Por SIMPLICIUS THE THINKER*
Os neoconservadores admitem que uma Rússia vitoriosa será a força mais formidável desde o fim da Guerra Fria
Como muitos sabem, o ISW (Institute for the Study of the War – Instituto para o Estudo da Guerra) é uma corporação neoconservadora baseada em Washington e dirigida por Kimberly Kagan, cunhada do neoconservador Robert Kagan (fundador e diretor tanto do PNAC – Projeto para o Novo Século Americano – quanto do seu sucessor, a Foreign Policy Initiative). Este, por sua vez, é marido da subsecretária de Estado, a neoconservadora Victoria Nuland.
[Em 14 e 22 de dezembro, o Institute for the Study of the War tornou público um relatório, em duas partes, intitulado “O alto preço de se perder a Ucrânia”. A primeira parte é assinada, entre outros, pelo irmão de Robert, Frederick W. Kagan, e a segunda parte é assinada por Nataliya Bugayova, analista de inteligência ucraniana, que trabalha tanto para o Institute for the Study of the War quanto para a fundação neoconservadora Hertog. Os materiais encontram-se disponíveis para download em PDF].
Esse relatório é particularmente significativo, pois sinaliza e sublinha, de fato, as reais intenções da gangue da Beltway e dos capangas do Estado Profundo, dando-nos uma visão rara dos espectros que assombram as suas mentes, além das suas ramificações nas perspectivas estratégicas de longo prazo para o conflito na Ucrânia, especialmente se a Rússia o vencer, que é o “grande perigo” em torno do qual o relatório dá voltas.
O relatório começa, sem mais rodeios, com uma grande série de confissões: “Os Estados Unidos têm um interesse muito maior na guerra da Rússia contra a Ucrânia do que a maioria das pessoas pensa. A conquista russa de toda a Ucrânia não será de forma alguma impossível se os Estados Unidos cortarem toda a assistência militar e a Europa seguir esse exemplo. Tal resultado traria um exército russo, alquebrado mas triunfante, até as fronteiras da OTAN, desde o Mar Negro até o Oceano Ártico”.
Mais uma vez, para além do brilho gestual das manchetes da mídia comercial, que têm de promover um viés narrativo altamente sedutor para a plebe – onde a Rússia arrancaria, na melhor das hipóteses, um “congelamento das posições” – vemos aqui os verdadeiros propulsores e agitadores de dentro do maquinário do Complexo Industrial-Militar antevendo a conquista de toda a Ucrânia pela Rússia, se a assistência militar ocidental for interrompida.
Eles continuam com golpes ainda mais pesados: “Um exército russo vitorioso no final desta guerra terá experiência em combate e será consideravelmente maior do que as forças terrestres russas anteriores a 2022. A economia russa se recuperará gradualmente, à medida que as sanções inevitavelmente se desgastem e Moscou desenvolva formas de contornar ou mitigar as que permanecerem. Com o tempo, substituirá o seu equipamento e reconstruirá a sua coerência, aproveitando uma riqueza de experiência duramente conquistada no combate de uma guerra mecanizada. Trará consigo sistemas avançados de defesa aérea que apenas as aeronaves furtivas americanas – extremamente necessárias para dissuadir e confrontar a China – podem penetrar de forma confiável. A Rússia pode representar uma grande ameaça militar convencional para a OTAN pela primeira vez desde a década de 1990, num prazo determinado, em grande medida, pelo quanto o Kremlin se dispuser a investir nas suas forças armadas. Dado que Moscou já se comprometeu com um ambicioso programa de expansão militar pós-guerra, os Estados Unidos não podem ficar confiados de que esse prazo seja muito longo”.
Em suma, os neoconservadores admitem que uma Rússia vitoriosa será a força mais formidável desde o fim da Guerra Fria. Mas aqui está o motivo pelo qual esse espectro os aterroriza tanto: “Para dissuadir e defender-se contra uma nova ameaça russa após sua vitória total na Ucrânia, os Estados Unidos terão que enviar para a Europa do Leste uma parte considerável das suas forças terrestres. Os Estados Unidos terão de estacionar na Europa um grande número de aeronaves furtivas. Construir e manter essas aeronaves é intrinsecamente caro, e os desafios para a sua rápida fabricação provavelmente forçarão os Estados Unidos a fazer uma escolha terrível entre manter o suficiente na Ásia, para defender Taiwan e seus outros aliados asiáticos, e dissuadir ou derrotar um ataque russo a um aliado da OTAN. Todo o empreendimento custará uma fortuna, e o custo durará enquanto a ameaça russa continuar – potencialmente, de modo indefinido”.
Eis o nó da questão. Existem certas alavancas de segurança que devem ser acionadas automaticamente quando seu oponente faz um movimento. Não se trata de que um político, como um presidente, por exemplo, possa fazer uma escolha momentânea, tomar uma “decisão”. Não! Isso está inscrito na doutrina de defesa com a mesma certeza que o código de uma linguagem de programação. Se uma quantidade X de forças se mover e ameaçar alguém, esse alguém não terá escolha senão organizar uma quantidade Y de suas próprias forças preventivas.
É por isso que a Rússia não teve escolha senão organizar imediatamente um enorme exército de 500 mil novos militares nas vésperas da adesão da Finlândia e da Suécia à OTAN este ano, com a reativação dos Distritos Militares de Moscou e Leningrado, que haviam sido descontinuados há muito tempo. É simplesmente impensável que uma nação tenha exércitos hostis diretamente nas suas fronteiras, sem nada para os neutralizar.
Da mesma forma, aqui, o Complexo Industrial Militar norte-americano desfrutou do luxo de ter vários procuradores que mantinham as forças militares russas coagidas e atarefadas, para que os Estados Unidos pudessem desviar suas forças para outros lugares, a fim de manter a sua hegemonia em todo o mundo. Mas agora, uma vitória total e decisiva da Rússia na Ucrânia poderá desfazer tudo isso e, nas palavras dos próprios neocons, exigiria que os Estados Unidos estacionassem “uma parte considerável das suas forças terrestres” na Europa Oriental.
Isto significaria uma tremenda dor de cabeça para os planos americanos, particularmente com relação à China, considerando que esses planejadores registram em seguida que teriam de produzir e estacionar grandes quantidades de aeronaves furtivas na Europa, o que frustraria seus projetos em Taiwan. Em suma, argumentam que uma vitória russa levaria o Complexo Industrial Militar a um impasse, exigindo um novo nível, insustentável, de escalada militar.
Qualquer outro resultado seria melhor que esse, escrevem eles: “Praticamente, qualquer outro resultado da guerra na Ucrânia é preferível a este. Ajudar a Ucrânia a manter as linhas onde estão, através do apoio militar ocidental contínuo, é muito mais vantajoso e mais barato para os Estados Unidos do que permitir que a Ucrânia perca. ‘Congelar’ o conflito é pior do que continuar a ajudar a Ucrânia na luta: isso apenas daria à Rússia tempo e espaço para se preparar para uma nova guerra, para conquistar a Ucrânia e confrontar a OTAN”.
Estas palavras não teriam tanto peso se não fossem emitidas pelas mandíbulas da própria besta: a mais poderosa “elite das sombras” neoconservadora do Estado Profundo, que tem orientado o Complexo Industrial Militar dos Estados Unidos há décadas e que, portanto, fala em seu próprio nome. Lendo com atenção, percebe-se uma urgência quase desesperada em seu tom; o que, por si só, já é extremamente revelador.
Eles seguem adiante, mapeando os cenários potenciais de como outra guerra poderia acontecer. Antes de 2022, a Rússia “não representava nenhuma ameaça” a qualquer Estado da OTAN que não fossem os bálticos, já que a Rússia, segundo eles, apenas “dispunha de uma divisão aerotransportada e uma brigada de infantaria mecanizada perto das fronteiras da Estônia e da Letônia e o equivalente a uma divisão no enclave de Kaliningrado. (…) Nenhuma tropa russa ameaçava a Eslováquia, a Hungria ou a Romênia”.
Além disso, afirmam que as redes russas de defesa aérea tinham grandes lacunas no sul da Polônia, Eslováquia, Romênia, Hungria etc, porque a Rússia não tinha como colocar sistemas de defesa aérea na Ucrânia.
O que é notável até agora é quão pouca consideração é dada aos interesses de segurança nacional de qualquer outro país que não os Estados Unidos. Há um tom existencial quando se trata de discutir quaisquer ativos russos que possam, mesmo remotamente, representar algum tipo de ameaça ou pressionarem algum ponto do território da OTAN. No entanto, o fato de a OTAN poder rumar despreocupadamente para o leste e colocar exércitos inteiros às portas da Rússia é algo que sequer vem ao caso. Essa é a essência da “ordem baseada em regras”: as tais regras são para os outros; os Estados Unidos, esses podem dominar o mundo à rebarba de qualquer regra.
Na verdade, eles chegam a defender abertamente a coerção econômica sem reservas, o que, em qualquer outra linguagem, significa terrorismo aberto ou interferência política num país: “É uma prioridade passar da imposição passiva de sanções para a sua aplicação proativa e agressiva, combinada com o uso da coerção econômica, para restringir o comércio com a Rússia”.
Note-se que a coerção a que se referem é voltada contra os seus próprios aliados. A Rússia já se encontra coagida, portanto, não é dela que se trata. O que pretendem é ampliar a coerção aos aliados intransigentes da União Europeia/OTAN ou a qualquer outro país associado, para reprimir qualquer eventual evasor ou desafiador do regime de sanções à Rússia.
Agora que já prepararam o terreno para alarmar o seu público, passam para a parte final: mostrar o que aconteceria se a Rússia ocupasse totalmente a Ucrânia após uma vitória decisiva.
Primeiro, repetem sombriamente o aviso, para martelar a seriedade da ameaça: “O súbito colapso da ajuda ocidental provavelmente levaria, mais cedo ou mais tarde, ao colapso da capacidade da Ucrânia de conter as forças russas. Elas poderiam avançar até à fronteira ocidental da Ucrânia em tal cenário e estabelecer ali novas bases militares, nas fronteiras da Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia. Os russos estão preparando forças militares de ocupação para lidar com a quase inevitável insurgência ucraniana, enquanto deixam as tropas da linha da frente livres para ameaçar a OTAN”.
Mais uma vez é de se salientar – porque é da maior importância – a gigantesca disparidade entre o que se pode noticiar para consumo de massa e o que é realmente discutido pelos verdadeiros planejadores e estrategistas de guerra. Mais uma vez, pode-se constatar a inteiramente sincera admissão de que, se a ajuda ocidental for cortada, a Rússia não só vencerá, como avançará até a fronteira ocidental da Ucrânia. É de se comparar uma admissão tão surpreendente como essa com aquilo que é permitido dizer no discurso superficial, onde ainda é proibido insinuar que a Rússia possa “romper o impasse”, mesmo a nível local, avançando, quem sabe, até as margens do Dnieper, ou algo um pouco além.
“Os russos expandiram a estrutura do seu exército para lutar nesta guerra, e já indicaram a intenção de mantê-la após ela. Eles poderiam facilmente estacionar três exércitos completos (o 18º Exército de Armas Combinadas, o 25º Exército de Armas Combinadas, recém-criado para esta guerra, e o 8º Exército de Armas Combinadas de Guardas) nas fronteiras da Polônia, Hungria, Eslováquia e Romênia”.
Opa! Quer dizer então que o pobre exército russo, alquebrado, espancado e batido, a que antes se referiam – e que, conforme a narrativa da mídia comercial do Ocidente chegou a ter 95% de baixas –, de repente é capaz de reunir três exércitos de campo completos, apenas para a tarefa de guardar as fronteiras polacas?! Esse é todo um mundo de diferença com relação ao que se permite ao consumo público de informação.
A rigor, é absolutamente estonteante o que afirmam agora que a Rússia vai ser capaz de reunir, ao longo de toda a frente com a OTAN: “(…) uma força total de cerca de 6 divisões mecanizadas (18 brigadas) na Ucrânia. Poderiam mover divisões que estavam estacionadas nas fronteiras orientais da Ucrânia para a própria Ucrânia, como reservas para as divisões da linha da frente. O Kremlin fez grandes progressos no seu projeto de longo prazo de garantir o controle das forças armadas bielorrussas. E a vitória na Ucrânia provavelmente vai fazer o resto do trabalho. Os russos provavelmente mobilizariam, de forma permanente ou nominalmente rotativa, uma divisão aerotransportada (três brigadas) e uma divisão de infantaria mecanizada (provavelmente três brigadas) também no sudoeste e no norte da Bielorrússia. Eles seriam capazes de lançar uma ofensiva mecanizada relâmpago contra um ou vários estados da OTAN com pelo menos 8 divisões (21 brigadas mecanizadas ou de carros de combate e três brigadas aerotransportadas), apoiadas por reservas significativas, incluindo o 1º Exército Blindado de Guardas, que seria reconstituído em torno de Moscou, e que sempre foi pensado na intenção de ser a principal força de ataque contra a OTAN. Eles poderiam realizar tal ataque e ainda ameaçar os Estados Bálticos e a Finlândia com as forças já presentes ali, acrescidas dos reforços que anunciaram que vão estacionar ao longo das fronteiras finlandesas. As forças terrestres russas seriam cobertas por uma densa rede de defesa aérea de sistemas antiaéreos e antimísseis de longo alcance S-300, S-400 e S-500, de cobertura sobreposta em toda a frente”.[i]
De onde surgiram, repentinamente, essas dezenas de divisões? Pois bem, esse é o poder da propaganda. Isso apenas demonstra que praticamente tudo o que vemos na mídia são apenas grãos destinados ao moinho do consumo público, propaganda intencionalmente concebida e direcionada para subestimar as forças russas de todas as maneiras concebíveis – desde a sua quantidade até a sua qualidade, e tudo o que estiver entre elas.
Mas os verdadeiros planejadores, as eminências pardas dos bastidores, veem aquilo que o público não vê: acúmulos enormes e sem precedentes de forças russas, que não estão sendo desgastados de forma significativa na Ucrânia.
E, então, vem a próxima bomba: “A OTAN seria incapaz de se defender contra tal ataque, com as forças atualmente existentes na Europa. Os Estados Unidos precisariam deslocar um grande número de soldados americanos para toda a fronteira oriental da OTAN, do Báltico ao Mar Negro, para dissuadir o aventureirismo russo, e estar preparados para derrotar um ataque russo. Os Estados Unidos também precisariam dedicar permanentemente uma proporção significativa da sua frota de aeronaves furtivas à Europa. A estratégia de defesa da OTAN baseia-se na superioridade aérea, não apenas para proteger suas tropas de ataques inimigos, mas também para utilizar o poder aéreo para compensar as forças terrestres menores e os estoques limitados de artilharia da própria OTAN. Os Estados Unidos teriam de manter um grande número de aeronaves furtivas disponíveis na Europa para penetrar e destruir os sistemas russos de defesa aérea, e impedir que os russos restabeleçam uma defesa aérea eficaz, para que aeronaves não furtivas e mísseis de cruzeiro possam atingir os seus alvos. A exigência de enviar uma frota significativa de aeronaves furtivas para a Europa poderia degradar seriamente a capacidade norte-americana de responder de forma eficaz à agressão chinesa contra Taiwan, uma vez que todos os cenários de Taiwan dependem fortemente das mesmas aeronaves furtivas que seriam necessárias para defender a Europa”.
Então agora chegamos à verdade sobre por que as frotas furtivas (stealth) mencionadas anteriormente são tão necessárias. Note-se: eles admitem que a OTAN não tem forças terrestres reais de que se possa falar, nem qualquer artilharia que sobrou, depois de ter dado tudo à Ucrânia – não que, para começar, tivessem muito. A rigor, a OTAN não é muito mais que um frágil caça a jato de vidro, disfarçado de aliança militar.
Mas o problema é que eles admitem que as redes de defesa aérea russas são tão densas que a sua força aérea não será capaz de penetrá-las sem a ajuda de caças furtivos, que não só são bem poucos como também são extremamente necessários para a frente China-Taiwan.
Há tantas coisas a serem ditas sobre aeronaves furtivas que poderiam ocupar uma série inteira de artigos, quando menos um artigo ou mesmo alguns parágrafos. Mas uma coisa que se pode dizer aqui é que as aeronaves stealth se degradam muito rapidamente sem suporte e manutenção pesados, o que é impossível em conflitos de alta intensidade. Por exemplo, seus revestimentos de material absorvente de radiação (RAM: proteção antirradar) precisam ser reaplicados a cada poucas missões, o que exige muito tempo e mão de obra – algo que não estará de forma alguma à mão em um conflito real. Uma vez eliminados esses revestimentos, os aviões ficarão claramente visíveis aos radares, já que os próprios Estados Unidos admitem que o revestimento RAM é responsável por uma grande parte das capacidades “furtivas” das aeronaves de quinta e sexta gerações – particularmente o novo B21 Raider.
Isso significa que quanto mais tempo um conflito durar, menos furtivo e mais vulnerável ficará o único “ás na manga” disponível para os Estados Unidos. O que significa, mais uma vez, que a Rússia mantém a vantagem, e ficará progressivamente mais forte à medida que o conflito avançar ― tal como está acontecendo na Ucrânia.
E, seguindo adiante com a análise, as perspectivas só pioram: “O custo destas medidas defensivas seria astronômico, e viria provavelmente acompanhado por um período de risco muito elevado, quando as forças dos Estados Unidos não estivessem adequadamente preparadas ou posicionadas para lidar com a Rússia ou a China, e muito menos ambas juntas”.
Então os Estados Unidos não seriam capazes de lidar com um deles… muito menos com os dois?! As coisas ficam, de fato, extremamente desesperadoras quando se é forçado a tornar claras admissões desse feitio e magnitude.
Finalmente, eles avançam para o que seria o seu cenário de sonho: uma vitória total da Ucrânia, algo obviamente impossível e com zero probabilidade de acontecer – o que faz dele um cenário irrelevante, que dispensa uma cobertura em profundidade. Há nele, no entanto, um ponto relevante, afirmado abertamente: “Restabelecer o controle de Kiev sobre todo o território da Ucrânia, incluindo a Crimeia, é importante para os Estados Unidos e para a OTAN, bem como para a Ucrânia. A posse da Crimeia pela Rússia a torna a potência dominante no Mar Negro, e permite que aeronaves russas ameacem o flanco sudeste da OTAN, bem como implantem defesas aéreas de longo alcance na península. As posições na margem leste (esquerda) do Oblast de Kherson, que a Rússia controla atualmente, fornecem bases ainda mais a oeste da Crimeia. A OTAN terá de enfrentar estes desafios uma vez que a guerra terminar, se essas áreas permanecerem nas mãos da Rússia. Contudo, se a Ucrânia recuperar as suas fronteiras de 1991, a pressão sobre a OTAN diminuirá dramaticamente. As tropas russas mais próximas da Romênia estariam a quase 800 quilômetros de distância. O Mar Negro tornar-se-ia praticamente um lago da OTAN. Moscou provavelmente completaria o seu controle militar sobre a Bielorrússia e ali basearia as suas forças, mesmo neste cenário. A ameaça de tais bases para a OTAN, no entanto, assumiria um aspecto muito diferente num cenário em que a Bielorrússia é uma grande saliência diante das forças da OTAN por dois lados e com uma grande e poderosa Ucrânia independente ao longo de toda a sua fronteira sul. A tarefa de defender o nordeste da Polônia e os Estados Bálticos das tropas russas que operam a partir da Bielorrússia, de Kaliningrado e da própria Rússia é uma proposta muito mais palatável e menos dispendiosa do que defender toda a linha da OTAN desde o Mar Negro até ao Oceano Ártico”.
E aí está! Completo, nu e ao ar livre, o verdadeiro objetivo das mãos sujas da OTAN: finalmente revelado sem arte ou verniz: “O Mar Negro se tornaria praticamente um lago da OTAN”. Esse é o sonho não realizado de toda a vida, finalmente confirmado em público. Não há muito mais a dizer depois disto, porque essa admissão por si só valida cada passo que a Rússia deu nesse conflito até agora, e exonera totalmente a Rússia de qualquer delito internacional, pois prova, sem dúvida, que a OTAN sempre procurou nada mais do que cercar e estrangular a Rússia por todos os lados, roubando-lhe terras e riquezas.
No dia 22 de dezembro, a ISW divulgou a segunda parte da sua análise, que segue a mesma tendência da anterior. Não é preciso abordá-la com a mesma profundidade, sobretudo porque ela repete tediosamente os mesmos pontos, como se fosse apenas insistência, evidenciando ainda mais seu próprio desespero e urgência. No entanto, existem alguns pontos irresistíveis a serem observados.
Em primeiro lugar, contradizem novamente a narrativa pública em vigor, ao avaliar que o corte da ajuda não resultaria num mero “impasse”, como a CNN e vários outros meios gostariam tanto de fazer ver, mas sim que isso vai acabar com a capacidade da Ucrânia de conter a Rússia, levando a Rússia a simplesmente derrotá-los: “Uma derrota autoimposta na Ucrânia confrontará os Estados Unidos com o risco real de outra guerra na Europa, com maiores riscos de escalada e custos mais elevados. Cortar a ajuda à Ucrânia não vai congelar as linhas da frente, como já avaliou o ISW. Em vez disso, diminuirá a capacidade da Ucrânia de conter os militares russos e acelerará o ímpeto militar russo cada vez mais para oeste, porque o motor fundamental desta guerra – a intenção do Kremlin de erradicar a identidade e o estatuto de Estado da Ucrânia – não mudou”.
Assim, dissipa-se aqui outra narrativa popular no Ocidente: a que diz que a Rússia ficará “gravemente enfraquecida” após esta guerra, recolhendo os destroços espalhados de quaisquer territórios destruídos que conseguir anexar. Na verdade, a Rússia está ganhando imensamente mais do que perde: em novas populações e riqueza em terras e recursos.
A ISW concorda: “A absorção de partes da Ucrânia e da Bielorrússia aumentaria significativamente o poder da Rússia, acrescentando milhões de pessoas, incluindo mão-de-obra qualificada, ativos industriais que restarem e o território não arrasado, para que o Kremlin os utilize na reconstituição da força militar russa”.
Prosseguem então, mais uma vez, com uma nota de peso, implicando a própria existência da OTAN: “O futuro da OTAN está muito mais ligado ao futuro da Ucrânia do que a maioria das pessoas imagina”.
“O Kremlin iria se aproximar de uma oportunidade real de quebrar a OTAN. Putin procurou usar a invasão da Ucrânia para quebrá-la – um objetivo no qual falhou, mas que continua a perseguir. Uma das principais ameaças russas à OTAN é o risco de o Kremlin manipulá-la para repudiar os seus princípios. A OTAN ficará desacreditada se a Rússia mantiver os seus ganhos na Ucrânia, pois as suas garantias de defesa serão minadas. O Artigo 5 da OTAN – o compromisso de autodefesa mútua – não é um escudo mágico. Sua legitimidade reside, em parte, na decisão persistente dos Estados Unidos de se comprometerem com os seus parceiros. Os líderes americanos devem se lembrar, como certamente fazem os russos, que qualquer Estado da OTAN sob ataque pode invocar o Artigo 5, que afirma que, no caso de um ataque armado a um Estado-Membro, cada outro Estado-Membro tomará ‘imediata e individualmente, em acordo com as outras partes, as medidas que considerar necessárias’. O Artigo 5.º não obriga automática e legalmente todos os membros da OTAN a utilizar a força militar para defender um outro membro sob ataque. Cada Estado da OTAN terá de decidir como agir”.
Não só sugere-se aqui que a OTAN poderia trincar por inteiro, mas o que se diz também valida – para aqueles que eventualmente precisassem ouvi-lo de uma fonte mais “abalizada” – o que Scott Ritter e eu temos insistido há bastante tempo: que o Artigo 5º não significa nada. Sem a efetiva vontade de agir, ele não obriga legalmente os países da Aliança a fazerem muita coisa, especialmente em defesa de algum país cujos únicos laços com a OTAN possam ser bastante artificiais, e com quem eles não cheguem a se importar muito.
A seguir, faz-se outra admissão bastante surpreendente e até contraintuitiva: que a maior força da Rússia é, na verdade, o seu domínio na esfera da informação. Quem teria pensado nisso? Os influenciadores da mídia dizem-nos exatamente o oposto: que a Rússia seria “motivo de chacota singular” no cenário mundial, e que as suas campanhas de propaganda desmoronam como uma comédia ruim no palco de um inferninho de quinta.
Mas, mais uma vez, sob a superfície, uma melodia diferente está sendo entoada no documento do ISW, e os verdadeiros agitadores parecem estar sendo sobrepujados e intimidados pela força das realizações informativas da Rússia na Guerra de Quinta Geração (5GW): “Esse cenário [da vitória russa na Ucrânia] significaria necessariamente que uma das poucas capacidades russas que representa uma ameaça real para os Estados Unidos – a guerra baseada na informação – teve um grande impulso. A guerra russa baseada na informação e o controle reflexivo, especificamente, têm estado entre as capacidades russas mais fortes e um elemento central da estratégia da Rússia contra os Estados Unidos durante anos.[ii] O controle reflexivo é a forma como a Rússia luta, e é uma das maneiras efetivas pelas quais a Rússia representa uma ameaça para os Estados Unidos, para além do seu arsenal nuclear. A verdadeira esfera da Rússia é o seu espaço de informação global –comunidades penetradas pelas narrativas russas, inclusive nos Estados Unidos. Se a Rússia vencer na Ucrânia, isso significará provavelmente que a Rússia conseguiu mudar a percepção que os Estados Unidos têm de si mesmos, dos seus interesses e dos riscos e custos em que estão dispostos a incorrer, e com que finalidade”.
Mas aqui eles desistem da trama, indo ao cerne da questão. E descrevem o que, na sua opinião, é a ameaça mais grave de todas: que a Rússia possa, sozinha, mudar a percepção que os Estados Unidos têm de si mesmos, ou melhor, mudar a própria ideia do que os Estados Unidos são: “Alterar a vontade norte-americana não é pouca coisa. Os Estados Unidos são uma ideia. Os Estados Unidos são uma escolha. Os Estados Unidos acreditam no valor da ação. A resiliência interna e o poder global americano advêm, em grande medida, das pessoas e dos países que escolhem os Estados Unidos, e dos americanos que preservam a sua agentividade para atuar em nome dos seus interesses. Um adversário que aprende a alterar essas realidades é uma ameaça existencial, especialmente quando as ideias são a principal arma desse adversário”.
Agora chegamos à metafísica de tudo. Nota-se: a ovelha foi tosquiada, expondo sua bunda para que todos vejam, mas somente os mais perspicazes podem colher os profundos segredos esotéricos por ela revelados.
O que o ISW acabou de delinear vai além dos limites de quaisquer questões materiais insignificantes da guerra e de todas as coisas corpóreas. Na verdade, ele desvelou a própria essência ontológica da hegemonia global do Império, e isso é algo que foi coincidentemente evocado há pouco no blog de Andrei Martyanov.
Seu artigo em si é instigante e bastante bom, mas é o comentário principal a ele que alcança o cerne das coisas como um cântico:“Existe a América como mito e os Estados Unidos como país. (…) A América, o mito, flutuou sobre tudo isso [a história das imposturas e iniquidades norte-americanas]. Foi um catecismo disseminado pela religião americana, mas está se tornando cada vez mais difícil de tragá-lo. Estamos nos tornando ateus americanos, e quando as pessoas param de acreditar nos seus próprios mitos, eles perecem”.
Confrontemos essa observação com a exegese do ISW. Eis aí! O poder americano está encarnado em nada mais do que um mito de supremacia e privilégio, ele próprio envolto pelas mais variadas evasivas eufemísticas e desorientações etéreas, como a tal da “ordem baseada em regras”.
O que os neoconservadores revelaram aqui é a chave-mestra de tudo: a Rússia está prestes a despedaçar o Mito ou, antes, a Grande Mentira, que encarna não alguma verdadeira América que um dia possa ter existido, mas a sublimada distorção neoconservadora dela: o que ela se tornou, o gigante deformado, o Leviatã beócio que flagela o mundo inteiro com sua cauda cheia de esporas e seu hálito nocivo.
Esses fanáticos, que cooptaram o país e a sua política externa, transformaram de fato a América em nada mais do que um Golem cambaleante, desnudo como o seu imperador sombrio. Agora, nada mais temem, senão que a Rússia destrua essa “ideia” fora de lugar, esse “sonho” fraudulento e cheio de cracas, que subsiste apenas nas mentes sanguinárias dos seus usurpadores neocons, porque coisa assim destruiria a ilusão de uma vez por todas, libertando não só o planeta das garras desse Leviatã, como também destruindo as anquilosadas obsessões neoconservadoras.
Observe-se o uso idiomático muito peculiar de “alterar essas realidades”. Note-se: “alterar” a realidade substitutiva imposta pelos neoconservadores corresponde a destruir a besta de uma vez por todas, amputar o crescimento canceroso infligido, que estrangula o coração do que outrora possa ter sido a “América”. Isso é o que eles temem, e eles traduziram isso da melhor maneira que puderam, formulaicamente codificado. A América que eles destilaram só existe como uma simulação numa matriz, e temem que a Rússia tenha encontrado a chave para desplugar a sua falsa realidade-construção, despertando toda uma geração para uma verdade cristalina: que o país e tudo o que ele sempre representou foi inteiramente sequestrado por uma conspiração criminosa.
Mais que tudo, revelaram que o poder da “América” depende de um feitiço lançado sobre o seu aliado mais próximo, o completamente subjugado homo europaeus. Assim que a Rússia “quebrar” este feitiço, o jogo termina: “A resiliência interna e o poder global americano advêm, em grande medida, das pessoas e dos países que escolhem os Estados Unidos, e dos americanos que preservam a sua agentividade para atuar em nome dos seus interesses”.
A ideia “sagrada” da “América” aqui sintetizada nada mais é do que uma ilusão imperial, uma teia lançada sobre os olhos de um continente europeu sob completa ocupação desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O que eles estão dizendo, em última análise, é: não há nenhuma sacralidade inerente a esse ideal fabricado, mas, antes, uma ilusão forçada, tão frágil quanto giz, quando as pessoas despertam para ela. E os neoconservadores ainda acreditam que os poderes de despertar da Rússia são uma ameaça existencial!…
Coisas obscuras, sem dúvida. Mas é por isso que o tom deles é tão evidentemente estridente e exasperado neste relatório raivoso. A Rússia encurralou os ratos. E eles estão em pânico.
*Simplicius, The Thinker é o pseudônimo jornalístico de um analista militar e geopolítico norte-americano.
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente em Substack/ Simplicius’s Garden of Knowledge.
Notas do tradutor
[i] Assumiu-se aqui a designação brasileira, traduzindo-se o termo em inglês “regiment” para o que lhe corresponde em português, em termos de escalonamento tático, como “brigada” (a grande unidade que, na simbologia tática, é especificada pelo “X” acima da figura geométrica correspondente à força específica: Manual MD33-M-02, do Ministério da Defesa, que replica o Manual APP-6D da OTAN). A brigada é o nível logo abaixo da divisão. Ela aglutina, por sua vez, batalhões (de infantaria, símbolo ǀǀ) ou regimentos (de cavalaria, símbolo ǀǀǀ) e outras unidades logísticas. Para um estudo da evolução histórica da designação das unidades militares consulte-se, por exemplo: Pedrosa, Fernando V. G. 2020. “Regimentos e Batalhões, Brigadas e Divisões: organização e denominação das unidades militares ocidentais através dos tempos”. Coleção Meira Mattos 15(52): 39-60. Disponível em: http://ebrevistas.eb.mil.br/RMM/article/view/4755.
[ii] O documento original faz aqui remissão a um outro relatório do mesmo Instituto para Estudo da Guerra, este: https://www.understandingwar.org/report/confronting-russian-challenge. Trata-se de um documento de onde se extrai escassíssima demonstração objetiva, seja em termos de análise sociológica seja em termos de análise semiótica, constituindo-se, antes de mais nada, em uma longa peroração ideológica de condenação moral gratuita, retórica e putativa (sobre o presidente russo Vladimir Putin, especialmente), na qual a suposta capacidade russa de “moldar o espaço de informação” parece responder, antes, ao fato de que as iniciativas russas são reconhecidas pelo resto do mundo como, simplesmente, dotadas de suficiente legitimidade. Para uma tradição intelectual que acredita na “mágica ilocucionária”(cf. Pierre Bourdieu, O poder simbólico) (ou mágica agentiva), é realmente difícil chegar a compreender a lógica atinente à conquista de legitimidade (já que ela não é, nem de longe, movida por receituários pragmáticos ― mas pode ser movida por intuição cultural, algo da qual a arrogância imperial norte-americana é atavicamente incapaz quando se trata de outros). Isso significa que, a despeito das miragens em torno do soft power, a Rússia pode simplesmente estar vencendo o debate político internacional nos seus fundamentos simbólicos (o reconhecimento de legitimidade), e que o fantasma da 5GW pode não ser mais do que isso mesmo: um fantasma (como o fantasma farsesco do Russiagate). Isso tudo faz com que a propaganda de guerra ocidental, sustentada pela mídia comercial, possa ser não mais que uma “narrativa” de curto fôlego, onde sua aparente vitória inicial (proclamada especialmente no caso do conflito ucraniano) pode não ter sustentação a longo prazo. E parece ser isso que está-se constatando.
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