Neves Soares Tarso Genro Henri Acselrad Eleonora Albano Daniel Afonso da Silva Yuri Martins-Fontes Rodrigo de Faria Walnice Nogueira Galvão Francisco Fernandes Ladeira Matheus Silveira de Souza Bento Prado Jr. Dennis Oliveira Renato Dagnino Boaventura de Sousa Santos Marcos Aurélio da Silva Carla Teixeira João Carlos Loebens Jorge Luiz Souto Maior Antônio Sales Rios Neto Denilson Cordeiro Antonio Martins José Dirceu Gilberto Lopes Flávio R. Kothe Ricardo Musse Michel Goulart da Silva Berenice Bento Luiz Marques João Paulo Ayub Fonseca João Lanari Bo Tadeu Valadares Ladislau Dowbor José Luís Fiori José Geraldo Couto Francisco Pereira de Farias Gilberto Maringoni José Micaelson Lacerda Morais

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada