Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Uma nova fase da descolonização, não mais pelas armas, mas via objetos culturais, surge em filmes que falam sobre a repatriação de obras de arte
No cinema
Uma nova fase da descolonização, não mais pelas armas, mas via objetos culturais, surge em filmes que falam sobre a repatriação de obras de arte subtraídas pelos nazistas. A dama dourada focaliza o processo, afinal vitorioso, movido pela herdeira de Adele Bloch-Bauer, retratada por Gustav Klim, contra o Museu Belvedere, de Viena.
Esse é um caso individual de restituição de roubo. O panorama mais amplo, em sua generalidade, foi abordado pelos americanos em Caçadores de obras-primas, que se concentrou no fim da Segunda Guerra, quando os Aliados montaram uma operação de busca e resgate dos tesouros espoliados pelos nazistas.
Sabia-se que tinham desfalcado todos os países que ocuparam e que tinham arrecadado obras de arte aos milhões. Também gostavam de livros preciosos, manuscritos iluminados, jóias, moedas e medalhas, objetos de culto, e assim por diante. Não enjeitavam nada… Tudo isso iria para o Führermuseum, museu pessoal de Hitler, em sua cidade natal de Linz, na Áustria, que seria o maior museu do mundo, desbancando da primeira posição o Louvre.
Os Aliados criaram uma comissão com representantes de cada um dos países interessados: um francês, um inglês e assim por diante. Menos um russo, pois os russos vinham em direção contrária e se chegassem antes, se apossariam de tudo. O filme joga com isso, conferindo suspense à disputa sobre quem abocanharia primeiro o butim. O nome informal da comissão seria Monuments men, título original do filme.
Um elenco de estrelas atrai os espectadores: George Clooney (dublê de diretor), Matt Damon, Cate Blanchett, Bill Murray, Jean Dujardin, Hugh Bonneville, John Goodman – e muitos mais. O enredo, sintetizado numa busca só, concentra-se na “Madona e o Menino”, escultura de Michelangelo em mármore surrupiada à catedral de Bruges, na Bélgica.
A operação conseguiu encontrar e repatriar toneladas de peças enfurnadas nas galerias subterrâneas de minas de sal na Áustria.
Ganha um perfil encarnado por Cate Blanchett uma figura extraordinária, que é Rose Valland. Ela ficou a guerra inteira trabalhando no museu Jeu de Paume de Paris, centro de recolhimento e concentração dos saques nazistas, pacientemente documentando às escondidas tudo o que era roubado, além de por um sinalzinho na própria peça para reconhecimento futuro. Você pensa: a vida dela daria um romance…
Pois deu uma autobiografia, Le front de l`art, embora esteja mesmo pedindo um filme, com lugar garantido entre estes, tais as peripécias que conta. Ela acabou por se tornar uma especialista e seria convocada para trabalhar na Alemanha no pós-guerra, sempre cuidando das repatriações. E, anos mais tarde seria nomeada responsável suprema das coleções de arte da França.
Por seu lado, os russos nos enviam o filme Francofonia – O Louvre sob ocupação. Não é um filme qualquer, já que tem por diretor o grande Alexandre Sokurov (de Arca Russa ede Fausto) e foi premiado no Festival de Veneza. Pelo jeito, o diretor é obcecado por museus, pois Arca russa se passa dentro do Hermitage de São Petersburgo. Os russos trazem outro ponto de vista. Entram em cena os nomes, por aqui pouco conhecidos, de heróis civilizadores como Jacques Jaujard e o conde Metternich. Este último, oficial nazista, teria até, segundo o filme, recebido a Legião de Honra pelo empenho em proteger o patrimônio artístico francês, escondendo-o de seus próprios correligionários.
Em inserções ficcionais anacrônicas, aparece um divertido Napoleão megalomaníaco que tudo quer absorver e possuir, repetindo: “Sou eu!”. Até aponta a Mona Lisa, que o olha de soslaio com seu ar quase zombeteiro, e diz: “Sou eu!”. Por sua vez, Jacques Jaujard é o valente Diretor dos Museus da França que comandou o preparo e evacuação de quatro mil caixotes de obras de arte, retirando-as dos locais habituais onde estavam expostas e escondendo-as em castelos no interior do país. O filme avança valiosas reflexões sobre os laços entre arte e poder.
Demorou, mas ele acabaria ganhando um filme só para si mesmo, em 2015: Illustre et inconnu. Jacques Jaujard a sauvé le Louvre, que seria agraciado com o prêmio Emmy.
Despojos de papel
Ante a amplitude descomunal do roubo perpetrado pelos nazistas, entende-se melhor a rapinagem de papeis que os americanos fizeram (London Review of Books, 2.7.2020). Bibliotecários e scholars, acolitados por militares, varreram a Europa e levaram tudo o que de longe pudesse parecer documentação, sendo de primeiro interesse os próprios arquivos nazistas, que eram numerosos, e documentos de Estado.
A coleta – se o eufemismo for adequado, pois se tratava mais de saque e pilhagem, ilícitos e ilegais – feita pelos americanos já começara às vésperas da guerra, antecipando a destruição. Livros e periódicos eram comprados e mandados para os Estados Unidos em trens e navios abarrotados. O que não dava para comprar era copiado em microfilme, uma recente invenção.
Mas também, o que já era menos justificável e relevava do roubo puro e simples, gradualmente passaram a recolher patentes e tecnologia industrial, para beneficiar os negócios americanos em casa.
A operação no seu conjunto resultou de uma parceria entre a Biblioteca do Congresso e os serviços de espionagem. Se você nunca se perguntou, ante seu gigantismo, como é que esta veio a ser a maior biblioteca do mundo, especialista em materiais para assessorar os parlamentares, eis aí a resposta. A maior parte do material recolhido foi para lá. E, na embriaguez da vitória, os conquistadores passaram a assaltar as bibliotecas públicas e as universidades.
Isso foi no passado, mas no presente a questão continua fervendo. Agora os franceses fizeram mais um filme, intitulado Restituer l`art africain – Les fantômes de la colonisation, que traz um histórico das relações entre França e África, analisando as várias metamorfoses que assumiram conforme os tempos foram mudando. Assim, o documentário passa pela Partilha da África, pela guerra colonial, pela ocupação do Daomé (atual Benin) e países circunvizinhos como Mali, Senegal, Nigéria, Congo.
Depois, examina as exposições coloniais e a criação de instituições como o Musée de l`Homme no Trocadéro, quando surge o interesse pela Etnografia. Esse museu atraiu os pintores modernistas que lá iam contemplar as esculturas africanas e valorizaram esteticamente o que antes era visto pelo prisma do exotismo.
Outra fase começa após o fim da Segunda Guerra, com a liberação das colônias e o pan-africanismo. É então que o deus Gu é “promovido” do Trocadéro para o Louvre, ao ser reconhecido como obra-de-arte. Escultura de metal em tamanho natural, parte dos famosos Bronzes do Benin, representa o deus da metalurgia e da guerra. Embora se saiba que residia no palácio real em Abomei, sua etiqueta no Louvre é muda a respeito de proveniência e condições de expropriação… para abusarmos de mais um eufemismo.
O documentário fala longamente da notável iniciativa do Musée de l`Homme que foi a expedição à África para coletar artefatos e estudar as populações, com duração de dois anos a partir de 1931. Atribui todo o mérito a Michel Leiris, futuro autor de L`Afrique fantôme, e nem sequer menciona o nome do chefe da expedição, da qual ele era secretário. O chefe era Michel Griaule, distinto etnólogo que estava em meio à constituição de uma notável folha de serviços, vindo a ser o maior especialista nos dogon do Mali, assim como futuramente na Etiópia.
Michel Griaule fez carreira como professor de Etnologia na Sorbonne. A expedição se chamava Travessia Leste-Oeste ou Missão Dakar–Djibouti. Ao fim, chegaram a desconfiar de seus próprios métodos, pois acabavam por copiar os colonialistas, intimidando os nativos, profanando objetos sagrados de culto e confiscando estátuas de deuses.
No momento, a África está providenciando abrigo para a repatriação das 90 mil peças que a França levou ao longo da História. Já estão funcionando três novos museus de artes africanas em Dakar, Joanesburgo e Gizé – todos moderníssimos, na arquitetura e na museologia. O palácio do rei Beanzim na capital do Daomé, Abomei, arrasado pelo invasor francês, foi reconstruído e aguarda o retorno de seus conteúdos, entre eles o deus Gu. Em tempo: os recentes conflitos armados não são alheios à exploração pela França das riquezas da região.
*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]
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