De massa marginal a uberizados

Imagem: Jos Peñarán
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Por VANESSA MONTEIRO*

Por que invisibilizamos a racialização nos debates sobre o futuro do trabalho?

No ano primeiro ano da pandemia global de Covid-19 o mundo foi abalado pelo levante negro que irradiou do coração do imperialismo norte-americano para todo o mundo. Derrubando estátuas e erguendo um pensamento radicalmente antirracista, anticapitalista e anticolonial, o movimento Black Lives Matter massificou a discussão sobre racismo estrutural e sistêmico. Ainda em 2020, ocorre no Brasil a primeira paralisação nacional de entregadores de aplicativos, com alcance internacional.

O Breque dos APPs colocou estes trabalhadores invisíveis no centro dos noticiários e foi responsável por uma queda histórica na avaliação da maior plataforma de entregas do país, o iFood, indicando a comoção e apoio de grandes setores da sociedade civil à paralisação. Ambos acontecimentos parecem ter-nos pego de surpresa, apesar de jogarem luz sobre processos nada recentes e mais ainda sobre o futuro da luta de classes.

Nosso ponto de partida para o presente texto são características estruturais da atual época de deterioração do modo de produção capitalista e seus efeitos nos países periféricos. Se o debate sobre o desenvolvimento ou não das forças produtivas no capitalismo no interior do movimento operário data de mais de cem anos, a argumentação de que o capitalismo atualmente permite o desenvolvimento da humanidade é cada vez mais insustentável. A emergência climática é a faceta mais explícita desta encruzilhada, mas não a única. Nos países do sul global o avanço das forças destrutivas incorpora tanto a formação de uma massa marginal quanto a política de morte, ambas atingindo sobretudo os povos racializados.

O Brasil, já apontava Lélia Gonzalez no final dos anos 1970,[i] não deixa de ser uma espécie de modelo deste desenvolvimento desigual e combinado dos processos históricos de acumulação do capital, por combinar uma economia dependente e neocolonial – até hoje baseada na exportação de commodities – que traz formas produtivas anteriores com a formação de uma massa marginalizada dos processos hegemônicos. Lélia Gonzalez apontava, há mais de 50 anos, que a população negra brasileira tinha os mais baixos níveis de participação na força de trabalho.

O privilégio racial, mesmo no interior da classe trabalhadora, é um componente que leva com que efetivamente o que exista seja uma divisão racial do trabalho: “…não é por coincidência que a maioria quase absoluta da população negra brasileira faz parte da massa marginal crescente: desemprego aberto, ocupações “refúgio” em serviços puros, trabalho ocasional, ocupação intermitente e trabalho por temporada etc (…) trabalhando de cinquenta a cem dias por ano, sem as garantias das leis trabalhistas” (GONZALEZ, 1979).

Além disso, expunha como um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro na força de trabalho a sistemática perseguição, opressão e violências policiais, segundo os quais “todo negro é um marginal até prova em contrário”. Por fim, constata-se também o grave problema da situação do desemprego sobre a juventude negra.

Atualmente, somos um país de economia ainda dependente, em dinâmica de desindustrialização e contexto de estagnação econômica global. A crise global de 2008 segue como um marco do colapso do capitalismo financeirizado neoliberal, cujos traços estruturais são a tendência à precarização do trabalho, avanço da exploração e espoliação dos trabalhadores e a massificação do desemprego. O avanço das tecnologias desde então e o boom das startups de tecnologia não deixam de ser expressão também da reestruturação do capitalismo frente a esta crise, criando novas formas de exploração e de acúmulo do capital.[ii] A chegada da pandemia catalisou todos estes processos e ocasionou a generalização das condições degradantes de vida para amplas parcelas da população, ampliando o empobrecimento, a fome e a desigualdade que, em um país assentado no passado da colonização, tem classe e raça.

No Brasil, 73% da população negra perdeu renda durante a pandemia[iii] e está entre a ampla maioria dos que perderam o emprego em 2020, representando 71% do total.[iv] A ampliação em larga escala do que Lélia Gonzalez chamava de massa marginal manifesta-se nos mais de sete milhões de trabalhadores negros desalentados que saíram da força de trabalho ao final de 2020, comparado a menos de 3 milhões entre trabalhadores brancos. A desigualdade racial atravessa todas as camadas sociais do país, demonstrando a vigência do privilégio branco e a relativa autonomia que existe no fator raça como marcador social da diferença. Segundo pesquisa feita pelo Sebrae, empreendedores negros faturaram menos, tiveram maior perda de receita e estão entre a maioria dos inadimplentes comparado aos empreendedores brancos. Destes, as mulheres negras foram as mais afetadas.

A surpreendente queda no desemprego em 2022 na verdade tem por trás a rápida recuperação dos trabalhos informais após reabertura da economia, comparado aos empregos formais.[v] Ou seja, diminui o desemprego porque essa parcela antes fora do mercado de trabalho está se inserindo em trabalhos precários, com maiores jornadas e menores salários. Segundo dados da PNAD, a taxa de informalidade no Brasil representa 40,1% da população ocupada, totalizando mais de 38 milhões de brasileiros, um gigante social. Entre os trabalhadores negros, um a cada dois estão na informalidade. Assim, o contingente de jovens negros que trabalham como entregadores de aplicativos cresce a olhos vistos, sobretudo nas grandes capitais. Em São Paulo, segundo a Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo, realizada pela Aliança Bike, 71% dos entregadores são negros, trabalham 14h diariamente e recebem em média R$963 por mês.

A uberização, além das plataformas digitais, é uma tendência para o futuro laboral, um novo tipo de gestão e controle da força de trabalho, consolidando os modelos “just-in-time” e sob demanda[vi] mais como regra do que exceção. O processo de informalização, ou seja, a perda de formas estáveis, contratualmente estabelecidas e socialmente acordadas, não é exatamente uma novidade histórica para um país periférico como o Brasil. O que ocorre, no contexto de crise, é o alastramento – viral – dessa condição periférica; ao mesmo tempo em que piora ainda mais a vida daqueles que historicamente estiveram à margem.

Vale destacar que a crise social atrelada ao racismo estrutural é extremamente vantajosa e lucrativa para essas empresas. Segundo relatório da Euromonitor, o Brasil lidera o ranking mundial de demanda por delivery. As empresas-aplicativo estão no centro destes números, devido a baixa remuneração e desvalorização do valor da força de trabalho,[vii] barateando o preço final aos clientes. Desde que ocorreu o Breque dos APPs, não encontramos na imprensa divulgação dos valores exatos do lucro da iFood, que hegemoniza o mercado no Brasil concentrando mais 80% das vendas de delivery.[viii]

Porém, sabemos que até abril de 2020 o iFood teve crescimento em seu faturamento de 234%[ix] e crescimento de 205% em sua receita anual, segundo relatório do Prosus, acionista do iFood.[x] O grupo diz ainda que o setor de entregas tem um potencial de faturamento no mercado global de mais de US$330 bilhões até 2022 e a perspectiva é de lucrar ainda mais. Faz todo o sentido, com essas cifras, que o Prosus comemore em seu relatório: “Foi um ano extraordinário!”.

A condição do entregador que não tem direitos trabalhistas e previdenciários, que cumpre jornadas extenuantes para poder sobreviver e que é o mesmo corpo vítima da violência do Estado é inversamente proporcional aos lucros destas empresas. Não à toa o iFood tem em sua origem uma relação direta com grandes empresas que apoiaram o regime do apartheid na África do Sul.[xi] Como aponta o sociólogo Léo Vinicius Liberato “a história pesa sobre o presente, e o passado continua tomando outras formas, mesmo que em diferentes geografias”. E assim pesa sobre o presente todos os dias a segregação racial e o genocídio negro, que não se dissocia da invisibilização e desumanização com a qual empresas como o iFood lidam com os entregadores.

O Rio de Janeiro, nesse sentido, é um exemplo acabado sobre as relações entre segregação racial e violência de Estado em tempos de crise. Em Niterói, em novembro do ano passado, Elias de Lima Oliveira, que era entregador do iFood, foi assassinado pela polícia com um tiro na cabeça. Assim como foi Moïse, Jonathan, as vítimas da chacina do Jacarezinho e da Vila Cruzeiro, Elias foi alvo da mesma visão: a de que todo negro é marginal e por isso pode ser sumariamente executado.

Neoliberalismo, autoritarismo e necropolítica são parte de um mesmo projeto. Capitalismo e democracia nunca foram compatíveis. Falamos de um modo de produção edificado sobre o colonialismo, onde prevaleceram regimes autoritários e racialmente hierarquizados. Hoje, em meio à crise neoliberal o que vemos é um racismo cada vez mais violento, que se expressa tanto pelo aprofundamento da desigualdade social e a perpetuação dessa massa marginal composta por homens e mulheres negras, quanto na coerção e extermínio por aparato do estado ou privado. Do Black Lives Matter ao Breque dos APPs há um mesmo corpo racializado que hoje está no centro das principais formas de dominação para a exploração da força de trabalho e reprodução do capital.

Ainda assim, fomos pegos de surpresa e é com esse “por quê” que concluímos nossa reflexão. Se o centro das formas atuais de dominação do capitalismo neoliberal em crise estão nas margens – nos países do sul global, sobre os povos racializados, na forma de uberização do trabalho e política de extermínio – e se, como não poderia deixar de ser, partem daí as principais tendências da luta de classes em nosso tempo, por que nos falta – enquanto esquerda revolucionária – o programa e a obstinação por responder a estes problemas? O quanto não há por trás de certo desprezo pela organização dos precários o fetiche pelo operário industrial cada vez mais minoritário na composição da classe trabalhadora em nosso país?

O quanto não há por trás da ideia de que estes homens são “mais lumpens do que trabalhadores” uma assimilação da divisão racial do trabalho, que justifica com que o povo negro seja jogado à margem dos processos hegemônicos? Sob a ótica cega de que ocorrem lutas específicas deixamos de ver o potencial de novos mundos que pulsam vida e irrompem barreiras. Confiamos que, com humildade e olhar atento, o rastilho destes confrontos pode iluminar nossos caminhos.

*Vanessa Monteiro é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Notas


[i] GONZALEZ, Lélia. A juventude negra e a questão do desemprego. Apresentado no encontro anual da African Heritage Studies Association, com o título “Black Youth and Unemployment”. Em II Annual Meeting of The African Heritage Studies Association, Pittsburgh, 26-29 abr. 1979. Mimeografado.

[ii] SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataformas. Buenos Aires: Caja Negra Editora, 2018.

[iii] https://observatorio3setor.org.br/noticias/no-brasil-73-da-populacao-negra-perdeu-renda-durante-a-pandemia/

[iv] https://www.cut.org.br/noticias/racismo-estrutural-segrega-negros-no-mercado-de-trabalho-548e#:~:text=De%20acordo%20com%20os%20dados,menor%3A%202%2C7%20milh%C3%B5es.

[v] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60148613

[vi] ABÍLIO, L, C. Uberização: A era do trabalhador just-in-time? Revista de Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p.111-126, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3498.008 >

[vii] https://bahia.ba/entretenimento/brasil-lidera-ranking-de-maior-demanda-de-delivery-no-mundo/

[viii] https://tecnoblog.net/especiais/ifood-domina-o-delivery-no-brasil-mas-restaurantes-e-rivais-contam-como-vao-reagir/

[ix] https://www.snaq.co/post/ifood-entregando-resultado-faturamento-cresce-234

[x] https://www.prosus.com/news/investors-annual-reports/

[xi] https://diplomatique.org.br/ifood-a-heranca-do-apartheid-no-brasil/


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