Por SÉRGIO CARDOSO*
O populismo tornou-se um recurso para desqualificar discursos e práticas políticas ou mesmo para simplesmente embaraçar e constranger adversários
Minha intenção inicial era a de trazer aqui um paralelo entre o fenômeno da demagogia (e da sofística) na democracia antiga e as figuras dos populismos modernos, cujo paradigma clássico sociólogos e politólogos identificaram em regimes latino-americanos de meados do século vinte (anos 1930-50), os quais, depois, em vagas sucessivas, teriam se desdobrado até nosso presente, contaminando hoje mesmo países do hemisfério norte, para surpresa e inquietação de intelectuais e analistas políticos.[i]
Eu pretendia, assim, começar meu paralelo, antiguidade/atualidade, com figuras de grande destaque na vida intelectual e política da Atenas clássica: o grande sofista Protágoras –personagem central de diálogos de Platão e, como nos mostrou Francis Wolff, em uma ocasião semelhante a esta,[ii] o verdadeiro pensador da democracia ateniense; ou ainda figuras de demagogos conhecidos, como Alcebíades, filho de um cidadão muito rico (Clíneas), educado na família de Péricles e próximo de Sócrates. Dele, de Alcebíades, um importante historiador desse período diz ter sido “a personalidade mais brilhante de Atenas, nessa época”, representante de uma espécie de políticos motivados principalmente pelo prestígio pessoal, um personagem para o qual “a democracia de Atenas era o palco em que fazia o papel de astro [e que] a ninguém permitia afastá-lo da ribalta”.[iii]
Eu pretendia também evocar a figura de Cléon, líder do partido democrata, novo-rico, abominado pelos aristocratas e ridicularizado por Aristófanes na peça cômica Os cavaleiros. Esse personagem, Plutarco diz ter sido “o primeiro a gritar nos discursos ao povo, a rasgar as vestes, bater nas coxas e correr de um lado para outro falando; de modo que o proveito [pessoal] e o desprezo do decoro que logo depois tomaram conta de toda a vida política, ele os inspirou aos outros homens políticos”. Tais figuras, eu queria observar, manifestam uma espécie de paradoxo da democracia: o regime da isegoria (da palavra pública, aberta a todos e da confiança na eficácia da persuasão retórica) que, em certo ponto, parece ter vindo a comprometer a isonomia; comprometer o peso da igualdade das vozes e deliberações pela demagogia, uma doença congênita, ao que parece, às democracias.
Mas, não poderei desenvolver meu paralelo. Devo permanecer no campo dos embates conceituais e apreciativos que o populismo suscita, à direita e à esquerda.[iv] Disse “apreciativo”; deveria dizer “depreciativo”; pois, como é sabido, o termo, em geral, goza de uma inditosa fama, talvez lastimável. O populismo tornou-se um recurso para desqualificar discursos e práticas políticas ou mesmo para simplesmente embaraçar e constranger adversários, visto ter passado a conotar não só demagogia, mas também oportunismo, atraso e práticas contrárias ou lesivas à democracia.
Para o senso comum e o comentário político o termo se fixou como o contraponto dos princípios, ideais e procedimentos da democracia representativa, que os populismos distorceriam e desfigurariam. De um lado, teríamos um regime saudável, respeitoso das liberdades do mercado, cioso das instituições da representação, responsável e aberto para a cooperação internacional e o futuro. De outro lado, a indigência de lideranças atrasadas, muitas vezes irresponsavelmente redistributivistas, estatistas (sempre soberanistas) e confrontacionistas, presas à velha lógica do “nós contra eles” e da soberania dos Estados-nação. O populismo hoje é a sombra ameaçadora das boas práticas da democracia liberal ou neoliberal.
Não permaneçamos, porém, nesse registro mais corrente e ideológico do uso do vocábulo. Consideremos algumas balizas sociológicas e históricas desse conceito, sobretudo a partir do momento em que, dos anos 1950-60 em diante, ele passa a ser referido aos movimentos políticos e regimes de países da América Latina. Mas, convém lembrar preliminarmente – o que não é sem importância – que, na literatura sociológica, o vocábulo populismo (depois de seu emprego para movimentos sociais diversos, desde o final do século dezenove) se impõe inicialmente nos estudos norte-americanos relativos aos traços ideológicos e às bases sociais do macarthismo, em trabalhos clássicos da sociologia, como os de Talcott Parsons[v], Seymour Lipset[vi] e outros ainda.
Nos anos 1960, o populismo passa para os estudos das transformações políticas de países saídos do colonialismo (colonizados e subdesenvolvidos) e ganha, nos anos 1960-70, seu campo de referências mais fértil e estável em trabalhos sobre movimentos e regimes políticos latino-americanos, que se tornaram, então, os grandes paradigmas do conceito. Foi nesse campo, como se sabe, que o termo ganhou consistência sociológica no bojo das teorias da modernização e da dependência, em grande parte gestadas – é preciso lembrar – em nossa Faculdade de Filosofia da USP e desenvolvidos em trabalhos clássicos de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Francisco Weffort, Guita Debert e outros.
Segundo essas teorias, o populismo ocorre como resultado de um processo rápido de urbanização e industrialização em países atrasados e, para os teóricos da dependência, como consequência da incorporação desses países periféricos ao sistema capitalista internacional, numa transição – tanto das economias, como das relações sociais e das formas da autoridade – que produz instabilidade e vácuo político. A frágil rearticulação das classes (tanto as populares, quanto as que despontam para a hegemonia) abriria, nesse momento, a brecha para a atuação de líderes personalistas e para as instáveis alianças de classe dos regimes populistas. Eles seriam, portanto, fenômenos de transição de uma fase histórica de desenvolvimento dependente, em que a estrutura sócio-política não estaria consolidada, em que a forma liberal da sociedade civil não estaria bem enraizada. Esta seria a natureza dos populismos.
Certamente não entrarei aqui nas amplas e acirradas críticas enfrentadas por essas teorias: determinismo (passagem sem mediações das condições socioeconômicas a consequências políticas); reducionismo (visão simplista das massas como objetos de manipulação), demarcação histórica estreita do fenômeno e daí por diante. Mas, não quero deixar de ressaltar o interesse (e a inteligência) desta abordagem do populismo em termos genéticos e histórico-sociais, em termos das relações estruturais entre as classes e suas oposições políticas.
É verdade que estas teorias da modernização dependente inocularam na literatura sobre o populismo a ideia persistente de anomalia, irracionalidade e inconsistência política e ideológica dos regimes visados. No entanto, quando se buscou, com razão, escapar ao fundo economicista destas análises, para investigar a racionalidade da própria ação política, os traços institucionais e as condições específicas da emergência desses fenômenos populistas (o discurso mobilizador; sua recepção; as forma de organização e de ação coletiva dos movimentos), logo se deslizou, eu acredito, para uma simples repertoriação de traços e características analíticas de suas práticas, até se chegar à redução destes elementos a um certo modo (genérico) de aquisição e conservação do poder. Um meio, entre outros; uma maneira característica (descritivamente determinada) de obtenção do poder. Enfim, um tipo de “método” ou de “estratégia” política.
Assim, de conceito relativo a tipos de formação social e de regime político, o populismo passa, na literatura mais recente, a designar um perfil de comportamento na cena pública, um “estilo populista”, com notável negligência quanto a seus enraizamentos históricos, econômicos e sociais. Um esvaziamento do conceito que permite dizer, por exemplo, que um político é populista, como o seria também um professor ou um síndico de edifício, por agir “de maneira populista”. A operação é semelhante àquela que reduz o Príncipe de Maquiavel a um manual de condutas políticas, a um tratado de maquiavelismo. Mas, é verdade também, não obstante tal observação crítica, que se alcançou por esse caminho um consenso bastante amplo sobre os traços identificatórios mais gerais dos populismos.
Não vou desenvolvê-los aqui, mas posso enunciá-los: (i) mobilização de uma base social heterogênea: as massas, o povo, setores marginalizados da população (em oposição às elites), os excluídos de visibilidade no espaço público – eles não mobilizam classes socioeconômicas determinadas; (ii) desprezo pelos procedimentos da democracia representativa e, em geral, pelas mediações institucionais republicanas – demanda, pois, de democracia direta, ou mesmo de uma hiper-democracia (manifestações, referendos, plebiscitos, etc.); (iii) liderança personalista (e frequentemente paternalista), figurada, em geral, por outsiders da cena política; (iv) retórica demagógica: antiestablishment e antielitista; polarização dualista (nós/eles); (v) ideologia amorfa, rarefeita e inconsistente; recursos de propaganda vazia.[vii]
Ora, se observarmos bem, verificaremos que a redução do conceito a tais traços revela claramente que sua configuração se constrói diretamente por antítese em relação aos procedimentos da democracia liberal-representativa, que o populismo viria deformar e corromper. Para o liberal, o populismo é a doença infantil da democracia: supõe seus procedimentos (voto, decisões por maioria, etc.), mas os exacerba (leva ao extremo a ideia de soberania popular) ou os enfraquece e contorna (fustiga o Parlamento, desafia a Justiça), e sempre os esvazia, fazendo de um povo “visível” e de sua vontade atual, e não dos próprios procedimentos democráticos, a instância de legitimação do poder e das instituições políticas.
O populismo requer os procedimentos democráticos, mas mostrar-se-ia como que impaciente com a democracia. Ele atropela, se diz, os processos (parlamentares, por exemplo) de construção da unidade, em favor de algo como um consenso prévio e superior, representado pela vontade imediata e assertiva de um “povo” pressuposto. Enfim, segundo concluem Nadia Urbinati e Maria Paula Saffon, o populismo: (a) nega as diferenças ao invés de superá-las; (b) desafia o pluralismo e os conflitos que justificam o procedimentalismo democrático; (c) subordina a liberdade à unidade, que se realiza, esta, pela ou na figura de um líder.[viii]
O populismo, então, no frigir dos ovos, nada mais seria que o recurso à demagogia para atalhar “os incômodos aparatos das consultas democráticas”, algo como um fast track empregado por novas elites para chegar ao poder.[ix] Nada mais, portanto, que um mecanismo de substituição das elites políticas – um caminho que, em países atrasados, aprofunda o autoritarismo, fragiliza as instituições e retarda a construção da democracia.
Permitam-me insistir. O populismo é aqui avaliado e recusado como uma forma de procedimento político, justamente em vista de uma compreensão também procedimental da ordem política democrática – a definição enraizada no senso comum e nas próprias instituições neoliberais do nosso tempo – como aquela concepção, chamada “minimalista”, da democracia, compreendida singelamente como um método de tomada de decisões coletivas que opera por acomodações e compromissos de interesse e escolha de representantes pelo voto, segundo a regra da maioria; um método que se imporia em contextos de pluralismo de opiniões e valores e de conflitos de interesses antagônicos.
Os regimes legitimamente democráticos nada mais seriam, portanto, que a institucionalização desse método – cito Joseph Schumpeter – “pelo qual indivíduos ganham o poder de decidir por meio de uma luta competitiva pelo voto do povo”.[x] Ou, para dizer sem contornos: método para selecionar elites políticas e, assim, produzir decisões que agreguem preferências e interesses dos indivíduos. Tudo muito simples!
Mas, não é difícil entender porque, e em que contexto “ideológico”, o populismo foi reduzido a um método – espúrio, evidentemente – de substituição de elites políticas. Importante frisar que nessa concepção da democracia a legitimidade advém da igualdade formal dos cidadãos efetivada pelos procedimentos eleitorais e consultivos, aqueles procedimentos que o populismo desprezaria e contornaria, evocando, para além dessa unidade formal-eleitoral, um povo substantivo. Por isso o populismo aparece não apenas como despolitizador; mas, como contrapolítico.
Entretanto, muitos certamente me lembrarão que esse diagnóstico rigoroso, severamente crítico, sobre o populismo não vem apenas dos liberais. Marilena Chaui, por exemplo, em seus agudos estudos sobre o populismo brasileiro, também assumiria firmemente esta avaliação crítica. Sim. Mas, é preciso completar: por razões bastante diversas. Pois, ela escava no fundo dos populismos brasileiros (nem sempre, é claro, atribuindo o termo aos mesmos personagens que os liberais) seu enraizamento histórico e cultural em uma concepção teológico-política do Estado e em uma representação absolutista do poder, persistentes em nossa história.
Ela mostra que o Estado, entre nós, se representa como separado da sociedade, anterior a ela, aparecendo, desse modo, como o sujeito histórico por excelência da nação. Estamos, assim, atados a uma formação social oligárquica, hierarquizada e autoritária, na qual os “donos do poder” relacionam-se com a sociedade não na forma da representação democrática, mas na forma da tutela e do favor. Portanto, o populismo, entre nós, não é um recurso ou uma estratégia de agentes políticos que vêm comprometer as regras do jogo democrático; ele advém de uma formação social incompatível com as mediações institucionais democráticas e republicanas: personalista (na forma senhorial ou naquela da “competência” do especialista, do tecnocrata), absolutista e salvacionista; pois, a matriz teológica – transformada, aclimatada, laicizada, modernizada – continua a alicerçar nossas relações sociais e políticas. É por isso que, segundo Marilena Chaui, o nosso populismo é contrapolítico.[xi]
Voltemos, agora, aos embates teóricos da reflexão política atual sobre o nosso tema, buscando traçar um eixo de orientação nesse debate, que tem como horizonte a lógica da democracia, as condições de realização de um governo do povo (nem de um, nem de muitos; de todos) e que busca, portanto, compreender o que é um povo político, aquele que dá nome à democracia. Pois, esse povo não se manifesta como um fenômeno empírico, nem como uma entidade sociológica; ele é politicamente constituído. Faz-se, pois, necessário elucidar as condições desta constituição.
A primeira estação desse nosso trajeto é certamente a concepção minimalista, procedimental, da democracia, a que já nos referimos, a concepção assumida pelo “mercado” e que se impõe cada vez mais generalizadamente no nosso mundo neoliberal. Tentemos formular, de maneira direta, sua resposta à nossa interrogação. O que é povo, nesta perspectiva procedimental – o que é o povo democrático?
Hans Kelsen, em Essência e valor da democracia[xii] já satisfaz, nos termos mais claros, a esta interrogação. Ele observa que a unidade de um povo é uma construção ideal, sem qualquer outra incorporação sociológica que a submissão de todos os cidadãos às leis, criadas através dos compromissos de interesse operados pelo voto. Pois, existiria apenas uma forma de vencer os antagonismos dos indivíduos (de seus interesses e valores) sem atentar contra sua liberdade: a competição eleitoral pelo poder, em igualdade de condições, segundo as regras formais, procedimentais, do jogo democrático – entendido este, então, como a única fonte possível da produção e da legitimidade das leis, as quais, por sua vez, representam a única incorporação sociológica possível da unidade de um povo. Sublinhemos: um povo só é povo por suas leis, a partir de suas leis, e estas são tais em função das regras formais da democracia representativa – a razão política que opera nas sociedades democráticas.
Em franca oposição a esta concepção, vemos aquela do filósofo argentino, Ernesto Laclau –ex-professor em Essex e interlocutor de muitos intelectuais brasileiros, falecido há alguns anos; hoje mais conhecido como referência importante para o grupo da esquerda francesa La France Insoumise. Ele nos propõe uma outra razão política democrática – justamente chamada “populista”. Aqui a unidade do povo não é mais de extração formal (advinda dos procedimentos de apuração de uma vontade coletiva); é simbólica. Tentemos, pois, compreender esse modo de constituição política. E ousemos, temerariamente, contornar as referências lacanianas e linguísticas da teoria para esboçar o que seria a resposta laclauniana à nossa indagação.
Não há para nosso autor, um povo dado, substantivo, como aquele que se costuma alegar nos populismos. Sua unidade advém, segundo Ernesto Laclau, do ato de sua constituição como um ator histórico, como sujeito político de uma demanda[xiii], de uma reivindicação de extensão universal (de todos, popular), que incorporaria uma pluralidade de demandas socioeconômicas heterogêneas (“primordiais e irredutíveis”), fazendo-se, então, política, ao superar a particularidade dessas demandas elementares. Assim, para ele, toda a questão está em compreender esse processo de transformação, ou melhor, de sintetização da constelação das demandas particulares nessa demanda de alcance universal, política, motor de uma ação propriamente popular.
Ora, a rigor, não parece haver grande mistério nessa transformação (nessa “transubstanciação”, segundo ironiza Žižek[xiv]). É necessário, observa Ernesto Laclau, que uma certa demanda particular (de um grupo, de um setor social, de uma classe) assuma o papel, ou tome o lugar, do universal, que figure o conjunto das demandas particulares, nomeando o universal, dando-lhe presença discursiva. Pois, o universal só pode se manifestar pela mediação de um particular: “a encarnação no concreto [na particularidade de um símbolo do todo] é a única via pela qual a plenitude do universal pode ser alcançada”, visto que, “faltando ao universal um meio de representação direta, ele só pode obter uma presença ‘emprestada’, pelo meio enviesado de seu investimento em um certo particular”[xv]. Por isso, ele conclui também que a “encarnação do universal no particular é inerente à construção de toda identidade política”[xvi] (e ainda, “toda identidade política é necessariamente popular”[xvii]).
Mas, como se dá essa operação de identificação (ou de fusão) do particular e da totalidade? Ou, formulando de outro modo (visto que tudo se dá no registro da linguagem): como acontece o deslizamento da energia das demandas particulares para aquela universal, em que se empenha a identidade social? É esta a questão que nos leva ao núcleo da teoria de Ernesto Laclau, a seus principais conceitos (“equivalência”, “hegemonia” e outros, para os que conhecem seu pensamento). Vejamos, então! Como se dá a passagem das demandas particulares à universal, o processo de unificação das demandas primárias, socioeconômicas, em reivindicação propriamente política?
O processo se deve, diz Ernesto Laclau, à ocorrência de frustração de uma série de demandas pontuais, ocasionando o enfraquecimento de sua força, a atenuação de sua afirmação positiva, criando, então, entre tais demandas, “relações de equivalência” (se quiserem o laclaunês: “relações equivalenciais metonímicas de contiguidade”[xviii]), equivalências produzidas sobretudo por sua comum oposição a um polo antagônico, identificado como a causa das frustrações e, assim, investido como inimigo.
É a produção dessa “equivalência” entre as demandas face a um oponente que permite que uma delas – por eventos contingentes, históricos – se faça hegemônica e se eleve à posição de “equivalente geral”, ou equivalente universal, de todas elas (pars totalis), trazendo nomeação ou figuração simbólica a um universal político em que todas as demandas se identificam, forjando, assim, um sujeito político geral, popular.
É necessário sublinhar que esse processo de construção de uma identidade “popular”, simbolizada por uma demanda determinada, é inseparável, segundo Ernesto Laclau, da construção de um inimigo (o judeu, o capital financeiro internacional, os imigrantes, seja o que for), o inimigo sobre o qual se projeta a responsabilidade pela pluralidade das frustrações. De outro lado, esse processo é inseparável também da função identificatória de um líder, um “novo príncipe” (aqui a base maquiavelo-gramsciana de Ernesto Laclau), cuja liderança emerge identificada à demanda hegemônica, que ele figura e vocaliza, promovendo, assim, uma massa heterogênea de grupos sociais à sua afirmação (demandante, reivindicativa) como “povo”.
Caso paradigmático para Ernesto Laclau: o “povo polonês” que, em 1980, emerge repentinamente sob os símbolos dos estivadores de Gdansk, liderados por Lech Wałęsa – todos reunidos em torno do significante “Solidariedade”, esvaziado de sua particularidade (as reinvindicações primárias, dos estivadores) e tornado “equivalente universal” de todas as demandas frustradas dos poloneses. O símbolo “Solidariedade” faz ver a plenitude (ausente) do povo polonês nos anos 1980[xix]. Nesses movimentos populistas, segundo Ernesto Laclau, vemos, com lentes de aumento, o que ocorre em todas as formas de política. Toda política, acredita ele, pode ser subsumida por esse paradigma populista: “o populismo é o caminho para se compreender algo sobre a construção ontológica da política enquanto tal”[xx]. O populismo é a via régia para penetrarmos a sua lógica: toda política, afinal, é populista.
Vê-se, assim, como já assinalamos, que nessa estação laclauniana de nosso percurso, passamos a uma constituição da unidade do povo não mais de natureza formal e procedimental, mas simbólica. A unidade/identidade se manifesta na particularidade de um símbolo (discursivo) tornado apto a nomear o universal político, em função de um esvaziamento de sua energia própria, particular, e de sua elevação a uma posição hegemônica entre demandas particulares frustradas.
Cito o próprio Ernesto Laclau: “Minha análise inteira baseia-se na asserção de que qualquer campo político discursivo é sempre estruturado através de um processo recíproco pelo qual o vazio enfraquece a particularidade de um significante concreto, mas, em contrapartida, a particularidade reage dando à universalidade um corpo, necessariamente encarnado”[xxi] – encarnado no símbolo, mas também na figura do líder que lhe dá voz, que vocaliza a “demanda universal” de um “povo”. Povo-Um investido nessa demanda, sem distância de si mesmo, encarnado e plenamente nomeado por seu significante hegemônico e por seu líder.
Aqui, portanto, o poder não emana de qualquer fundamento transcendente (Deus, Natureza, Razão) de que o líder seria representante, como também não emana de um povo pressuposto, substantivado ou ainda constituído juridicamente por sua submissão às leis positivas. Para Ernesto Laclau, ele se produz efetivamente como “poder popular imanente”, por coincidir com a própria instituição política do povo. Talvez pudéssemos mais precisamente dizer: por coincidir com a instituição imaginária desse povo, vocalizado pelo líder e identificado por uma demanda “simbólica”.
Mas, minha intenção não é expor ou debater o pensamento de Ernesto Laclau, mas apenas, como disse inicialmente, a de pontuar com ele um percurso de investigação. Por isso, passemos à estação final do nosso percurso. Como se poderia talvez prever, passamos por fim à concepção lefortiana da democracia e à sua compreensão das condições da identidade social, também pensada como “simbólica”. E podemos tomar como ponto de partida das considerações de Claude Lefort justamente a afirmação da impossibilidade de figurar a unidade e identidade sociais no registro do positivo, sua denúncia da ilusão de dar a esse “lugar do universal” uma determinação positiva.
No entanto, Claude Lefort nos faz ver que, se tal “lugar” não pode ser determinado e preenchido (permanece vazio), se é “inocupável”, ele o é, “de tal modo que esta impossibilidade de ocupá-lo revela-se constitutiva do processo de socialização. Ele [o lugar do universal] está ausente do nosso campo [social], mas trata-se de uma ausência que conta, que o organiza”[xxii]. Enfim, sua ausência — o vazio do universal, da Lei — justamente tem a virtude de balizar, para além da multiplicidade dos interesses, um espaço comum, que seria plenamente social, o social “realizado”.
E é através do poder que esse “comum”, o sentimento dos homens de pertencerem a uma mesma coletividade se manifesta: “é através do poder [que] se indica esse lugar fora como ausente”.[xxiii] Em outra formulação: “a instauração de uma transcendência radical da Lei, do Universal [em que a unidade de um povo se realizaria], é correlata da tomada de posição (…) empreendida[xxiv] pelo poder sob seus emblemas”[xxv]. Nas democracias, o poder político marca esse “lugar” da unidade social, o lugar do universal, sem poder propriamente ocupá-lo, sem poder incorporá-lo, mantendo-se sempre à distância; mantendo-o vazio.
Assim, esta presença simbólica, indeterminada, da Lei e do Direito, pela qual um espaço social se produz e existe, impede a identificação e fixação imaginárias da sociedade a suas leis positivas e também aos poderes estabelecidos e abre a vida política para a indeterminação, para uma interrogação sempre aberta sobre a Lei e o Direito, para o trabalho do tempo e da história. Claude Lefort nos mostra que tal dimensão simbólica da Lei e do Direito se assinala e se patenteia nitidamente nos procedimentos democrático-eleitorais que regulam a ocupação temporária e alternada do lugar do poder e do lugar do saber da sociedade sobre si mesma, os procedimentos que justamente apontam esse lugar do Poder e da Lei como vazio – esvaziado a cada vez, a cada eleição, para ser ocupado por um outro, indefinidamente, visto que esta divisão da sociedade em relação à Lei e ao Direito, em relação a “si mesma”, é inultrapassável.
Assim, segundo Claude Lefort, através de seus rituais eleitorais, as sociedades democráticas modernas encenam sua distância em relação a si mesmas, em relação à sua identidade, em relação a uma Lei destacada de todo ponto de vista particular, que seria capaz de harmonizar e soldar seus membros em uma mesma e inteira comunidade. Enfim, o ritual eleitoral democrático periódico marca o lugar da Lei e do Poder e lhe confere um ocupante provisório, afirmando tacitamente ser impossível “ocupar” o lugar da identidade social, mantendo-o vazio, marcando seu estatuto simbólico.
Portanto, a democracia surge aqui, como aquela formação social que concebe sua unidade (e a Lei que a realizaria) como uma referência tão somente simbólica, a referência que a institui como interrogação social sobre o Direito, que suscita e sustenta o movimento da criação histórica de leis e de direitos. Sem tal referência simbólica, os conflitos sociais não alcançariam sua dimensão política; permaneceriam na arena da mera confrontação/oposição e possível composição de interesses, confortando as interpretações liberais da democracia (como simples método de aglutinação de interesses e solução dos conflitos).
Observemos, no entanto, a enorme diferença entre o estatuto e a função do simbólico no populismo político de Laclau e nesta concepção lefortiana da democracia. Em Ernesto Laclau, o simbólico é o elemento da fusão das demandas particulares em uma demanda universal; é o lugar e o meio da identificação do ocupante particular do poder com o universal representado pela “demanda popular” (política), a demanda tornada hegemônica e simbólica do conjunto heterogêneo das demandas socioeconômicas. O símbolo “Solidariedade”, por exemplo, é o elemento da identificação entre o povo polonês, o sindicato de Gdansk e Lech Wałęsa, que então ocupa o lugar do Poder. Já em Lefort, o estatuto simbólico do Direito, ao contrário, é justamente o que permite barrar esta identificação imaginária do ocupante do poder com o universal, com a Lei e o Direito; ele é o antídoto para a tentação que ronda a cada passo os ocupantes provisórios do lugar do poder de figurarem eles mesmos o universal, de encarnarem uma sociedade una e indivisa contra seus inimigos.
Enfim, aqui, o simbólico não é o promotor da identificação do poder e do povo; ele é o motor da negação da pretensão dos poderes históricos e suas leis de representarem o universal, o “povo”, de se fazerem os fiadores ou representantes da Verdade, da Lei e do Direito – que, assim, permanecem indeterminados, “ausentes”, irredutíveis a qualquer positividade, puramente simbólicos. A passagem pela crítica dos totalitarismos barra em Claude Lefort toda ilusão identificatória do povo com um partido ou com seu líder.
Por outro lado, justamente esta dimensão simbólica afasta também a democracia lefortiana do enclausuramento da democracia liberal nos limites estreitos da legalidade positiva de um “Estado de direito”. A democracia procedimental, por não reconhecer qualquer elemento de transcendência, qualquer distância do Direito em relação às cláusulas formais de seu funcionamento, confere às leis positivas uma autoridade inderrogável. Tudo concede, assim, às leis positivas e ao poder do Estado, que garante o estabelecimento e o cumprimento dessas leis e a manutenção da ordem legal (vista, esta, como o elemento mesmo da unidade da sociedade).
Para Claude Lefort, há povo pela Lei simbólica, buscada pelos movimentos sociais e pelos rituais da democracia. Para o liberal, apenas há povo pelas leis positivas, estabelecidas pelos procedimentos da democracia. Ora, esse formalismo democrático – a forma superior da política nesses tempos neoliberais –, na verdade, afasta a ideia de povo (há, efetivamente, indivíduos e seus desejos e valores próprios) e desdenha a cidadania popular reivindicativa e “contestatária” (fundada na aspiração comum pelo Direito); ele reduz os cidadãos a uma massa heterogênea de interesses conflitantes, a serem acomodados tão somente por meio dos compromissos eleitorais e procedimentos representativos. Esse formalismo tende a desqualificar toda manifestação “popular” por direitos que vá além do voto como irracionalismo político (sustentado quase sempre por ideologias inconsistentes ou populismos demagógicos), como sabemos bem.
O que tenho, assim, a dizer é que não podemos deixar prevalecer esta concepção procedimental como a forma natural da democracia; não podemos deixá-la usurpar, como tem feito, o seu nome. A democracia não é o regime da positividade das leis e do formalismo da ordem. Não é um método e um procedimento político engenhoso de agenciamento e agregação de interesses, a ser operado por homens honrados e honestos, sob a vigilância e o olhar atento dos indivíduos concernidos. A democracia – faço-me lefortiano – é uma formação social histórica que se inventa e reinventa nos movimentos que afloram na superfície da sociedade a cada dia, nas lutas por direitos e valores, contra a opressão dos interesses particulares dos “grandes”, em sociedades que descobriram que nem tudo se reduz a conflitos de interesses, que o Poder e a Lei não têm donos, que o Direito não está fixado (por Deus, pela natureza ou pela Razão dos sábios ou sensatos), que é objeto de uma interrogação histórico-social contínua.
Caros estudantes, observem que os embates da política e das ideologias envolvem também nossas batalhas intelectuais cotidianas, como essa mesma que tentei trazer a vocês, relativamente ao conceito de poder popular, populismo e democracia, relativamente ao debate em torno da natureza do sujeito político das democracias. Vejam que entre o povo-eleitor dos liberais, o povo-debatedor dos habermasianos (que em função dos limites do nosso tempo contornei no meu percurso), o povo-combatente e mobilizado imaginariamente pelas reivindicações e lideranças populistas, ou o povo contestador e reivindicador do ativismo fervilhante dos movimentos sociais e políticos por direitos, aquele da invenção democrática dos lefortianos (e outros mais), o pensamento está em curso e, mais decisivamente ainda, nossa história está em causa e está sendo escrita.
*Sérgio Cardoso é professor do Departamento de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de Maquiavelianas: lições de política republicana (ed. 34). [https://amzn.to/3RqK6jB]
Publicado originalmente na Revista Rosa.
Notas
[i] O texto que se segue foi escrito para apresentação oral em aula inaugural tradicionalmente dirigida aos ingressantes no curso de Filosofia. Essa destinação levou-me, em alguns momentos, a dispensar indicações bibliográficas mais precisas e a glosar certas passagens de obras dos autores comentados com a finalidade de tornar os argumentos mais diretos e claros. Peço ao leitor que releve tais procedimentos, em função dos quais hesitei até aqui em permitir a publicação desse texto.
[ii] N. do E.: Sérgio se refere ao artigo Filosofia grega e democracia, título dado ao texto remanejado da aula inaugural ministrada por Wolff aos ingressantes do departamento de Filosofia, em 1982. Ver Francis Wolff, Filosofia grega e democracia, Discurso, n. 14, p. 7-48, 1983.
[iii] Peter V. Jones, O mundo de Atenas, São Paulo, Martins Fontes, 1997 [1984], p. 34.
[iv] Também em virtude da extensão do atual dossiê, ao qual este texto se anexa.
[v] Talcott Parsons, Social strains in America, in: Daniel Bell (ed.), The radical right, New Brunswick, Transaction Publishers, p. 209-30, 2008 [1955].
[vi] Seymour Martin Lipset, Political man: the social basis of politics, Nova Iorque, Doubleday and Company, 1960.
[vii] Ver, entre outros, Cas Mudde & Cristóbal Rovira Kaltwasser, Populism: a very short introduction, Oxford, Oxford University Press, 2017; e Jan-Werner Müller, What is populism?, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 2016.
[viii] Ver Maria Paula Saffon & Nadia Urbinati, Procedural democracy: the bulwark of equal liberty, Political Theoory, v. 41, n. 3, 2013, p. 441.
[ix] Idem, ibidem, p. 454. Ver também Jean Comaroff, Populism and late liberalism: a special affinity?, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 637, p. 99-111, 2011.
[x] Joseph A. Schumpeter, Capitalism, socialism and democracy, Nova Iorque, Harper and Row, 1972 [1942], p. 269.
[xi] Ver Marilena Chaui, Raízes teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominantes, messianismo dos dominados, in: Evelina Dagnino, Os anos 90: política e sociedade no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1994; e, mais recentemente, Sobre o populismo no Brasil, Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 32, p. 54-74, 2018.
[xii] Ver Hans Kelsen, Essência e valor da democracia [1929], in: ______, A democracia, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 23-108.
[xiii] O termo “demanda” empregado aqui, como se sabe, é objeto de polêmica: insinuaria passividade no povo, que deveria ser justamente o ator político. Mas, é preciso tomar o verbo, no seu sentido original de “re-clamar”, protestar, gritar contra (reclamare, reclamitare).
[xiv] Slavoj Žižek, Against the populist temptation, Critical Inquiry, v. 32, n. 3, 2006, p. 554.
[xv] Ernesto Laclau, Why constructing a people is the main task of radical politics, Critical Inquiry, v. 32, n. 4, 2006, p. 648.
[xvi] Idem, ibidem, p. 650.
[xvii] Idem, ibidem, p. 677.
[xviii] Idem, O retorno do “povo”: razão populista, antagonismo e identidades coletivas, Política & Trabalho: revista de ciências sociais, n. 23, 2005, p. 12.
[xix] Ver Ernesto Laclau, Why constructing a people…, p. 652-3; e O retorno do “povo”…, p. 11.
[xx] Ernesto Laclau, A razão populista, São Paulo, Três Estrelas, 2013 [2005], p. 115.
[xxi] Idem, Why constructing a people…, p. 647.
[xxii] Claude Lefort & Marcel Gauchet, Sur la démocratie: le politique et l’institution du social, Textures, v. 71, n. 2-3, Du politique, 1972, p. 17.
[xxiii] Idem, ibidem.
[xxiv] N. do E.: Aqui os autores parecem jogar com o sentido das palavras em francês. Lê-se no original entreprise de position, algo que se traduziria, literalmente, por “empresa de posição”; expressão pouco convencional, destituída de um sentido mais profundo (tanto em português como em francês). No entanto, prise de position, (expressão foneticamente muito próxima à anterior) traduz-se, literalmente, por “tomada de posição”. De tal modo que aquilo que parecem querer dizer os autores diria respeito a uma tomada de posição que é, ao mesmo tempo, uma empresa, ou um empreendimento, de quem a toma (no caso, o poder). Razão pela qual traduzimos a expressão por “tomada de posição (…) empreendida”.
[xxv] Claude Lefort & Marcel Gauchet, Sur la démocratie…, p. 18.
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