Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JR.*
As relações dos povos indígenas que habitam as terras brasileiras com seus respectivos territórios não são redutíveis aos institutos do direito ocidental
No contexto brasileiro pós-1988 da Nova República, a discussão em torno da tese do marco temporal tem sido quase atemporal (sic), sendo uma pauta prioritária dos movimentos indígenas, surgindo e ressurgindo nos holofotes do debate público inúmeras vezes. Esse foi o caso, por exemplo, do PL 2.903/2023, objeto de veto parcial pelo presidente Lula em 20 de outubro. A polêmica reside na proposta de definir o reconhecimento dos direitos territoriais das populações indígenas com base nas terras de fato ocupadas quando da promulgação da Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, de acordo com essa tese, as terras só seriam reconhecidas como territórios indígenas se estivessem sob ocupação indígena naquela data, ignorando quaisquer reivindicações anteriores ou posteriores.
Evidentemente, trata-se de uma abordagem controversa. Do ponto de vista da hermenêutica do texto constitucional, a tese é frágil, pois baseia-se no fato de que o parágrafo 1° do art. 231 da Constituição começa com um verbo conjugado no presente. Conquanto a interpretação gramatical de uma norma seja importante por servir de sustentáculo para as demais abordagens interpretativas, não costuma ser suficiente. A interpretação meramente gramatical da norma é demasiado pobre. Mas a tese é controversa não apenas por basear-se em uma interpretação ad litteram que ignora o espírito e as intenções do texto constitucional, mas também por desconsiderar séculos de deslocamentos forçados e desapropriações das populações indígenas, ocasionados pela colonização e pelo processo de expansão territorial.
É importante ressaltar que as relações dos povos indígenas que habitam as terras brasileiras com seus respectivos territórios não são redutíveis aos institutos do direito ocidental. Esse é um dos maiores problemas do crescente e inclemente processo de juridicização das questões relativas aos povos indígenas no Brasil. O ordenamento do Estado-Nação possui pretensões absolutas, não sendo levados em consideração os termos e categorias propriamente indígenas, mesmo em questões relativas a esses povos (existe, por óbvio, grande diferença entre direito indigenista e direito propriamente indígena).
O mesmo pode ser dito, inclusive, de conceitos e termos aparentemente inocentes, como o “tradicional” invocado pelo enunciado do art. 231 da CF. Territórios indígenas são fluidos, e, pelo menos historicamente falando, deslocamentos geográficos ocorrem com relativa frequência. Há inúmeros exemplos disso, como as andanças dos guarani mbyá em busca da mítica Terra Sem Males, que fez com que deixassem o Paraguai rumo ao sudeste brasileiro ao longo do século XX. (TEAO, 2015). Para citar um exemplo mais recente, há também o caso dos araweté, que hoje habitam o igarapé do Ipixuna, no Pará. Dizem eles que outrora já habitaram outro local que, em sua cosmologia, ocupa o centro geográfico da terra, de onde foram expulsos por conta de conflitos interétnicos (CAUX; HEURICH; VIVEIROS DE CASTRO, 2017, 39).
Do ponto de vista desses povos, sujeitos de sua própria história, qual dos territórios que ocuparam ao longo dos anos pode ser tido como sua morada verdadeiramente “tradicional”, considerando inclusive que a tradição é algo dinâmico, ao contrário do que estamos acostumados a pensar? Os que arquitetaram nossas normas jurídicas relativas aos povos indígenas não tiveram a preocupação de descobrir. O estabelecimento, mediante interpretação meramente gramatical do texto normativo, de um marco cronológico francamente arbitrário da perspectiva da profusão de etnias autóctones brasileiras, apenas agrava a situação. Tem-se não apenas uma falta de sensibilidade antropológica, mas também histórica. A tese do marco temporal não leva em consideração uma pletora de fatores de deslocamento populacional indígena, tais como nomadismo, migrações, guerras interétnicas e realocações forçadas, que podem levar uma etnia a afastar-se de seu território “tradicional”, o que teria como resultado óbvio, mediante aplicação dessa tese, a perda de direito sobre o território em questão.
A imposição de regimes de apropriação e direitos fundiários ocidentais ao contexto indígena é uma decisão antropologicamente duvidosa. Conforme Étienne Le Roy, direitos fundiários nada mais são do que expressões de diferentes modos de conceber o espaço e as relações sociais. O regime fundiário ocidental deriva de uma forma específica de representação do espaço geográfico, caracterizada pela medição da superfície e atribuição de um valor econômico a ela. Não se trata do único regime fundiário que existe. Entre os aborígenes australianos, por exemplo, é vigente uma concepção que o autor chama de odologia (“ciência dos caminhos”), na qual as trilhas passam a ser elemento de destaque. Tais povos dão importância às chamadas “trilhas de sonho”, que marcam os caminhos percorridos pelas criaturas míticas durante a era cosmogônica à qual dão o nome de “Tempo do Sonho”, e atravessam a vasta extensão do continente australiano. De modo similar, os povos indígenas do Brasil têm suas próprias concepções socio-espaciais do mundo em que vivem, com implicações importantes que tornam seu regime de apropriação fundiária fundamentalmente diferente daquele previsto no ordenamento jurídico brasileiro.
Tal incompatibilidade não representa um equívoco inocente. Pelo contrário, a submissão dos povos indígenas a um regime fundiário exógeno a sua realidade privilegia interesses incompatíveis e até mesmo antagônicos e hostis em relação ao bem-estar e à própria sobrevivência desses povos. É um claro exemplo de como o conceito de Rule of Law, frequentemente tido como muitíssimo nobre, pode ser e frequentemente é utilizado como artifício retórico e ideológico visando a legitimação da pilhagem (MATTEI; NADER, 2008).
Conforme demostra a questão dos diferentes regimes de apropriação fundiária, tese do marco temporal é ilustrativa de como a racionalidade que rege a normatividade ocidental e, mais especificamente, brasileira, diverge fortemente das formas de organização e resolução de conflitos presentes nas sociedades indígenas. Não há um efetivo diálogo entre essas tradições, pois quando essas tradições jurídicas interagem, a interação é sempre marcada por uma forte assimetria. O direito ocidental projeta-se como significante despótico sobre a realidade dos povos originários. Isso chega a resultar em efeitos disruptivos quanto à organização social dessas populações. Citando como exemplo novamente os araweté, antes do contato com a sociedade nacional, ocorrido na segunda metade do século XX, eles organizavam-se em aldeias acéfalas, sem uma instituição sólida de chefia (o papel de liderança em uma determinada situação era assumido de forma espontânea e ad hoc) (CAUX; HEURICH; VIVEIROS DE CASTRO, 2017, 79-83). Essa configuração política, no entanto, dificultava sobremaneira o trato com os indigenistas e com o Estado brasileiro, e nos dias de hoje as aldeias araweté já contam com “chefes” para esses fins. O próprio tecido social indígena é forçado a dobrar-se perante a normatividade do Estado-Nação moderno. Ocorre aqui uma rejeição a priori das formas de juridicidade nativas, exteriores ao paradigma burocrático estatal.
Em termos de convivência de etnias indígenas com o Estado brasileiro, o que existe na prática é um regime de pluralismo jurídico fortemente agonístico e assimétrico (não é o que costuma vir à mente quando se ouve falar em pluralismo jurídico), com um dos ordenamentos simplesmente não reconhecendo a juridicidade alternativa representada pelos demais (vale ressaltar que não existe apenas um direito indígena brasileiro, visto que cada povo vive de acordo com suas próprias convenções internas). Quiçá não haja melhor exemplo dessa situação tão precária do que a própria tese do marco temporal.
A tese do Indigenato, por outro lado, é a mais aceita na jurisprudência nacional, e sua origem é anterior até mesmo a 1988. Baseia-se em uma perspectiva histórica que reconhece os direitos das comunidades indígenas com base em sua ocupação ancestral (i.e., pré-cabralina) das terras que viriam a ser o Brasil, independentemente de sua ocupação no marco temporal arbitrário da data de promulgação da Constituição de 1988. É uma visão que leva em consideração o longo histórico de injustiças cometidas contra essas populações e busca corrigi-las.
A contraposição dessas duas teses evidencia as tensões entre a busca pela justiça histórica e os interesses econômicos e políticos relacionados à posse da terra no Brasil. Entretanto, uma análise mais cuidadosa leva inevitavelmente à conclusão de que a tese do Indigenato é, a bem da verdade, uma espécie de Marco Temporal disfarçado, fixado não em 1988, mas em 1500. Essa constatação não invalida ou desmerece a tese do Indigenato, claramente superior à alternativa, mas demonstra algo que é (ou pelo menos deveria ser) trivial: o caráter contingente da própria categoria “indígena”. Isso é reconhecido inclusive pelos próprios indígenas, por exemplo, quando afirmam que a sobrevivência de seus povos e culturas depende do território (YAWALAPITI, 2019).
A indigeneidade não pode ser devidamente compreendida senão como uma contingência histórico-geográfica que reflete a complexidade das relações humanas com territórios ao longo do tempo. O oposto-complementar de “indígena” é “alienígena”, de modo que uma categoria pressupõe a existência da outra. No contexto do Brasil e do restante do Hemisfério Ocidental, as populações de matriz europeia representam os “alienígenas” por excelência. Mas nem sempre foi assim. Há muitos casos de povos hoje considerados indígenas que outrora consideravam-se alienígenas em seu próprio território. Os povos de língua náuatle (entre os quais os astecas são os mais famosos) que dominavam o Vale do México no século XVI estabeleceram-se na região em um processo de sucessivas ondas migratórias iniciado cerca de um milênio antes, usurpando o poder político de populações mais antigas, falantes de idiomas mixe-zoqueanos ou oto-mangueanos (CANGER, 1980, p. 12). Algo semelhante ocorreu na costa brasileira, com a expansão de povos tupis em territórios então ocupados por populações ditas “tapuias”, como os krenak, pataxó e kariri (NOELLI, 1996, 34-35).
Na ausência de europeus, astecas e tupinambás eram os alienígenas em seus respectivos contextos pré-coloniais. Isso se dá por dois motivos: primeiro, porque chegaram tardiamente a terras já habitadas por outras populações; segundo, porque o continente americano ainda não existia enquanto conceito no imaginário geográfico de nenhum desses povos. Foi apenas com a chegada dos europeus, vindos de terras distantes como alienígenas absolutos, que tornou-se possível conceber todos os povos que já habitavam as Américas como indistintamente indígenas. Em outras palavras, a aplicação do conceito de “indígena” varia consideravelmente em diferentes contextos históricos e geográficos, sendo que sua iteração contemporânea está intrinsecamente ligada à colonização e expansão global europeia. As consequências disso são potencialmente problemáticas, pois estaríamos admitindo que a chegada dos europeus fez tabula rasa de toda a história pré-colonial desses povos e suas incontáveis nuances.
Uma das críticas que se faz ao uso do termo “índio” é que ele reduz toda uma imensa variedade antropológica a um bloco supostamente monolítico. Por mais que o termo “indígena” seja de fato preferível por ser mais neutro, descritivo e por não derivar de um erro histórico grosseiro, pode-se dizer, dado o exposto, que ele sofre do mesmo vício. as populações nativas de diferentes regiões do mundo possuem histórias, culturas e contextos únicos. O que é considerado “indígena” em uma parte do mundo frequentemente não se aplicar a outra. Um araweté residente em Dublin, por exemplo, obviamente sempre será um araweté, mas jamais poderia ser dito indígena à Irlanda. Similarmente, a única razão pela qual alguém negaria aos japoneses o status de “indígenas” ao Japão (apesar de a etnogênese desse povo ter ocorrido lá mesmo, e há bastante tempo) seria pelo contraste com populações locais ainda mais antigas, como os uchinanchus de Okinawa ou os ainus de Hokkaido (percebam, no entanto, que tal preciosismo nunca é aplicado aos astecas ou tupinambás).
Tudo isso soa como (e de certa forma é) uma arbitrariedade da mais alta ordem. No entanto, o fato é que aquilo que consideramos ou não “indígena” passa por certo crivo essencialista, isto é, pela crença na existência de características inerentes e fixas que definem a natureza de algo (ou alguém). Ora, por que consideraríamos a etnia sámi da Escandinávia “o único povo indígena da Europa” (GOUVERNEUR, 2017), em detrimentos de outras populações cuja origem é similarmente antiga, como os sardos ou bascos? A resposta é simples: além de possuírem um idioma próprio (assim como sardos e bascos), os sámi, ao contrário dos demais europeus, tradicionalmente são pastores de renas que não praticam a agricultura, vestem roupas coloridas, tocam tambores xamânicos e vivem em tendas na neve. Em outras palavras, sua indigeneidade é reconhecida principalmente em função de fatores estéticos e performáticos, o que nada mais é do que uma versão bem-intencionada do pensamento por trás de velhos chavões como “índio de iPhone”, tão frequentemente utilizados para deslegitimar identidades e pautas indígenas no contexto brasileiro. “Indígena” é a alcunha dos azarões, condenados à eterna condição de minoria social precarizada.
Frequentemente de mãos dadas com esse essencialismo bem-intencionado anda o discurso de ecologização das populações indígenas. No atual contexto de crise ecológica, essas populações, visando desesperadamente a própria perpetuação, sentem-se na necessidade de sempre justificar sua própria existência, não como fins em si mesmas, mas como prestadoras de valiosos “serviços ambientais”. Pode-se até dizer que é um avanço em relação ao velho paradigma no qual esses povos eram vistos como “entraves para o progresso”, mas a retórica ecologizante também serve de entrave para a construção de sociedades indígenas enquanto sujeitos de direito (SANTOS, 2016).
Tal argumento utilitário também atribui grande parte do “fardo” da preservação ecológica a esse monólito antropológico que são as populações “indígenas” ao redor do mundo (mas especialmente no Brasil, cujo território inclui a maior parte da Amazônia). Enquanto isso, a pequena-burguesia urbana ocidentalizada de sensibilidades vagamente progressistas (que tanto problematiza o indianismo alencariano, como se não fosse sua herdeira ideológica direta) bate palmas e, carregada de dó e culpa, derrama vãs lágrimas, mantendo intacto seu estilo de vida ambientalmente deletério. Parecem não perceber que os coletivos indígenas não vivem em harmonia com seu ambiente em função de uma essência (que não existe), mas de um ethos que não lhes é exclusivo (é isso que demonstram as inúmeras populações tradicionais não-indígenas, como quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, quebradeiras de coco etc.). Parece que a essa pequena-burguesia urbana ocidentalizada cabe apenas uma estranha e paradoxal condição: algozes do mundo e dos povos; vítimas da própria consciência. É melhor deixar tudo mais ou menos do jeito que está. Afinal, não queremos cometer apropriação cultural e outros crimes similarmente hediondos.
Em suma, assim como a tese do marco temporal, o essencialismo que em grande parte informa noções populares daquilo que é “indígena” deve ser rejeitado. Para que isso ocorra, é necessário que sejam reconhecidas certas nuances, entre elas a impossibilidade de se divorciar o indígena de seu contexto no tempo e no espaço (fato esse que os apologistas do marco temporal utilizam de forma abusiva). Se há algo que essas duas questões nos revelam, é que o debate pautado em obsessões gramaticais e terminológicas rasas, frequentemente em detrimento do pragmatismo linguístico, pode nos levar a lugares estranhos e conclusões errôneas.
*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel na Faculdade de Direito da USP.
Referências
CANGER, Una (1980). Five Studies Inspired by Náhuatl Verbs in -oa. Travaux du Cercle Linguistique de Copenhague, Vol. XIX. Copenhagen: The Linguistic Circle of Copenhagen; distributed by C.A. Reitzels Boghandel.
CAUX, Camila de; HEURICH, Guilherme Orlandini, VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: um povo Tupi da Amazônia. São Paulo: Edições SESC, 2016.
GOUVERNEUR, Cédric. Le Monde Diplomatique: Europe’s only indigenous people. 2017. Disponível em: https://mondediplo.com/2017/01/14saami.
MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. Tradução de Jefferson Luis Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
NOELLI, F. As hipóteses sobre os centros de origem e as rotas de expansão dos tupi. Revista de Antropologia, 1996, 39:7-53.
SANTOS, L. R. O processo de ecologização como obstáculo para a construção das sociedades indígenas enquanto sujeitos de direito. 2016. 172 f. Dissertação (Mestrado em Direito Agrário) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016.
TEAO, K. M. . História e deslocamentos dos Guarani Mbya do Paraguai ao Espírito Santo (1940-1973). Dimensões: Revista de História da UFES , v. 35, p. 321-346, 2015.
YAWALAPITI, Watatakalu. PIB Socioambiental: “Sem o território, a nossa cultura acaba, os nossos filhos se perdem, né? Sem ele a gente não existe. Sem ele, simplesmente não existem os povos indígenas.”. 2019. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/%22Sem_o_território,_a_nossa_cultura_acaba,_os_nossos_filhos_se_perdem,_né%3F_Sem_ele_a_gente_não_existe._Sem_ele,_simplesmente_não_existem_os_povos_ind%C3%ADgenas.%22.
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