Alemanha – a hipocrisia da “economia social de mercado”

Imagem: Ingo Joseph
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Por ADAM TOOZE*

A riqueza bilionária alemã é enorme e subnotificada

“Alemães loucamente ricos”? Ora, isso não soa bem, certo!? Sabe-se, certamente, que a Alemanha é uma economia social de mercado bem arrumada. Eis que não há nessa nação pessoas malcomportadas, malucas e ricas que gastam muito dinheiro com luxos absurdos.

Pode-se fazer filmes baseados inteiramente em clichês sobre os novos ricos asiáticos. A riqueza dos xeques árabes é lendária. A Europa janta há mais de um século contando fofocas sobre as travessuras dos bilionários americanos. Os famosos estudos de desigualdade de Thomas Piketty atualizaram esse tropo transatlântico para o século XXI. Mas, o que sabe sobre os próprios ultras ricos da Europa?

Obviamente, há muita gente no velho continente com muito dinheiro. Não é à toa que a Europa abriga uma porcentagem significativa das marcas de luxo no mundo. Os aristocratas britânicos ainda possuem enormes fatias do país. Os oligarcas russos ostentam alguns dos maiores iates do mundo. Paris é uma cidade de extrema riqueza e requintado luxo e isso é bem óbvio para qualquer visitante. Lugares como Luxemburgo, Zurique ou Genebra brilham com base na riqueza. Mas o que sabe sobre a Alemanha, a economia mais poderosa da Europa?

A Alemanha é uma sociedade, como qualquer outra baseada no capitalismo, que abriga uma enorme desigualdade. Não à toa, é a casa de um dos mais antigos movimentos socialistas da Europa. A Alemanha deu origem à social-democracia antes da economia social de mercado. A Alemanha já foi um lugar em que os barões da indústria, do comércio e da banca eram notórios por se aproximarem do Kaiser e por apoiarem Hitler.

 Depois de 1945, os industriais alemães foram julgados em Nuremberg por seu envolvimento com o regime nazista. Hoje, algumas das maiores e mais bem-sucedidas empresas da Alemanha ainda são de capital fechado – pense na BMW ou nas cadeias da Audi. É claro que há algumas pessoas muito, muito ricas na Alemanha – há aí multi-multi-bilionários.

Mas quem são e quanto têm é uma pergunta mais difícil de responder. Se há uma coisa que é distintiva nos ultrarricos da Alemanha é que eles são bem discretos. Não há equivalente na vida pública alemã de um Elon Musk, Bill Gates ou Bernard Arnault. Em público, os ricos ficam fora dos holofotes, permitindo que a Alemanha seja celebrada como uma economia social de mercado harmoniosa.

Além da discrição, ajuda a manter esse mito o fato de que não há registro oficial de riqueza. O relatório nacional anual sobre pobreza e riqueza não apresenta de modo aprofundado a situação dos super-ricos. Define como “rico” qualquer pessoa que tenha um rendimento líquido superior a 4.200 euros por mês, um rendimento de capital superior a 5000 euros por ano ou um patrimônio pessoal superior a 500.000 euros. Isso classifica quase 10% da população como “rica”. Esse nível de privilégio é importante. Mas não capta as relações de poder e influência conferidas pela riqueza real.

O Bundesbank rastreia a riqueza de forma desigual, pois isso é parte apenas de seu esforço de monitoramento macroeconômico; contudo, também o faz em um nível muito alto de agregação. Quando se trata de monitorar a riqueza das elites, as fontes são muito escassas. A revista Forbes contabilizou 117 bilionários alemães em 2023.

Mas como a grande riqueza está organizada em holdings familiares, é mais significativo, como faz a revista Manager da Alemanha, contar as “fortunas” de bilhões de euros (Vermoegen). A revista, em 2023, contabilizou 226 dessas fortunas. A lista, no entanto, está claramente incompleta. E a revista reconheceu que foi alvo de pressão legal nos bastidores para omitir várias famílias notáveis.

Sabemos desse fato surpreendente graças a uma nova onda de interesse público sobre a desigualdade na Alemanha. Ativistas alemães estão começando a flexionar seus músculos, contestando assim a falta de exposição da realidade das diferenças neste país. Sites como o ungleichheit.info fazem um ótimo trabalho contando a dramática história dessa desigualdade crescente.

Eis um fato surpreendente: as duas famílias alemãs mais ricas possuem mais riqueza do que a metade inferior da população alemã:

Neste mês, dois pesquisadores da rede alemã de Justiça Fiscal (Netwerk Steuergerechtigkeit), Julia Jirmann e Christoph Trautvetter, divulgaram um notável relatório técnico reestimando a riqueza bilionária alemã. Ele foi escolhido pelos documentaristas de TV e pesquisadores de desigualdade Julia Friedrichs e Jochen Breyer, como a espinha dorsal de uma exposição contundente. É possível acessá-lo (em alemão) aqui.

As investigações abrangentes sem precedentes de Jirmann e Trautvetter adicionaram 11 fortunas à lista, em um total de 237 fortunas de famílias bilionárias na Alemanha. De modo mais significativo, eles elevaram a estimativa de sua riqueza total dos 900 bilhões identificados anteriormente pela Manager Magazine para algo entre 1,4 e 2 trilhões de euros. As fortunas de bilhões de euros que faltam até então não relatadas na lista da Manager Magazine incluem dados novos.

Como mostram os pesquisadores, a revista Forbes geralmente alcança estimativas mais altas de riqueza do que suas contrapartes alemãs na Manager Magazine e, portanto, alguns ajustes são justificados. Além disso, a contabilidade patrimonial luta para capturar totalmente os lucros não distribuídos.

Uma coisa é clara. A riqueza bilionária alemã é enorme e subnotificada. E grande parte dela não está mais ligada à propriedade familiar direta de empresas. Desmistificar a suposta conexão com o empreendedorismo familiar é fundamental para deslegitimar a extrema concentração de riqueza realmente existente.

As famílias mais ricas da Alemanha podem ser discretas, mas isso não as impede de se envolver em uma poderosa atividade de lobby por meio de uma rede de fundações liderada pela Stiftung Familienunternehmen (Fundação para Empresas Familiares), Die Familienunternehmer e a iniciativa Neue Soziale Marktwirtschaft (INSM). Esses grupos promovem assiduamente a ideia de propriedade familiar em nome do grupo central dos super-ricos, que na verdade representam 0,00017% dos três milhões de pequenas empresas familiares na Alemanha.

Na realidade, 18% da maior fortuna da Alemanha não tem mais nenhuma conexão com uma empresa específica. Apenas pouco mais da metade das grandes empresas “familiares” são realmente lideradas por um membro da família. Em menos de 10% dessas empresas há uma mulher em posição de liderança e há apenas uma empresa familiar da Alemanha Oriental neste grupo de elite do capitalismo alemão.

O lobby da riqueza alemã pressiona fortemente por políticas que sirvam seus interesses. E, apesar da retórica sobre uma economia social de mercado, eles conseguiram mudar o sistema tributário em desfavor da grande maioria da população alemã.

O imposto sobre a riqueza da Alemanha foi suspenso em 1997. O imposto sobre as sociedades foi reduzido em 2001 e 2008 e foram acrescentadas novas lacunas. A taxa máxima de imposto de renda da Alemanha foi repetidamente cortada no início dos anos 2000; benefícios adicionais foram introduzidos para isentar os dividendos.

Além disso, os ricos da Alemanha receberam consultoria jurídica e contábil especializada para manipular o sistema a seu favor. O resultado líquido é que, como em outros lugares, as famílias extremamente ricas da Alemanha quase não pagam nenhum imposto sobre a renda que obtêm de sua imensa riqueza.

Uma compilação muito reveladora dos benefícios explorados por uma típica família rica na Alemanha foi montada por Jirmann e Trautvettter. E o imposto é apenas uma das facetas da vida pública que os supérrimos podem influenciar.

Pode-se pensar que a política democrática alemã, com seus partidos políticos financiados publicamente, seria relativamente imune à influência da grande riqueza. Ou, pelo menos, menos sensível aos interesses dos ricos do que o sistema democrático dos EUA, onde os políticos podem ser abertamente comprados. Mas como trabalho de Lea Elsässer, Svenja Hense e Armin Schäfer mostrou que a política democrática alemã é, quando muito, ainda mais sensível às preferências dos mais ricos e menos sensível às preferências dos mais pobres, do que o sistema nos EUA.

Eis o que dizem: “Neste artigo, mostramos que a capacidade de resposta política na Alemanha também é tendenciosa em direção aos mais favorecidos, tal como ocorre nos Estados Unidos. As classes sociais mais baixas veem suas preferências refletidas nas decisões políticas com menos frequência do que as classes sociais mais altas, em particular quando se trata de questões altamente contestadas”. “A fim de facilitar a comparação com os achados para os EUA, replicamos o desenho de pesquisa que outros utilizaram para o caso deste país. Nosso conjunto de dados original inclui 842 perguntas sobre a concordância ou a discordância com propostas de políticas específicas feitas entre 1980 e 2013. Calculamos o grau de apoio tanto para os grupos de renda quando para os grupos ocupacionais, acrescentando informações sobre como o parlamento alemão decidiu a implementação dessas políticas, mantendo um prazo de quatro anos”. “Nossos resultados mostram, em geral, que as decisões do Bundestag são voltadas para os mais favorecidos; ademais, elas praticamente ignoram as preferências dos pobres. Quando se trata de questões sobre as quais ricos e pobres discordam, o efeito do apoio de grupos de baixa renda sobre a probabilidade de promulgação se torna negativo. Quanto mais esses grupos favorecem uma determinada política, menor a probabilidade de ela virar lei.”

O privilégio e a influência política formam, assim, um ciclo de autorreforço que é difícil de abalar. De acordo com os dados históricos compilados por Albers, Bartels e Schularick, o único período em que a estrutura da desigualdade de riqueza alemã foi abalada foi o período “entre as guerras mundiais” de 1914 a 1945. A história da República Federal da Alemanha e da sua lendária economia social de mercado foi marcada pela estabilização e, em seguida, por um aumento gradual da desigualdade de riqueza.

Desde o início da década de 1990, a Alemanha tem visto um aumento altamente desequilibrado na riqueza de 1% mais rico. O gráfico em sequência mostra que o crescimento da riqueza entre 1993 e 2018. O resultado é gritante: a elite alemã tem todas as razões para pôr um véu de discrição sobre suas atividades.

Como confirmam dados de um centro de pesquisa em Colônia, a economia social de mercado da Alemanha, assim como as social-democracias da Escandinávia, obtém seu apelido de “social” por fazerem uma substantiva equalização de renda. Mas esse esforço redistributivo esconde uma desigualdade de riqueza subjacente, que é enorme.

Se acreditamos nos dados, a riqueza alemã na década de 2010 estava mais concentrada do que em qualquer outra grande sociedade europeia. Em termos de riqueza, a França e a Itália estão mais próximas da antiga República Tcheca comunista do que da Alemanha. Em termos de coeficiente de Gini, a desigualdade de riqueza da Alemanha está em 0,79 e é mais próxima da dos EUA (o Gini da riqueza norte-americana está em 0,81-0,86).

A Alemanha pode se pensar como uma economia social de mercado. Em termos de redistribuição de renda, essa reivindicação é real. Mas, subjacente a esse modelo político, está uma sociedade que realmente merece apenas o rótulo de “democracia capitalista”.

Ora, capitalismo e democracia formam um par tenso. E o que está em jogo na política progressista, certamente, deve aumentar a tensão nessa relação. A opinião pública na Alemanha, como em outros lugares, está cada vez mais convencida de que os benefícios da sociedade moderna são distribuídos de forma muito desigual. Em vez de condenar essas visões como populistas, ou denunciá-las como “inveja social”, a política progressista certamente deveria ter como objetivo organizar essa insatisfação e armá-la com argumentos e dados.

Na luta pela desigualdade, um pré-requisito essencial é a publicidade. Pesquisas mostram que na Europa, ao contrário dos EUA, dar aos eleitores informações sobre desigualdade intensifica sua preferência pela redistribuição. Como comentam Julia Jirmann e Christoph Trautvetter, da Rede Alemã de Justiça Fiscal, o que falta ao público alemão é informação adequada sobre a estrutura básica de sua própria sociedade.

A riqueza das fortunas bilionárias da Alemanha é dividida em apenas 4.300 famílias. Se a análise regular fosse estendida às 1000 maiores fortunas e seus impérios de negócios e propriedades, seria necessário monitorar as finanças de cerca de 0,1% da população ou 40.000 famílias. Seria esta última uma tarefa demasiado difícil para um aparelho de Estado sofisticado como o da Alemanha? Ou seria simplesmente demasiado embaraçoso revelar quão pouco contributo esta vasta riqueza dá para as finanças públicas.

Um imposto de 2% sobre a riqueza – para começar com uma proposta modesta – geraria receitas substanciais. Asseguraria, se fosse devidamente aplicada, que os mais ricos pagassem aproximadamente a mesma taxa de imposto sobre os seus rendimentos de capital que o resto da sociedade sobre os seus rendimentos do trabalho. Isso retardaria o crescimento de mais polarização. E traria a questão da desigualdade de riqueza para a discussão pública. Colocaria a riqueza e a renda que gera ao lado de impostos sobre o trabalho e os gastos sociais, que tantas vezes são o foco das demandas de contenção e austeridade. Num momento de crise orçamentária (auto infligida), isso deveria certamente estar em cima da mesa de negociação.

*Adam Tooze é professor de história na Columbia University (EUA). Autor, entre outros livros, de O preço da destruição (Record).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente na newsletter Chartbook.


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