Por GYÖRGY LUKÁCS*
Trechos do Prefácio do autor ao livro recém-traduzido
O livro aqui entregue ao público é a primeira parte de uma estética que tem por tema central a fundamentação filosófica do tipo de pôr estético, a dedução da categoria específica da estética e a sua delimitação em relação a outros campos. Na medida em que as exposições se concentram nesse complexo de problemas e só abordam problemas concretos da estética quando isso é imprescindível para o esclarecimento dessas questões, esta parte forma um todo acabado e compreensível também sem as partes subsequentes.
É imprescindível deixar claro o lugar que o comportamento estético ocupa na totalidade das atividades humanas e das reações humanas ao mundo exterior, assim como a relação entre as formações estéticas daí resultantes, entre sua estruturação categorial (forma estrutural etc.) e outros modos de reação à realidade objetiva. A observação imparcial dessas relações resulta, grosso modo, no seguinte quadro: a dimensão primária é o comportamento do homem na vida cotidiana, um campo que, apesar de sua importância central para a compreensão dos modos superiores e mais complexos de reação, em grande parte não foi ainda investigado.
Sem querer antecipar aqui pontos que foram expostos detalhadamente no curso da própria obra, devemos mencionar, com toda a brevidade possível, as ideias básicas de sua estrutura. O comportamento cotidiano do homem é simultaneamente começo e fim de toda atividade humana, isto é, quando se imagina o cotidiano como um grande rio, pode-se dizer que, nas formas superiores de recepção e reprodução da realidade, ciência e arte ramificam-se a partir dele, diferenciam-se e constituem-se de acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa peculiaridade – que emerge das necessidades da vida social para então, por consequência de seus efeitos, de suas incidências sobre a vida dos homens, voltar a desembocar no rio da vida cotidiana.
Portanto, esse rio é constantemente enriquecido com os resultados mais elevados do espírito humano, assimilando-os a suas necessidades práticas cotidianas, e daí voltam a surgir, em forma de questões e demandas, novas ramificações das formas de objetivação superiores. Desse modo, é preciso examinar detidamente as complexas inter-relações entre a consumação imanente das obras na ciência e na arte e as necessidades sociais que despertam ou ocasionam seu surgimento. É dessa dinâmica da gênese, do desdobramento, da legalidade própria, do enraizamento na vida da humanidade que se podem derivar as categorias e estruturas particulares das reações científicas e artísticas do homem à realidade.
As análises feitas nesta obra estão direcionadas naturalmente para o conhecimento da peculiaridade do estético. Como, porém, os homens vivem em uma realidade unitária e se inter-relacionam com ela, a essência do estético só pode ser apreendida, ainda que apenas de modo aproximado, na constante comparação com outros tipos de reação. Nesse caso, a relação com a ciência é a mais importante; contudo é imprescindível investigar também a relação com a ética e a religião. Até os problemas psicológicos que afloram aqui resultam necessariamente de questionamentos direcionados à especificidade do pôr estético.
Obviamente nenhuma estética pode deter-se nesse estágio. Kant ainda pôde contentar-se em responder à questão metodológica geral sobre a pretensão de validade dos juízos estéticos. Abstraindo-se do fato de que essa questão, a nosso ver, não é primária, mas extremamente derivada do ponto de vista da estrutura da estética, desde que apareceu a “estética” hegeliana nenhum filósofo que leve a sério a aclaração da essência do estético pode continuar a se contentar com uma moldura tão estreita e uma formulação do problema tão unilateralmente orientada na teoria do conhecimento.
No texto a seguir, falaremos muito dos aspectos questionáveis da “estética” hegeliana, tanto em sua fundamentação quanto nas exposições específicas; no entanto, o universalismo filosófico de sua concepção e o modo histórico-sistemático de sua síntese permanecem sempre exemplares para o projeto de toda estética. Somente as três partes de nossa estética em seu conjunto conseguirão realizar uma aproximação – apenas parcial – desse elevado modelo, pois, abstraindo-se inteiramente do saber e do talento de quem hoje empreende tal tentativa, é muito mais difícil na época atual do que o foi na época de Hegel pôr em prática os parâmetros de abrangência total estabelecidos pela “estética” hegeliana. Assim, a teoria das artes – igualmente de cunho histórico-sistemático –, também tratada extensamente por Hegel, ainda se encontra fora do âmbito circunscrito pelo plano global de nossa obra.
Na primeira parte, problemas como conteúdo e forma, visão de mundo e conformação [Formbildung], técnica e forma etc. aparecerão de modo extremamente genérico, apenas como questões no horizonte; filosoficamente, sua verdadeira essência concreta somente poderá vir à tona no decorrer de uma análise detida da estrutura da obra. O mesmo se dá com os problemas referentes ao comportamento criativo e receptivo.
A primeira parte só consegue avançar até o seu delineamento geral, retratando de certo modo o respectivo “lugar” metodológico de sua possibilidade de determinação. As relações reais entre cotidiano, de um lado, e, de outro, comportamento científico, ético etc. e produção e reprodução estéticas, o modo categorial essencial de suas proporções, interações, influências recíprocas etc. exigem análises voltadas para a dimensão mais concreta possível, fundamentalmente impossíveis no quadro de uma primeira parte centrada na fundamentação filosófica.
Como o leitor pode ver, a estruturação destas investigações estéticas diverge consideravelmente das construções habituais. Isso, contudo, de modo nenhum significa que elas possam reivindicar originalidade quanto ao método. Pelo contrário: elas não passam da aplicação mais precisa possível do marxismo aos problemas da estética. Para que um empreendimento como esse não seja entendido de antemão de modo equivocado, é preciso aclarar, ainda que em poucas palavras, a situação dessa estética e a sua relação com o marxismo. Quando, há mais ou menos trinta anos, escrevi minha primeira contribuição à estética do marxismo,[i] defendi a tese de que o marxismo tem uma estética própria e, ao fazer isso, deparei-me com diversas resistências. A razão disso foi o marxismo anterior a Lênin ter-se restringido – inclusive em seus melhores representantes, por exemplo, Plekhánov ou Mehring – quase exclusivamente aos problemas do materialismo histórico.[ii][iii]
Foi só a partir de Lênin que o materialismo dialético voltou a ser o centro dos interesses. Essa é a razão pela qual Mehring, que baseou sua estética na Crítica da faculdade do juízo, conseguiu ver as divergências entre Marx-Engels e Lassalle apenas como confrontos de juízos subjetivos a respeito do gosto estético. Essa controvérsia, de fato, há muito já está resolvida. Desde o brilhante estudo de Mikhail Lifschitz sobre o desenvolvimento das noções estéticas de Marx, desde a cuidadosa coleta e sistematização dos enunciados dispersos de Marx, Engels e Lênin sobre questões estéticas, não pode haver mais dúvidas quanto ao nexo e à coerência desses raciocínios.[iv]
Evidenciar e comprovar esse nexo sistemático, porém, nem de longe soluciona a questão de uma estética do marxismo, pois, se nos ditos coligidos e sistematizados dos clássicos do marxismo já estivesse contida uma estética ou, pelo menos, seu esqueleto perfeito, bastaria adicionar um bom texto de articulação e a estética marxista estaria pronta diante de nós. Mas a situação não é essa! Como evidenciam múltiplas experiências, nem mesmo fazer uma aplicação monográfica direta desse material a todas as questões individuais da estética é trazer contribuições cientificamente decisivas para a estruturação do conjunto.
Temos, portanto, a situação paradoxal de que existe e ao mesmo tempo não existe uma estética marxista, que ela tem de ser conquistada e até criada por meio de pesquisas autônomas e que o resultado apenas expõe e fixa conceitualmente alguma coisa que existe conforme a ideia. Entretanto, o paradoxo se resolve por si só quando todo o problema é analisado à luz do método da dialética materialista, pois o sentido antiquíssimo da palavra “método”, indissoluvelmente ligado ao caminho que leva ao conhecimento, implica necessariamente a ideia de que, para chegar a determinados resultados, é preciso trilhar determinados caminhos. A direção desses caminhos está contida de modo inequivocamente evidente na totalidade da imagem de mundo projetada pelos clássicos do marxismo, em especial na medida em que os resultados obtidos são claros para nós como pontos finais de tais caminhos.
Portanto, mesmo que isso não seja visível à primeira vista nem diretamente, o método do materialismo dialético traçou de maneira prévia e clara quais são esses caminhos e como eles devem ser trilhados para se conceituar a realidade objetiva em sua verdadeira objetividade e investigar a fundo a essência de cada campo específico de acordo com sua verdade. Só se esse método, esse norteamento de caminhos, for cumprido e sustentado com autonomia por uma pesquisa própria haverá a possibilidade de se encontrar o que se busca, de estruturar corretamente a estética marxista ou, pelo menos, de aproximar-se de sua verdadeira essência.
Quem cultivar a ilusão de reproduzir a realidade em pensamento com o auxílio de uma mera interpretação de Marx e, desse modo, reproduzir simultaneamente a apreensão marxiana da realidade forçosamente falhará nas duas coisas. Somente uma análise imparcial da realidade e sua elaboração por meio do método descoberto por Marx pode lograr fidelidade à realidade e, ao mesmo tempo, ao marxismo. Nesse sentido, este trabalho é, em todas as suas partes e em seu conjunto, resultado de pesquisa independente, mas, ainda assim, não reivindica originalidade, pois deve todos os meios de se acercar da verdade, todo o seu método, ao estudo do conjunto da obra transmitida a nós pelos clássicos do marxismo.
Mas fidelidade ao marxismo significa também o reconhecimento das grandes tradições que até hoje procuraram dar conta da realidade. No período stalinista, enfatizou-se exclusivamente, em especial Zhdanov, aquilo que separa o marxismo das grandes tradições do pensamento humano. Se, nesse caso, tivesse sido enfatizado apenas o qualitativamente novo no marxismo, a saber, o salto que separa sua dialética da dos seus precursores mais desenvolvidos, por exemplo, Aristóteles ou Hegel, isso poderia ser relativamente justificado. Uma posição como essa até poderia ser avaliada como necessária e proveitosa, se não ressaltasse de modo unilateral, isolante e, por isso, metafísico – de modo profundamente não dialético – o radicalmente novo no marxismo, se não negligenciasse o fator da continuidade no desenvolvimento do pensamento humano. Porém, a realidade – e, por isso mesmo, também seu reflexo e sua reprodução no pensamento – constitui uma unidade dialética de continuidade e descontinuidade, de tradição e revolução, de transições gradativas e de saltos.
O próprio socialismo científico é algo completamente novo na história e, no entanto, constitui a realização plena de um vívido anseio milenar da humanidade, o cumprimento daquilo que foi almejado profundamente pelos melhores espíritos. O mesmo ocorre com a apreensão conceitual do mundo pelos clássicos do marxismo. A profunda verdade do marxismo, que nenhum ataque ou silenciamento são capazes de abalar, apoia-se principalmente no fato de que, com sua ajuda, os fatos fundamentais da realidade, da vida humana, antes ocultos, vêm à tona e podem tornar-se conteúdo da consciência humana.
O novo adquire assim um duplo sentido: não apenas, em decorrência da realidade anteriormente inexistente do socialismo, a vida humana recebe um novo conteúdo, um novo sentido, mas, ao mesmo tempo, a desfetichização levada a cabo com o auxílio do método e da pesquisa marxistas, bem como de seus resultados, lança nova luz sobre o presente e o passado, sobre toda a existência humana, antes vistos como conhecidos. Desse modo, todos os esforços passados para apreendê-la em sua verdade se tornam compreensíveis em um sentido muito novo. Perspectiva de futuro, conhecimento do presente, a compreensão das tendências que eles acarretaram tanto intelectual quanto praticamente encontram-se, assim, em uma inter-relação indissolúvel.
Enfatizar unilateralmente o que separa e o que é novo evoca o perigo de estreitar e empobrecer no interior de uma alteridade abstrata tudo o que há de concreto e rico em determinações no verdadeiramente novo. A confrontação das caracterizações distintivas da dialética em Lênin e Stálin mostra com muita clareza as consequências dessa diferença metodológica; e os posicionamentos de muitas formas não racionais sobre a herança da filosofia hegeliana levaram a uma pobreza muitas vezes assustadora do conteúdo das investigações lógicas no período stalinista.
Nos próprios clássicos, não se encontra nenhum vestígio de tal contraste metafísico entre o velho e o novo. Pelo contrário, a relação entre eles aparece nas proporções produzidas pelo desenvolvimento sócio-histórico, na medida em que este permite à verdade manifestar-se. Ater-se a esse único método correto talvez seja mais importante para a estética do que para outros campos, pois, nesse ponto, a análise precisa dos fatos mostrará com especial clareza que o estado consciente do pensamento referente ao que foi realizado na prática no campo do estético sempre ficou aquém desse resultado prático.
Justamente por isso os poucos pensadores que chegaram relativamente cedo a ter clareza sobre os autênticos problemas do estético têm uma importância extraordinária. Em contrapartida – como mostrarão nossas análises –, raciocínios que por vezes parecem muito distantes, por exemplo, os de cunho filosófico ou ético, são muito importantes para a compreensão dos fenômenos estéticos. Para não antecipar demais aquilo que só cabe mesmo nas exposições detalhadas, observe-se que toda a estrutura e todas as exposições detalhadas desta obra – justamente porque deve sua existência ao método marxiano – são determinadas em toda a sua profundidade pelos resultados a que Aristóteles, Goethe e Hegel chegaram em seus mais diferentes escritos, e não só naqueles que se referem diretamente à estética.
Se, ademais, expresso meu reconhecimento a Epicuro, Bacon, Hobbes, Espinosa, Vico, Diderot, Lessing e aos pensadores democrático-revolucionários russos, naturalmente não faço mais que apenas elencar os nomes mais importantes; essa lista nem de longe esgota os autores com os quais me sinto em dívida na realização deste trabalho, tanto no conjunto quanto no detalhe. O modo de citar esses autores corresponde a essa convicção. Não pretendemos tratar aqui dos problemas da história da arte ou da estética. Trata-se, antes, de aclarar fatos ou linhas de desenvolvimento relevantes para a teoria geral. Por isso serão citados, em correspondência com suas respectivas constelações teóricas, os autores ou as obras que enunciaram algo pela primeira vez – de modo correto ou significativamente errado – ou cuja opinião aparece como especialmente característica de determinada situação. Aspirar à completude da fundamentação bibliográfica não figura entre as intenções deste trabalho.
Do que foi exposto até agora já se depreende que os pontos polêmicos de todo este trabalho estão apontados para o idealismo filosófico. Nesse procedimento, a batalha em torno da teoria do conhecimento, por sua natureza, extrapola seu quadro; o que interessa aqui são as questões específicas, nas quais o idealismo filosófico se comprova como empecilho para a compreensão adequada de fatos especificamente estéticos.
Trata-se de um mal-entendido muito difundido acreditar que a imagem de mundo do materialismo – prioridade do ser em relação à consciência, do ser social em relação à consciência social – possui também um caráter hierárquico. Para o materialismo, a prioridade do ser é, antes de tudo, a constatação de um fato: existe ser sem consciência, mas não existe consciência sem ser. Contudo, disso não resulta nenhum tipo de subordinação hierárquica da consciência ao ser. Pelo contrário, essa prioridade e seu reconhecimento concreto – tanto teórico quanto prático – pela consciência é que criam a possibilidade de a consciência dominar o ser em termos reais. O simples fato do trabalho ilustra essa faticidade de modo contundente. E, quando o materialismo histórico constata a prioridade do ser social em relação à consciência social, trata-se igualmente apenas do reconhecimento de uma faticidade.
A prática social também está direcionada para o domínio do ser social, e o fato de ter cumprido seus fins apenas de modo muito relativo no decorrer da história até o presente momento não cria uma relação hierárquica entre ambos, mas apenas determina as condições concretas nas quais uma prática exitosa se torna objetivamente possível, traçando desse modo, simultaneamente, seus limites concretos, o espaço de manobra para a consciência, o espaço proporcionado pelo respectivo ser social. Assim, nessa relação, torna-se visível uma dialética histórica, mas de modo algum uma estrutura hierárquica. Quando um pequeno barco a vela se mostra impotente diante de uma tempestade que um poderoso navio a motor superaria sem dificuldades, isso mostra apenas a superioridade ou a limitação real da respectiva consciência diante do ser, mas não uma relação hierárquica entre o homem e as forças da natureza; e isso tanto menos quanto o desenvolvimento histórico – e com ele o conhecimento crescente que a consciência tem da verdadeira natureza do ser – produz um crescimento constante das possibilidades de domínio do ser pela consciência.
O idealismo filosófico tem de projetar sua imagem de mundo de modo radicalmente diferente. Não são as relações de força reais e alternantes que criam uma preponderância ou uma inferioridade temporária na vida, mas desde o início é estabelecida uma hierarquia das potências, em conformidade com a consciência, que não só produzem e ordenam as formas de objetividade e as relações entre os objetos como também têm graduações hierárquicas entre si. Para lançar luz sobre a situação de nosso problema: quando, por exemplo, Hegel associou a arte à intuição, a religião à representação, a filosofia ao conceito e as concebeu como regidas por essas formas de consciência, ele fez surgir por essa via uma hierarquia precisa, “eterna”, irrefutável, que, como sabe todo conhecedor de Hegel, determina também o destino histórico da arte. (Quando, por exemplo, o jovem Schelling inseriu a arte em ordem hierárquica contraposta, isso não modificou os princípios).
É evidente que surge daí todo um emaranhado de pseudoproblemas que, desde Platão, causaram confusão metodológica em toda a estética, pois é indiferente se a filosofia idealista estabelece, em certo sentido, uma relação de sobreordenação ou de subordinação entre a arte e outras formas de consciência, se o pensamento é desviado da investigação das propriedades específicas dos objetos e se estes são reduzidos – em geral de modo totalmente inadmissível – a um só denominador, para que, desse modo, seja possível compará-los entre si dentro de uma ordem hierárquica e inseri-los no nível hierárquico desejado. Mesmo que se trate de problemas referentes à relação da arte quer com a natureza, quer com a religião, quer com a ciência etc., em toda parte os pseudoproblemas originam necessariamente distorções das formas de objetividade, das categorias.
A significação da ruptura com o idealismo filosófico é ainda mais evidente em suas consequências, ou seja, quando concretizamos ainda mais nosso ponto de partida materialista, a saber, quando concebemos a arte como um modo peculiar de manifestação do reflexo da realidade, um modo que, por sua vez, é apenas um dos subtipos de relações universais reflexivas do homem com a realidade. Uma das ideias básicas decisivas desta obra é que todos os tipos de reflexo – analisaremos sobretudo os que são representados pela vida cotidiana, pela ciência e pela arte – retratam sempre a mesma realidade objetiva.
Esse ponto de partida, que parece óbvio e até trivial, tem, no entanto, consequências de grande alcance. A filosofia materialista não vê todas as formas de objetividade, todos os objetos e categorias associadas às suas relações como produtos de uma consciência criativa, como faz o idealismo, mas vislumbra neles uma realidade objetiva que existe independentemente da consciência; por conseguinte, todas as divergências e até contraposições presentes em cada tipo de reflexo só podem dar-se no âmbito dessa realidade material e formalmente unitária. Para que se possa compreender a complicada dialética dessa unidade de unidade e diversidade, é preciso romper primeiro com a representação muito difundida de um reflexo mecanicista, fotográfico.
Se esse tipo de reflexo fosse a base da qual brotam as diferenças, todas as formas específicas seriam deformações subjetivas dessa única reprodução “autêntica” da realidade, ou a diferenciação deveria ser de caráter puramente ulterior, inteiramente privado de espontaneidade, meramente consciente e intelectual. Porém a infinitude extensiva e intensiva do mundo objetivo obriga todos os seres vivos, e sobretudo o homem, a uma adaptação, a uma seleção inconsciente no reflexo. Portanto, essa seleção tem também – a despeito de seu caráter fundamentalmente objetivo – um componente insuperavelmente subjetivo, que no nível animal é condicionado em termos puramente fisiológicos e, no homem, além disso, também em termos sociais. (Influência do trabalho no enriquecimento, na disseminação, no aprofundamento etc. das capacidades humanas de reflexo da realidade).
A diferenciação é, portanto – sobretudo nos campos da ciência e da arte –, produto do ser social, das necessidades surgidas nesse terreno, da adaptação do homem ao seu ambiente, do crescimento de suas capacidades em interação com a obrigação de estar à altura de tarefas inteiramente novas. Em termos fisiológicos e psicológicos, essas interações e essas adaptações ao novo têm de fato de se realizar de modo imediato nos homens singulares, mas elas adquirem de antemão uma universalidade social, dado que as novas tarefas propostas, as novas circunstâncias que exercem uma ação modificadora possuem uma natureza (social) geral e só admitem variantes individuais subjetivas dentro do espaço de manobra social.
A explicitação dos traços específicos da essência do reflexo estético da realidade ocupa uma parte qualitativa e quantitativamente decisiva deste trabalho. De acordo com a intenção básica desta obra, essas investigações são de natureza filosófica, isto é, concentram-se na seguinte questão: quais são as formas, relações, proporções etc. específicas que o mundo categorial comum a todo reflexo adquire no pôr estético? Naturalmente é inevitável que nesse procedimento se abordem também questões psicológicas; a esses problemas dedicamos um capítulo específico (Capítulo 11).
Ademais, é preciso ressaltar desde já que a intenção filosófica básica nos prescreve necessariamente elaborar, em todas as artes, sobretudo os traços estéticos comuns ao reflexo, embora de acordo com a estrutura pluralista da esfera estética, e, na medida do possível, a particularidade [Besonderheit] de cada uma das artes no tratamento dos problemas categoriais. O modo de manifestação muito peculiar do reflexo da realidade em artes como a música ou a arquitetura torna inevitável dedicar a esses casos especiais um capítulo à parte (Capítulo 14), buscando, nesse caso, aclarar as diferenças específicas de tal maneira que nelas os princípios estéticos gerais preservem simultaneamente sua validade.
Essa universalidade do reflexo da realidade como base de todas as inter-relações do homem com seu ambiente tem, quando levada ao extremo, consequências ideológicas de grande alcance para a concepção do estético, pois, para todo idealismo realmente consequente, qualquer forma de consciência significativa para a existência humana – no nosso caso, a estética – deve ter um modo de ser “eterno”, “supratemporal”, dado que sua origem está fundada hierarquicamente no contexto de um mundo ideal; na medida em que é possível tratá-la historicamente, isso acontece dentro do marco meta-histórico do ser ou da aplicação “atemporal”.
Porém essa posição aparentemente metodológica e formal se reverterá necessariamente em conteúdo, em visão de mundo, pois dela decorre necessariamente que o estético, em termos tanto produtivos quanto receptivos, pertence à “essência” do homem, mesmo que se determine isso do ponto de vista quer do mundo da ideia, quer do espírito do mundo, quer em termos antropológicos ou ontológicos. Um quadro diametralmente oposto deverá resultar de nossa perspectiva materialista. Não só a realidade objetiva que aparece nos diferentes tipos de reflexo está sujeita a uma mudança ininterrupta como essa mudança apresenta rumos bem determinados, linhas evolutivas bem determinadas. Portanto, a própria realidade é histórica segundo seu modo objetivo de ser; as determinações históricas, tanto de conteúdo quanto de forma, que aparecem nos diferentes reflexos não passam de aproximações mais ou menos corretas desse aspecto da realidade objetiva.
Porém uma historicidade autêntica jamais pode consistir em uma simples modificação dos conteúdos de formas que se mantêm sempre iguais, no âmbito de categorias sempre imutáveis, pois essa variação dos conteúdos terá necessariamente um efeito de modificar também as formas, devendo acarretar inicialmente determinados deslocamentos de função dentro do sistema categorial e, a partir de certo grau, até mudanças pronunciadas, ou seja, o surgimento de categorias novas e o desaparecimento de categorias velhas. A historicidade da realidade objetiva tem como consequência uma determinada historicidade da teoria das categorias.
Todavia é preciso estar atento para saber até que ponto e em que medida tais transformações são de constituição objetiva ou subjetiva, pois, embora achemos que também a natureza deve, em última análise, ser concebida historicamente, cada uma das etapas de seu desenvolvimento é de uma extensão temporal tal que suas transformações objetivas praticamente não podem ser levadas em consideração pela ciência. Tanto mais importante, naturalmente, é a história subjetiva das descobertas de objetivações, relações, nexos categoriais. Somente na biologia se poderia constatar um ponto de inflexão no surgimento das categorias objetivas da vida – pelo menos, na parte do universo que conhecemos – e, desse modo, uma gênese objetiva.
A questão é qualitativamente diferente quando se trata do homem e da sociedade humana. Nesse caso, indubitavelmente, trata-se sempre da gênese de categorias singulares e nexos categoriais, que não podem ser “deduzidos” da simples continuidade do desenvolvimento precedente, cuja gênese, portanto, apresenta demandas específicas ao conhecimento. Contudo, haveria uma distorção da faticidade verdadeira se quiséssemos fazer uma separação metodológica entre a investigação histórica da gênese e a análise filosófica do fenômeno que surge nesse processo. A verdadeira estrutura categorial de todo fenômeno desse tipo está ligada, muito intimamente, à sua gênese; a demonstração da estrutura categorial só será possível de modo pleno e na proporção correta se a decomposição concreta estiver organicamente vinculada à aclaração da gênese; a dedução do valor, no início de O capital, de Marx, constitui o modelo exemplar desse método histórico-sistemático.
Essa união será tentada nas exposições concretas desta obra sobre o fenômeno fundamental do estético e em todas as suas ramificações em questões de detalhes. Ora, essa metodologia se converte em visão de mundo na medida em que implica uma ruptura radical com todas as concepções que vislumbram, na arte, no comportamento artístico, algo supra-historicamente ideal ou, pelo menos, algo ontológica ou antropologicamente pertencente à “ideia” do homem. A exemplo do trabalho, da ciência e de todas as atividades sociais do homem, a arte é produto do desenvolvimento social, do homem que se faz homem por meio do seu trabalho.
Porém, para além disso, a historicidade objetiva do ser e seu modo de manifestação especificamente demarcado na sociedade humana tem consequências importantes para a apreensão da peculiaridade fundamental do estético. A missão das nossas argumentações concretas será mostrar que o reflexo científico da realidade procura se libertar de todas as determinações antropológicas, tanto das sensíveis quanto das intelectuais, e que se esforça para retratar os objetos e suas relações como são em si, independentemente da consciência. O reflexo estético, em oposição, parte do mundo do homem e está voltado para ele. Isso não implica, como mostraremos no devido momento, um simples subjetivismo. Pelo contrário, a objetividade dos objetos fica preservada, só que de modo que estejam contidas nela também todas as referencialidades típicas da vida humana, manifestando-se de um modo que corresponda ao respectivo estado de desenvolvimento interior e exterior da humanidade, que é um desenvolvimento social.
Isso significa que toda configuração estética inclui, ordena dentro de si o hic et nunc histórico de sua gênese como fator essencial de sua objetividade decisiva. Naturalmente todo reflexo é determinado concretamente pelo lugar determinado de sua efetivação. Mesmo na descoberta de verdades puramente matemáticas ou na ciência natural, o contexto temporal nunca é casual; no entanto, a importância objetiva desse contexto temporal tem maior relevância para a história das ciências do que para o próprio saber, para o qual pode ser considerado como totalmente indiferente quando e em que condições históricas – necessárias – foi formulado pela primeira vez, por exemplo, o teorema de Pitágoras.
Essa essência histórica da realidade conduz para outro complexo importante de problemas, que, em primeira linha, também é de ordem metodológica, mas, como todo problema autêntico de uma metodologia concebida corretamente – e não apenas de modo formal –, converte-se necessariamente em visão de mundo. Referimo-nos ao problema da imanência [Diesseitigkeit]. Considerada em termos puramente metodológicos, a imanência é uma exigência imprescindível tanto do conhecimento científico quanto da configuração artística. Só quando um complexo de fenômenos é plenamente compreendido a partir de suas qualidades imanentes, das legalidades igualmente imanentes que atuam sobre elas, é possível considerá-lo cientificamente conhecido. Em termos práticos, naturalmente essa completude é sempre aproximativa; a infinitude tanto extensiva quanto intensiva dos objetos e de suas relações estáticas e dinâmicas etc. não permite que se conceba um conhecimento como absolutamente definitivo em uma forma dada, que se possa considerar excluída a necessidade de fazer correções, ressalvas, ampliações etc.
Da magia até o positivismo moderno, esse “ainda não” que vigora no domínio científico da realidade foi interpretado, das mais diferentes maneiras, como transcendência, desconsiderando-se que muita coisa sobre a qual um dia se proclamou um “ignorabimus”, há muito já ingressou na ciência exata como um problema solucionável, mesmo que na prática ainda não tenha sido solucionado. O surgimento do capitalismo e as novas relações entre ciência e produção, em combinação com as grandes crises das concepções de mundo religiosas, fizeram com que a transcendência ingênua fosse substituída por uma mais complexa, mais refinada.
O novo dualismo nasceu já na época das tentativas dos defensores do cristianismo de rejeitar ideologicamente a teoria copernicana: uma concepção metodológica que visava a criar um laço entre a imanência do mundo fenomênico dado e a negação de sua realidade última, no intuito de contestar a competência da ciência de dizer algo válido sobre essa realidade. Superficialmente, pode-se ter a impressão de que essa depreciação da realidade do mundo não faz diferença, já que, na prática, os homens podem cumprir suas tarefas imediatas na produção independentemente de considerarem objeto, meios etc. de sua atividade algo como ente-em-si ou como mera aparência. Tal concepção, porém, é sofística em dois sentidos. Em primeiro lugar, todo homem ativo em sua prática real tem sempre a convicção de lidar com a própria realidade; até o físico positivista tem convicção disso quando, por exemplo, realiza um experimento.
Em segundo lugar, quando – por razões sociais – tal concepção é profundamente arraigada e muito disseminada, ela desagrega as relações intelectuais e morais mais mediadas entre os homens e a realidade. A filosofia existencialista, segundo a qual o homem, “lançado” no mundo, se defronta com o nada, é – do ponto de vista sócio-histórico – o polo oposto necessariamente complementar do desenvolvimento filosófico que leva de Berkeley a Mach ou a Carnap.
O campo de batalha propriamente dito entre imanência [Diesseitigkeit] e transcendência [Jenseitigkeit] é inquestionavelmente a ética. Por isso, nos marcos desta obra, as determinações decisivas dessa controvérsia não poderão ser expostas de modo completo, mas apenas tangenciadas; o autor espera poder oferecer de forma sistemática, num futuro próximo, suas concepções sobre essa questão. Neste ponto, devemos apenas observar brevemente que o velho materialismo – de Demócrito a Feuerbach – conseguiu expor a imanência da estrutura do mundo somente de modo mecanicista, razão pela qual, por um lado, o mundo ainda podia ser concebido como o mecanismo de um relógio que necessita de intervenção externa – transcendente – para se pôr em movimento; por outro lado, nesse tipo de visão de mundo, o homem só podia aparecer como produto e objeto necessário das legalidades imanente-citeriores [immanent-diesseitigen], sendo que estas não explicavam sua subjetividade nem sua prática.
A teoria de Hegel-Marx sobre a autocriação do homem por seu próprio trabalho – que Gordon Childe condensou na excelente fórmula “man makes himself [o homem faz a si mesmo]” – consuma pela primeira vez a imanência da imagem de mundo, lança a base ideológica para uma ética imanente, cujo espírito já estava bem vivo nas concepções geniais de Aristóteles e Epicuro, Espinosa e Goethe. (Nesse contexto, a teoria da evolução no mundo [orgânico], a aproximação cada vez maior do surgimento da vida a partir da interação de legalidades físicas e químicas, tem um papel importante).
Para a estética, essa questão é de suma importância e, por isso, será tratada extensamente nas exposições concretas da presente obra. Não faria sentido antecipar aqui, de forma abreviada, os resultados dessas investigações, que só adquirem força de persuasão no desdobramento de todas as determinações pertinentes a elas. Apenas para não silenciar o ponto de vista do autor nem no prefácio, diremos que a coerência imanente, o “ser-posto-sobre-si-mesmo” de toda obra de arte autêntica – um tipo de reflexo que não tem analogia em outros campos das reações humanas ao mundo exterior –, por seu conteúdo, querendo ou não, representa uma confissão da imanência.
Por isso, a oposição de alegoria e símbolo, como Goethe percebeu de modo genial, é uma questão de ser ou não ser para a arte. Por essa razão, como mostraremos em capítulo próprio (Capítulo 16), a luta da arte para se libertar da tutela da religião é, ao mesmo tempo, um fato fundamental de sua origem e desdobramento. A gênese tem de mostrar justamente como a partir do vínculo natural e consciente do homem primitivo à transcendência, sem o qual seriam inimagináveis os estágios iniciais em qualquer campo, a arte gradativamente conquistou autonomia no reflexo da realidade, chegando a elaborá-la em uma forma peculiar. Trata-se, naturalmente, do desenvolvimento dos fatos estéticos objetivos, não do que pensaram sobre eles aqueles que os realizaram.
Precisamente na prática artística, a divergência entre ato e consciência desse ato é particularmente grande. Nesse ponto, ganha destaque marcante o lema de toda a nossa obra, emprestado de Marx: “Eles não o sabem, mas o fazem”. Trata-se, portanto, da estrutura categorial objetiva da obra de arte, que volta a transformar em imanência todo movimento da consciência rumo ao transcendente, que por sua natureza é muito frequente na história do gênero humano, na medida em que aparece como aquilo que é, ou seja, como parte integrante da vida humana imanente, como sintoma do seu respectivo ser propriamente assim [Geradesosein].
As reiteradas rejeições da arte e do princípio estético, desde Tertuliano até Kierkegaard, não são casuais; ao contrário, são o reconhecimento de sua essência real provenientes do campo de seus inimigos irredutíveis. Esta obra não se limita a registrar essas lutas necessárias, mas toma posições resolutas: a favor da arte, contra a religião, nos termos de uma grande tradição que vai de Epicuro até Marx e Lênin, passando por Goethe. O desdobramento, a separação e a síntese dialéticas, de determinações – tão multiformes, contraditórias, convergentes e divergentes – de objetividades e suas relações exigem um método próprio para sua exposição.
Ao fazer uma exposição breve dos princípios em que o método está baseado, de modo nenhum se pode dizer que o autor quer fazer no prefácio uma apologia do seu modo expositivo. Ninguém é capaz de identificar com mais clareza seus limites e falhas do que o autor. Ele deseja somente afirmar suas intenções; não lhe compete julgar onde as realizou adequadamente e onde falhou. Por isso, falaremos a seguir somente dos princípios. Estes estão enraizados na dialética materialista, cuja execução coerente em um campo tão vasto, que abrange coisas muito afastadas umas das outras, exige, antes de tudo, uma ruptura com os meios expositivos formais, baseados em definições e delimitações mecanicistas, em separações “puras” em seções. Transpondo-nos de um só golpe para o centro da questão, quando partimos do método das determinações em oposição ao das definições, retornamos aos fundamentos da realidade da dialética, à infinitude tanto extensiva quanto intensiva dos objetos e suas relações.
Toda tentativa de apreender essa infinitude pela via intelectual terá necessariamente insuficiências. Contudo, a definição fixa a própria parcialidade como algo definitivo e, por isso, obrigatoriamente violenta o caráter fundamental dos fenômenos. A determinação é considerada desde o início algo provisório, carente de complementação, algo cuja essência precisa ser complementada, formada continuamente e concretizada, isto é, quando, nesta obra, um objeto, uma relação de objetividades ou uma categoria são expostos por meio de sua determinação à luz da compreensibilidade e da conceituação, sempre temos em mente e pretendemos duas coisas: caracterizar o respectivo objeto de tal maneira que ele seja inequivocamente conhecido, sem, contudo, pretender que o ser conhecido nesse estágio se aplique à sua totalidade e que, por essa razão, se poderia parar por aí.
Só é possível aproximar-se gradativamente, passo a passo, do objeto, na medida em que esse objeto é analisado em diversos contextos, em diferentes relações com diversos outros objetos, na medida em que a determinação inicial não é invalidada por esses procedimentos – nesse caso, ela estaria errada –, mas, ao contrário, é enriquecida ininterruptamente ou, poderíamos dizer, se aproxima sempre mais da infinitude do objeto para o qual está voltada, com astúcia. Esse processo se desenrola nas mais diferentes dimensões da reprodução ideal da realidade e, por essa razão, é sempre considerado por princípio apenas relativamente concluído. Contudo, se essa dialética for corretamente executada, há um progresso crescente em termos de clareza e riqueza de sua determinação e nexo sistemático; portanto, é preciso diferenciar com precisão a recorrência da mesma determinação nas diferentes constelações e dimensões de uma simples repetição.
O progresso assim obtido não é apenas andar para a frente, penetrar de maneira cada vez mais profunda na essência dos objetos a serem apreendidos, mas – quando ocorre de modo realmente correto, de modo realmente dialético – iluminará com uma nova luz o caminho passado, o caminho já percorrido, tornando-o só então realmente viável em sentido mais profundo. Max Weber me escreveu certa vez, a propósito dos meus primeiros e muito insuficientes ensaios nesse sentido, dizendo que davam a impressão de um drama de Ibsen, cujo início só se compreende a partir do fim. Vi isso como uma compreensão refinada das minhas intenções, ainda que a minha produção na época não merecesse de modo algum um elogio desses. Espero que esta obra se preste melhor a ser considerada a realização de tal estilo de pensamento.
Por fim, peço ao leitor que me permita indicar sucintamente a história do surgimento da minha estética. Comecei como um crítico literário e ensaísta que buscou apoio teórico nas estéticas de Kant e mais tarde de Hegel. No inverno de 1911-1912, elaborei em Florença o primeiro plano de uma estética sistemática autônoma, na qual trabalhei de 1912 a 1914, em Heidelberg. Ainda penso com gratidão no benevolente interesse crítico que Ernst Bloch, Emil Lask e, sobretudo, Max Weber demonstraram pelo meu ensaio. O plano fracassou completamente. E aqui, quando me contraponho com veemência ao idealismo filosófico, essa crítica também vai contra as minhas tendências juvenis. De uma perspectiva externa, a irrupção da guerra interrompeu esse trabalho.
A Teoria do romance[v], que escrevi no primeiro ano da guerra, é mais voltada para os problemas da filosofia da história, dos quais os problemas estéticos seriam apenas sintomas, sinais. A partir de então, a ética, a história e a economia ocuparam cada vez mais o centro dos meus interesses. Tornei-me marxista e o decênio da minha atividade política foi ao mesmo tempo o período de discussão interna do marxismo, o período de sua real assimilação. Quando – em torno de 1930 – voltei a me ocupar intensivamente dos problemas da arte, uma estética sistemática era apenas uma perspectiva distante no meu horizonte. Só duas décadas mais tarde, no início dos anos 1950, pude pensar em realizar meu sonho juvenil, com uma visão de mundo e um método completamente diferentes, e executá-lo com conteúdos totalmente diferentes, com métodos radicalmente opostos.
*György Lukács (1885-1971) foi um filósofo e teórico marxista húngaro. Autor, entre outros livros, de História e consciência de classe (WMF Martins Fontes).
Referência
György Lukács. Estética: a peculiaridade do estético. Vol. 1. Tradução: Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo, Boitempo, 2023, 532 págs. [https://amzn.to/4b8bs5g]
Notas
[i] György Lukács, “Die Sickingendebatte zwischen Marx-Engels und Lassalle” em Karl Marx und Friedrich Engels als Literaturhistoriker (Berlim, [Aufbau,] 1948, 1952) [ed. bras.: “O debate sobre Sickingen entre Marx-Engels e Lassalle”, em Marx e Engels como historiadores da literatura, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2016, p. 17-62].
[ii] Franz Mehring, Gesammelte Schriften und Aufsätze (Berlim, [Universumbücherei,]
[iii] atualmente Gesammelte Schriften (Berlim, [Dietz,] 1960 e seg.); Die Lessing-Legende (Stuttgart, [Dietz,] 1898; Berlim, [Dietz,] 1953); Gueórgui Plekhánov, Kunst und Literatur (pref. M. Rosenthal, ed. e coment. Nikolai Fedorowitch Beltschikow, trad. Joseph Harhammer, Berlim, [Dietz,] 1955).
[iv] Mikhail Lifschitz, “Lenin o kul’ture i iskusstve”, Marksistko-Leninskoe Iskusstvoznanie, v. 2, 1932, p. 143 e seg.; idem, “Karl Marx und die Ästhetik”, Internationale Literatur, v. 2, 1933, p. 127 e seg.; idem, Marks i Engel’s ob iskusstve (ed. F. Šiller e M. Lifschitz, Moscou, 1933); idem, K. Marks i F. Engel’s, Ob iskusstve (ed. M. Lifschitz, Moscou- -Leningrado, 1937); Karl Marx e Friedrich Engels, Über Kunst und Literatur: Eine Sammlung aus ihren Schriften (ed. M. Lifschitz, pref. Fritz Erpenbeck, Berlim, [Dietz,] 1948); M. Lifschitz, The Philosophy of Art of Karl Marx ([trad. Ralph B. Winn,] Nova York, [Critics Group,] 1938); idem, Karl Marx und die Ästhetik (Dresden, [Verlag der Kunst,] 1960, Fundus-Bücher 3).
[v] György Lukács, Die Theorie des Romans: Ein geschichtsphilosophischer Versuch über die Formen der großen Epik (Berlim, [Cassirer,] 1920; reed. Neuwied, [Luchterhand,] 1963) [ed. bras.: A teoria do romance, trad. José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo, Editora 34/Duas Cidades, 2000].
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