Por LUCYANE DE MORAES*
Israel declarou guerra à Palestina há 75 anos e desde então a mesma continua, até, quem sabe, concluir-se a lição aprendida – e agora melhor ensinada – nas aulas de “solução final”
Nessas poucas linhas não se pretende tencionar, mas sim refletir. Estamos convivendo com uma realidade trágica na qual a mediação, o debate e o diálogo se fazem mais do que necessários. Não há lugar para defender a violência como método. Toda guerra é vil. Toda guerra é torpe. Toda guerra é árdua. Principalmente aquelas travadas por procuração, sempre justificadas pelo injustificável.
Para alguns eu não teria lugar de fala: não tenho procedência judaica nem parentesco com vítimas do Holocausto. Não sou cidadã europeia tampouco oriunda do Médio Oriente. Ainda assim é preciso declarar apoio à causa palestina e dizer o óbvio: o que tem feito Israel ao longo de décadas em Gaza é extermínio em massa. Justifica isso a própria demonstração de solidariedade de israelenses e judeus, até mesmo de rabinos hassídicos, em várias partes do mundo, contrários ao massacre israelense, em favor da população palestina. Tudo isso, mediante apelo à racionalidade. A uma racionalidade que muitas vezes escapa ao humano.
Testemunha-se em todo o mundo a defesa das mídias corporativas em favor das vítimas da ação do Hamas (grupo fundamentalista surgido na Primeira Intifada), sem, no entanto, muita demonstração de empatia às vítimas da agressiva e descomedida ofensiva militar do exército de Israel, sob o argumento de que o Estado tem direito à defesa. Não se constata na atuação das mídias interessadas a devida relevância dada ao contraditório de vozes, nem ao menos declarações, ainda que tímidas, de condenação aos intensos bombardeios de Israel. Tampouco se vê nas mídias comprometidas qualquer compromisso com as crescentes mobilizações a favor dos palestinos ao redor do mundo. Há aqui, certamente, uma generalizada inversão de valores.
Em 75 anos de ocupação, nada existe na Palestina que não esteja sob o jugo do Estado de Israel. Nenhuma condição digna, nenhuma liberdade de locomoção, nem mesmo alguma possibilidade de existência é permitida aos palestinos. Não parece desnecessário afirmar a obviedade de que este povo, como qualquer outro, tem direito à autodeterminação.
Sob a imposição de forças hegemônicas, as mídias dependentes criam seus próprios fatos, inventam outros modos de narrativa e nomeiam, com total independência, opositores sob a alcunha de terroristas. A despeito das enormes diferenças, desvia-se sem qualquer reserva não somente a opinião pública, mas, principalmente, a do público, sob a égide da indiferença. Se o que se entende por terrorismo é o ato indiscriminado de provocar temor e pânico por meio do uso da violência, como ignorar as bases hostis que alicerçaram a criação do Estado de Israel, marcada pela ocupação e destruição de centenas de aldeias e vilas palestinas, sempre em nome do inominável?
Falar sobre terrorismo não significaria, igualmente, nomear sem reservas as ações impetradas pelas forças israelenses? Sob uma determinação imposta como verdade, entende-se hoje por terrorista todo indivíduo ou grupo que contesta o hegêmona e seu establishment. Não por outra razão, somos levados a reproduzir e a interiorizar, muitas vezes inadvertidamente, o discurso verticalizado atribuído à supremacia de valores identificados como verdade.
Os palestinos, desde há muito subjugados, esperam pacientemente por uma resolução, na busca sem resposta pelo direito de posse à terra, prometida desde muito pela Liga das Nações. Reivindicam o não apagamento histórico da Nakba de 1948, na qual mais de 700.000 mil árabes palestinos sofreram o efeito do êxodo, exemplo alegórico de outra ocorrência 3.000 anos distante. Como (in)consequência, de acordo com a Organização das Nações Unidas os descendentes de palestinos refugiados somam atualmente um número superior a quatro milhões de pessoas.
No último dia 31 de outubro Israel comunicou o ataque a Jabalia, o maior dos oito campos em Gaza que abriga por volta de 116 mil descendentes refugiados, matando 50 pessoas e ferindo outras centenas – ação essa justificada pela morte de apenas um guerrilheiro do Hamas –, sendo esse mais um exemplo alegórico de crime conscientemente impetrado contra a população civil. Sem causar espanto, em menos de 24 horas esse mesmo campo, não coincidentemente, foi novamente bombardeado por Israel, ação igualmente exemplar de muitas das ocorrências perpetradas sempre em nome do Senhor das guerras.
Se a justificativa for uma ‘reparação’ da Shoá, ocorrida durante a Segunda Grande Guerra, não parece irônico que esse mesmo povo, brutalizado pelo Holocausto e tendo sofrido severas tentativas de erradicação, reproduza no mesmo grau e medida os mais violentos atos de opressão colonial, sob o método do extermínio em massa? “Olho por olho, dente por dente”. Vingança, ressentimento, retaliação? Assim se dão as bases para a permanência do eterno retorno, do sempre-o-mesmo da repetição histórica. A opressão gerada pelo antes-oprimido.
Em sentido alusivo, não é fora de propósito pensar que Hegel, indiretamente, mencionou algo assemelhado ao referir-se à dialética do senhor e do escravo, naquilo que o primeiro, visto como “para-si”, determina o segundo como coisa, ou seja, enquanto um “ser-para-o-outro”, a partir da relação “sujeito-objeto”. Por sua vez, Freud, mediante aquilo que a psicanálise entende como ‘identificação com o rival’, vislumbrou os riscos de o povo judeu vir a reproduzir com outros povos o mesmo que vinha sofrendo, numa espécie de inversão dos polos de sua fantasia. Ou seja, de vir a expressar desejo de aniquilação com o próprio objeto de identificação.
Hoje, curiosamente, a Alemanha justifica a ideia de reparação histórica, como meio justo de correção do passado, retórica essa que não mais parece convencer. Não se trata de questão moral, como se quer, por outro lado, fazer crer. E se assim fosse, que espécie de moral às avessas se estaria defendendo? Desnecessário, tampouco, afirmar não ser esta uma guerra religiosa justificada pela volta de um Salvador que clama por uma terra purificada de infiéis. O que está em jogo, todos sabem, são interesses geopolíticos os mais diversos, reclamados principalmente pelos proprietários do mundo, representantes do Ocidente coletivo.
Hoje, não se ignora mais o fato de que o Estado de Israel, para além disto, é uma base militar, um depósito de armas dos EUA, que pagam tributos eternos àquele pelo empenho nos serviços prestados de manutenção a uma região de importância política e econômica fulcral. É em nome de tais interesses que Israel enseja remanejar 2,2 milhões de palestinos de Gaza para o Sinai, num esforço de deslocamento à força daquela população. Igualmente desnecessário será lembrar que migrações forçadas são consideradas como um tipo de limpeza étnica, condenadas pela resolução 1674 do Conselho de Segurança da ONU.
Se for certa a ideia de não mais haver fontes confiáveis que afiance a verdade de tais ocorrências, reitera isso o fato de a ninguém parecer mais interessar quais versões são contadas e quais ações comprometidas às mídias teimam em impetrar, contradizendo a consciência alheia e a própria história. A adesão fácil às variantes discursivas da indústria da informação generaliza a condescendência e gera identificação com interesses que, não sendo das maiorias, representam aqueles do poder hegemônico, sempre voltados para a neutralização do Outro.
Israel declarou guerra à Palestina há 75 anos e desde então a mesma continua em curso, até, quem sabe, concluir-se a lição aprendida – e agora melhor ensinada – nas aulas de ‘solução final’. Como segunda natureza, a violência na Palestina foi aceita e normalizada. O que ocorre hoje, sobretudo na Faixa de Gaza, é apenas parte das brutalidades há muito apreendidas. Então, essa guerra não é algo de agora como quer fazer parecer Benjamin Netanyahu que – sob o pretexto da destruição do Hamas – discursou sobre a sua emergência para tropas de jovens soldados israelenses: “É matar ou morrer”.
Supor que o governo de Israel nada sabia previamente sobre os contra-ataques realizados pelas forças do Hamas significa compactuar com ele, justificando os massacres. O governo sionista e seu líder de extrema direita degeneram o conceito de história, tirando-a de seu contexto. É a luta do bem contra o mal, como exercício de má-fé proferido por seus aclamados senhores. Isenção de conhecimento por parte da população? Reafirma-se, com isso, a contínua negação do direito histórico à terra e do extermínio étnico consequente.
Se for verdade que o sucesso de uma guerra é medido pelo número de mortes de civis, então as ultimadas ações de Israel já ocupam lugar de destaque no panteão das Escrituras. E se a história, de fato, é sempre contada do ponto de vista dos vencedores, será igualmente verdade que os palestinos, marcados pelo infortúnio, são o povo escolhido para o extermínio. Morte não é efeito colateral. É causa principal!
Para além do imperativo repúdio a toda e qualquer razão de guerra, essa em particular é a mais insana de todas as demais, por seu qualificado esmero racional. Reputa isso, entre outros, os diferentes interesses privados envolvidos, mais do que nunca indiferentes à sobrevivência humana. Até de jovens, até de crianças. Com o persistir da violência, mina-se a esperança dos desesperançados.
Se for utópico pensar na criação de um Estado multinacional, é ao menos urgente reivindicar a aplicação das resoluções da ONU que garantem a criação do Estado Palestino, antes que o primeiro genocídio étnico televisionado da história assuma também uma característica espetacular de segunda natureza.
*Lucyane de Moraes é doutora em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin: em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil). [https://amzn.to/47a2xx7]
Postado originalmente na Revista InComunidade.
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