Trilogia do cárcere

Gulsun Karamustafa, Pinturas de Prisão 15, 1972
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Por VANDERLEI TENÓRIO*

Considerações sobre a obra de Aly Muritiba e o sistema prisional brasileiro

A história do cinema é repleta de filmes que retratam o cárcere, o ambiente prisional, as relações antes e depois do encarceramento, e a política que permeia as instituições prisionais. Essa profusão de filmes sugere que o tema da prisão pode ser considerado um gênero cinematográfico por si só.

Esse gênero é marcado por uma diversidade de abordagens. Alguns filmes são realistas e documentais, enquanto outros são mais ficcionais e imaginativos. Alguns filmes se concentram nas experiências dos prisioneiros, enquanto outros se concentram nos funcionários da prisão ou nos sistemas prisionais.

Independentemente da abordagem, os filmes sobre prisões costumam explorar temas como a violência, a desigualdade social, a justiça e a liberdade. Eles podem ser usados para conscientizar o público sobre os problemas das prisões ou para simplesmente entreter e provocar reflexão.

Entre os filmes mais conhecidos do gênero, podemos destacar: Papillon (1973), de Franklin J. Schaffner, Alcatraz: fuga impossível (1979), de Don Siegel, O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, Um Sonho de Liberdade (1994), de Frank Darabont, Em Nome do Pai (1994), de Jim Sheridan, O Homem da Máscara de Ferro (1998), de Randall Wallace, À Espera de um Milagre (1999), de Frank Darabont, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000), dos Irmãos Cohen, entre outros.

No caso brasileiro, é uma questão moral que eu cite o inesquecível Carandiru (2003), de Héctor Babenco. Esses filmes são populares por sua ação, suspense, comédia e drama, mas também por sua capacidade de explorar temas complexos e controversos.

Aly Muritiba

Antes de mergulhar no universo da sétima arte, Aly Muritiba, trabalhou como agente penitenciário. Bom, é de conhecimento de todos que o ambiente carcerário é infame por sua brutalidade e associação com o submundo da criminalidade, mas foi exatamente nesse cenário que ele expandiu sua compreensão e, eventualmente, trilhou o caminho em direção ao mundo cinematográfico.

Ao perceber que poderia compensar suas horas de trabalho por meio de estudos, optou por se matricular em um curso de cinema, movido principalmente pela praticidade da situação.

A partir dessa experiência, determinou-se a transpor sua própria realidade para as telas, dando origem a uma trilogia centrada no sistema carcerário: A Fábrica, que chegou às semifinais do Oscar na categoria de curtas em 2013, seguido por Pátio, que foi exibido em Cannes no mesmo ano, e por último A Gente.

A trilogia

A Trilogia do Cárcere explora o sistema prisional brasileiro por meio de três perspectivas distintas: os familiares dos detentos, os próprios presos e os agentes penitenciários.

Deste modo, o curta-metragem A Fábrica (2011) inaugura a trilogia, abordando a delicada situação dos familiares de pessoas presas. A narrativa destaca o processo humilhante enfrentado pela mãe de um indivíduo encarcerado ao visitar seu filho, explorando a dificuldade de expressar afeto em meio à separação da sociedade.

Quanto ao segundo filme, o curta-metragem Pátio (2013), evidencia a esperança por uma vida após o cárcere que transcende as limitações das grades, ao retratar as conversas entre detentos no pátio de uma prisão.

No desfecho, o longa-metragem A Gente (2013) focaliza a rotina diária de um agente penitenciário. Envolvido em desafios burocráticos e interações interpessoais dentro da prisão, a obra explora os esforços desse profissional para fazer cumprir a lei em um ambiente que falta das condições mínimas necessárias para tal.

No artigo “Filmando Uma Instituição Total: A Trilogia Do Cárcere, de Aly Muritiba”, publicado na Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia, os pesquisadores Juliana Vinuto e Fabrício Basílio argumentam que, logicamente, a singularidade da trilogia de Aly Muritiba resulta de sua posição privilegiada como agente prisional.

Sua profissão e as redes às quais estava vinculado facilitaram a sua entrada e permanência na prisão, permitindo-lhe um acesso mais amplo e profundo à realidade prisional. Isso se reflete na fluidez e na habilidade evidenciadas nos seus filmes, que seriam difíceis de serem alcançadas por outro pesquisador ou cineasta que não tivesse a mesma posição social.

Ainda, a dupla de pesquisadores destaca que o fato de Aly Muritiba ser um agente penitenciário levanta questões pouco exploradas no cinema nacional, especialmente as relacionadas aos desafios enfrentados pelos profissionais que atuam no ambiente prisional.

Essa condição, sem dúvida, também teve influência no fato de o único longa-metragem da trilogia abordar especificamente a jornada de um agente penitenciário, sem abordar temas comuns em pesquisas empíricas, como tortura e maus-tratos realizados por profissionais atuantes em prisões.

Por fim, para os pesquisadores, mesmo diante dessa limitação, Muritiba não se restringe à sua posição no campo, permitindo que sua câmera explore também as experiências dos outros participantes do sistema prisional: os familiares e os próprios detentos, todos conectados pela perspectiva de um futuro pós-prisão.

A prisão e o cinema

Nas três obras, é possível abordar, por meio de diferentes ângulos, várias nuances da mesma questão: o tratamento degradante que o Estado dispensa àqueles que cumprem pena de privação de liberdade, assim como a seus familiares.

A interseção entre prisão e cinema oferece uma diversidade de perspectivas. Inúmeras obras cinematográficas retrataram a realidade carcerária, enquanto muitas outras exploraram formas diversas de confinamento, abordando aspectos sociais, geográficos, ideológicos e de classe.

Por esse ângulo, no cinema, a prisão é frequentemente retratada como uma metáfora para a condição humana. Ela pode representar o isolamento, a opressão ou a falta de liberdade. A trilogia de Aly Muritiba, por exemplo, explora essa ideia ao retratar personagens que estão presos em suas próprias vidas.

Sua tríade é poderosa pois estabelece um diálogo crucial com a sociedade brasileira. Não à toa, ela conquistou a crítica por sua linguagem acessível e universal, valendo-se de arquétipos para comunicar temas complexos a um público amplo.

Ao enfocar-se em histórias pessoais e cotidianas, cada filme da trilogia revela uma perspectiva única sobre a problemática da superlotação carcerária e das condições precárias em que os prisioneiros vivem.

A superlotação carcerária

Projeções indicam que o número de detentos no Brasil pode atingir quase 1,5 milhão em 2025, equivalente à população de cidades como Belém e Goiânia. Atualmente, o Brasil é o terceiro país do mundo com a maior população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Esse crescimento acelerado é resultado de uma combinação de fatores, incluindo a desigualdade social, a corrupção e a ineficiência do sistema judiciário. O Brasil é um país extremamente desigual, com uma grande população vivendo em pobreza e vulnerabilidade. Isso contribui para o aumento da criminalidade, que, por sua vez, leva ao aumento da população carcerária.

A corrupção também é um fator importante no crescimento da população carcerária brasileira. Muitos detentos estão presos por crimes que não cometeram, ou por crimes de menor gravidade que não justificariam a prisão. Isso ocorre devido à corrupção no sistema judiciário, que leva à condenação injusta de inocentes.

A ineficiência do sistema judiciário também contribui para o crescimento da população carcerária. O sistema judiciário brasileiro é lento e burocrático, o que leva a um aumento do tempo que os detentos passam presos antes de serem julgados. Isso também contribui para a superlotação das prisões.

O crescimento da população carcerária brasileira é um problema sério que tem um impacto negativo na sociedade. As prisões superlotadas são perigosas para os detentos, os funcionários e a comunidade. Elas também são ineficientes e caras.

O Brasil precisa tomar medidas urgentes para enfrentar o crescimento da população carcerária. Essas medidas devem incluir: Investir em programas sociais para reduzir a desigualdade social e a pobreza; reformar o sistema judiciário para reduzir a corrupção e a ineficiência e investir em programas de reabilitação para ajudar os detentos a reintegrarem-se à sociedade.

Por conseguinte, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, o déficit de vagas no sistema carcerário brasileiro aumentou nos primeiros seis meses desse ano, mesmo com a criação de 6.332 novas vagas no período. Em junho de 2019, havia pouco mais de 461.000 vagas disponíveis para abrigar quase 800.000 detentos, considerando diferentes regimes de cumprimento de pena e inclusão de acusados sujeitos a medidas de segurança.

Esses números, corroborados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciam o crescimento acelerado da população prisional brasileira, com um aumento anual de 8,3%, conforme diagnosticado pelo Depen.

Ainda, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, houve um aumento de 8,15% no número total de pessoas privadas de liberdade de 2020 para 2021, passando de 758,8 mil para 820,7 mil. Simultaneamente, o número de vagas no sistema prisional cresceu cerca de 24%, com a adição de aproximadamente 123 mil novas vagas. Como resultado, o déficit de vagas reduziu-se em cerca de 24,9%.

A visão de Aly Muritiba

Além dos fatos e números acima, na visão de Aly Muritiba, o principal problema nas penitenciárias é a falta de padronização de procedimentos. Embora muitos dos desafios do sistema penitenciário sejam semelhantes, a situação não é uniforme em todo o país. Pelo contrário, varia não apenas entre estados, mas também entre presídios.

Ele acredita que a ausência de um padrão que oriente o atendimento, o comportamento e assegure instalações dignas para os presos é o grande responsável pelo caos. Em algumas unidades federativas, o chefe de setor é um funcionário de carreira, enquanto em outros casos, é um cargo político, o que, segundo ele, leva à perda de controle, conforme comentou em entrevista ao portal UOL em 2014.

Na ocasião, Aly Muritiba também propôs uma solução para o cenário atual, afirmando que o encarceramento não é viável como meio de reintegrar ou reeducar os presos. Em sua visão, boa parte dos presos nunca foi verdadeiramente integrada à sociedade, tornando a ideia de reinserção uma falácia. Como ilustração, ele citou o Paraná, um estado considerado rico, onde os presídios estão abarrotados de indivíduos pobres e negros, socialmente desfavorecidos, que não tiveram acesso à educação.

Para ele, os números evidenciam a gravidade do problema da superlotação carcerária. No entanto, apenas 10% dos crimes cometidos são resolvidos e resultam em prisão. Muritiba avaliou que existe um excesso de detenções por motivos banais, como pequenos furtos, o que leva indivíduos a enfrentarem longos períodos atrás das grades.

Nestas circunstâncias, a trilogia de Aly Muritiba não apenas aborda questões prementes e urgentes, mas também se configura como um instrumento para ampliar a compreensão pública e fomentar discussões críticas sobre o sistema prisional e suas implicações para a sociedade brasileira.

*Vanderlei Tenório é jornalista e professor/coordenador do Emancipa Itapira.

Referências


LIMA, J. V.; PACHECO DA SILVA, F. B. Filmando uma instituição total: A “Trilogia do Cárcere”, de Ali Muritiba. Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia, n. 43, 22 jan. 2019.

NASCIMENTO, S. Sistema carcerário brasileiro: a realidade das prisões no Brasil. Politize!, 2023. Disponível em https://www.politize.com.br/sistema-carcerario-brasileiro/


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