O rearranjo do campo democrático

Imagem: Kelly
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Por GERSON ALMEIDA*

Para avançar no acúmulo de forças é preciso construir uma identidade programática que consiga ir além da reação às ações da ultradireita

Politicamente, o primeiro ano do governo Lula começou no dia 8 de janeiro – quando a intentona bolsonarista tentou criar condições para impor uma solução de força e quebrar o pacto democrático no Brasil – e terminou com a aprovação da reforma tributária e as indicações de Paulo Gonet Branco para a PGR e de Flávio Dino para o STF. Nada mal para um governo que, desde o início, age dentro de uma margem estreita de manobra e sofre um rigoroso cerco de inimigos fortemente entrincheirados na liderança de alguns dos principais setores econômico-financeiros, cujos interesses são zelosamente defendidos pela maioria no Congresso. 

Mas é igualmente verdade que o ano de 2024 começou com a aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2024, que destinou escandalosos R$ 53 bilhões para as emendas discricionárias dos parlamentares e subtraiu R$ 61,3 bilhões do total previsto inicialmente para obras de infraestrutura e moradia do “Novo PAC”, uma das principais bandeiras no governo. Ao negociar cada proposta com uma “faca no pescoço” do governo, a direita mostra que está determinada a tentar impedir o alargamento da liberdade de ação do governo. Esse embate escancara a dificuldade do governo em desatar o conjunto de nós políticos e institucionais imposto ao país a partir do golpe de 2016.

Neste contexto, é notável o fato de o governo ter terminado esse primeiro ano com um padrão de estabilidade social, política e econômica inimaginável no início do ano, depois da tentativa de reeditar o golpe de 2016, em 8 de janeiro. As pulsões mais selvagens da direita e a sua determinação de resolver com paus, pedras e bombas as questões políticas foram contidas pela recomposição de um campo democrático no país, mas elas estão longe de terem sido completamente sublimadas e permanentemente dão mostras de estarem apenas em estado de latência, esperando a oportunidade adequada.

O rearranjo do campo democrático, no entanto, parece ter sido realizado mais como reação ao estreitamento do núcleo de poder no governo Bolsonaro, que gradativamente foi dando maiores poderes à familícia, aos militares do seu entorno e às frações do poder econômico, cujas fronteiras com o crime são difíceis de traçar. Exemplos são alguns setores do agronegócio que prosperam com o avanço sobre a floresta amazônica e com o envenenamento da agricultura brasileira, o setor de mineração em terras indígenas, os setores empresariais ávidos por eliminar qualquer tipo de proteção aos trabalhadores, etc.

Esse estreitamento do campo golpista não teria ocorrido sem a resistência dos movimentos sociais e a capacidade política dos partidos de esquerda em lutar contra as regressões civilizacionais e mostrar que havia alternativa ao neoliberalismo. Foi essa resistência social e política que criou as condições para uma rearticulação do campo democrático, mesmo que ainda persistam imensas dificuldades para serem superadas, especialmente pela ausência de um acordo programático consistente para o período.

No processo de reorganização dos campos políticos, houve um símbolo que agregou um inestimável valor ao campo da resistência, que foi a postura de Lula em não aceitar qualquer barganha que o levasse a sair da prisão de forma tutelada. Ao jamais reconhecer a legitimidade do processo e da condenação que lhe foi imposta, Lula não cansou de afirmar que “eu não troco a minha dignidade pela minha liberdade”. Esse gesto conferiu grandeza moral ímpar à sua liderança política já consolidada e impediu qualquer arranjo que excluísse o campo por ele liderado do protagonismo da vida política nacional, como era o desejo do campo golpista.

Em grande medida, foi durante o próprio processo eleitoral que os campos políticos foram sendo reorganizado, o que torna compreensível que a prioridade neste primeiro ano de governo tenha sido trabalhar na delicada tarefa de ampliar a coesão da base de apoio política e social e, ao mesmo tempo, impedir a possibilidade de recomposição do campo golpista de 2016. Não é pouco, mas é insuficiente.

Para que possamos avançar no acúmulo de forças, é preciso construir uma identidade programática que consiga ir além da reação às ações da ultradireita (por mais importante que isso seja) e produzir compromissos entorno de um de luta contra as desigualdades e mazelas humanas produzidas pelo modelo predador neoliberal, que é o caldo de cultura próprio para todo o tipo de protofascismo e salvacionismo. Ganhamos por pontos o primeiro round desta luta decisiva, mesmo que o adversário tenha usado de todos os golpes baixos, mas nos próximos temos que nocautear da uma vez por todas o golpismo. É esse o nosso desafio.

*Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2.


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