De uma ciência para e não tanto sobre o negro

Sanaa Rashed, Sem título, 2016 , Território Palestino
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Por EDUARDO DE OLIVEIRA E OLIVEIRA*

O brasileiro negro é um herdeiro negro, com valores e uma cultura a proteger, não devendo por isto ser medido contra um grupo de normas estranhas e alheias a sua experiência e realidade

Eduardo de Oliveira e Oliveira

Não deixa der ser significativo que esta seja a 29ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, e que seja a primeira vez que se trata de negros (que eu saiba).[i] Que no Brasil existem negros e cientistas, é um fato consumado, do que deduzimos que não existem cientistas dispostos a se dedicar a seus estudos e problemas de maneira não apenas eminentemente acadêmica, mas sim de forma mais sistemática e, por que não, pragmática?

Primeiramente, uma definição neste estudo se impõe: a de se ver o negro brasileiro como um “brasileiro negro”, desfigurado do universo de atribuições herdadas do passado escravista, e que seja um trabalho de natureza histórica sobre sua identidade.

Sem valor social durante a escravidão, com a perda do único valor que lhe era atribuído, o econômico, é jogado dentro do sistema social no estatuto de liberto sem qualquer acumulação primitiva, fosse esta de capital ou escolar.

Sem um referencial nacional com que pudesse se identificar de maneira positiva, historicamente vinha se identificando com figuras africanas (Menelike),[ii] ou mesmo com problemas africanos, como as lutas anti-imperialistas, como a guerra da Etiópia com a Itália.[iii]

Estas atitudes eram comuns às gerações negras da primeira metade do século. Ultimamente, os negros vêm se identificando com as nações jovens libertas da África, e com seus líderes, com o que projetam seus problemas e identidade para além do continente.

Se do ponto de vista sociopolítico isto pode ter algum significado, com relação à identidade nacional, distancia-se de sua realidade e problemas mais imediatos. No afã de encontrar-se, na busca de sua identidade, não encontrando internamente os parâmetros necessários que possam dar sua dimensão; na busca de um equacionamento que lhe traga o equilíbrio desejado e necessário, volta-se para a África, à procura de valores com os quais possa identificar-se e integrar-se.

É este indivíduo, esta personalidade existente entre nós, complexa, problemática social e psicologicamente, que a ciência entre nós não só tem se ocupado pouco, como, assim mesmo, sem a necessária constância.

Nosso propósito com esta comunicação é chamar a atenção para a necessidade de se desenvolver estudos que tratem da realidade do negro brasileiro, mas que proponham soluções a esta realidade, que se faz problemática.

Visto isto, e enquanto cientistas sociais, perguntamos se estão as ciências sociais e, em particular, a sociologia, servindo aos propósitos que dizem ser seus fundamentos? (LADNER, 1973). Como a sociologia, assim como a história, a antropologia, a filosofia, existindo numa sociedade onde a cor, a etnia e a classe social são de primordial importância, poderá pretender uma neutralidade valorativa? Como poderá apresentar um conjunto de declarações e de premissas básicas, preocupações e prioridades que possam ser úteis àqueles que têm interesse não só em entender e aplicar esses conhecimentos (como definições básicas, conceitos e construções teóricas que utilizem as experiências e a história dos afro-brasileiros a seus estudos e trabalhos)? Como poderá contribuir para a compreensão da experiência de vida do negro, pelo próprio negro e seu destino humano?

As pesquisas realizadas, a nosso ver, não têm conduzido a resultados práticos. Um fator importante para o qual chamamos a atenção é que os estudos sobre o negro brasileiro têm como comparação outros grupos étnicos, mormente no que concerne ao binômio abolição/imigração, levando, por conseguinte, a comparações com italianos, alemães, poloneses etc.

Não é levado em consideração um fator primordial. Os negros vieram involuntariamente; foram escravizados e tiveram garantido uma cidadania de segunda classe, daí, a nosso ver, não podemos ser analisados da mesma forma que os europeus. Os negros foram levados a criar uma cultura forte, que existe, dentro ou na periferia da cultura principal, vivendo, pois, dentro de um quadro de pluralismo cultural.

O brasileiro negro é um herdeiro negro, com valores e uma cultura a proteger, não devendo por isto ser medido contra um grupo de normas estranhas e alheias a sua experiência e realidade. É necessário, pois, desenvolver um novo marco de referência que transcenda os limites dos conceitos criados pela sociologia geral (STAPLES, 1973). É necessário desenvolver e manter uma ofensiva intelectual total contra a falsa universalidade desses conceitos, sendo preciso, para isto, que se abandone esta estrutura parcial de referência, criando novos conceitos que levem, através do conhecimento, à libertação de um tipo de realidade em que nós, negros, nos encontramos hoje.

É necessário também lembrar que a sociologia eliminou a totalidade da existência negra de suas teorias mais amplas, exceto quando esta existência aparece como categoria desviante, além do fato de, tendo tomado as ciências naturais como modelo, se tem comprometido com um ideal de “objetividade”, objetividade esta identificável com neutralidade (como se estas duas instâncias fossem redutíveis entre si), confundindo, assim, julgamento de valor com afirmação de fato, e tornando a “objetividade” sinônimo de imparcialidade.

Não cogitava esta sociologia que os negros questionariam sua condição de “objetos”, de “categorias sociológicas manipuláveis”, para se tornarem “sujeitos ativos”, e que começam a questionar a pretensa objetividade desta sociologia.

O que entendemos então como uma ciência para e não sobre o negro?

A maioria dos trabalhos sobre negros trazem, a nosso ver, uma característica por demais dogmática, e isto pode ser verificado pela incidência no binômio raça/classe, tipo de reducionismo quase simplista que não define a natureza do problema além do estrito ponto de vista econômico.[iv]

Aqui abre-se uma questão, ainda não suficientemente abordada e levada avante entre nós, que se refere a algumas das limitações da teoria de Karl Marx com relação à perspectiva do negro.

Tomemos como ponto de partida algumas das reformulações teóricas feitas por Frantz Fanon. Cientista social negro, identificado com o Terceiro Mundo, e conhecedor de uma realidade semelhante à nossa, faz ele a seguinte pergunta: até que ponto, tentando provar que é universal, o marxismo também é etnocêntrico?

Frantz Fanon pretendeu transcender as limitações do marxismo levando em consideração a situação do negro (entre nós se tem desenvolvido estudos da compreensão de Marx mais de um ponto de vista althusseriano ou mesmo de Nicos Poulantzas, e isto, pensamos, em consequência também de nosso etnocentrismo e colonialismo cultural).

Numa breve sinopse pode-se sumarizar as polaridades de ambas as teorias:

“Marx eleva o proletariado como a classe revolucionária e subestima desdenhosamente o papel de outras classes e grupos. Frantz Fanon, por outro lado, eleva o campesinato e o lumpenproletariat;

Karl Marx focalizou as áreas urbanas, enquanto Frantz Fanon acentua as áreas rurais; Marx viu a Europa como estágio no qual o moderno drama do conflito seria trabalhado; Fanon, por sua vez, apontava para o Terceiro Mundo; Marx estava apenas parcialmente comprometido com o uso da violência revolucionária. Fanon vai à violência como uma necessidade absoluta no processo revolucionário; Marx enfatizou a fidelidade de classe e o conflito de classes; Fanon ressaltou e reconciliou os conflitos de classe e “raça”; Marx negou nacionalismo por internacionalismo. Fanon viu o nacionalismo como o degrau necessário para o internacionalismo.

Enquanto Marx confia na classe burguesa para o progressismo e “revolucionismo” na Europa, Frantz Fanon via na burguesia do Terceiro Mundo como inepta, imitativa e inútil, ponto que Franklin Frazier e Amilcar Cabral destacaram depois; Marx sustentou uma concepção quase totalitária da imediata situação pós-revolucionária. Frantz Fanon rejeitou isto em favor do completo comunalismo liberal” (FORSYTH, 1973, p. 227).

As análises tradicionais da sociologia devem ser seriamente questionadas em sua relevância com relação aos estudos sobre negros. Em relação a elas, devem ser propostos modelos alternativos de análises.

Outra característica dos estudos sobre o negro que nos chama a atenção é que eles parecem ser mais dirigidos para detectar seus aspectos negativos do que propriamente levar a uma compreensão da situação histórica social da vida destes grupos, pois, segundo os critérios mais geralmente adotados, eles são vistos como patológicos; daí a ênfase em estudos que, se não levam o título, pelo menos têm como premissa “a personalidade patológica dos negros”.

Este tipo de enfoque contribui para manter nos brancos uma falsa visão sobre o negro e seu grupo, inoculando na sociedade, pois, a tendência de ver o negro como um câncer patológico social (conforme ilustrações ao final da comunicação).

Conscientemente ou inconscientemente, o que tal ciência está propondo, no caso do negro, é a concomitância de duas moralidades que, através dela se mantêm em perfeito equilíbrio. Se, por um lado, o Brasil enfatiza a cultura negra; se tem como uma democracia racial e vende para o exterior a imagem de uma sociedade de “melting-pot” (diga-se, sociedade esta muito consciente de suas diferenças de cor); por outro lado, a personalidade negra é simplesmente vista como um produto de patologia social, nas perspectivas individual e grupal (ainda conforme ilustrações ao final da comunicação).

Para se estudar o negro, via de regra, ou se toma o conceito de marginalidade, com o que se estabelece, a nosso ver, um viés metodológico, qual seja: imagem negativa – negro; fator positivo – branco, ou se toma a norma padrão, modelo nem sempre bem esclarecido, tirado da classe média, obviamente, branca (MURRAY, 1973).

Do ponto de vista prático, isso implica na exploração do negro, do ponto de vista social, na sua exclusão. Sendo a norma aquela pré-estabelecida socialmente, o passível de desvio a esta norma dogmaticamente prescrita (e branca, insistimos) é o negro.

Vejamos o que isto pode conduzir em termos de raciocínio e as consequências daí decorrentes: padrão normal o certo – o branco; sendo negro, será… o negativo do branco; por conseguinte, será… menos do que o branco; sendo menos do que o branco; é menos do que normal, como ser humano; sendo menos do que normal como ser humano; não há razão porque não possa ser explorado.

É lógico que, com este esquema de configurações pré-estabelecido, necessariamente, o negro vai render menos. Tendo rendido menos humanamente (como resultado da exploração), tornar-se-á, em vista disto, mais explorável, por ser menos humano… e assim sucessivamente.

Do ponto de vista prático, e é isto o que nos preocupa, as consequências vão se refletir no entendimento que o negro tem de si mesmo, no trabalho, e na identificação com o subemprego, atributo a que é imediatamente remetido.

Ainda nos estudos sobre o negro, e também sobre a família negra, os alvos visados são o desemprego, a ilegitimidade, a “desorganização” familiar, a estrutura matriarcal da família, etc… sem realmente se estabelecer uma correlação entre estas variáveis, e o que realmente precisa ser estabilizado (se o emprego ou a família), para uma análise acurada do problema.

Em torno da família negra se tece uma abundância de mitos, distorções e estereótipos, sendo que a maioria das pesquisas sociológicas ou antropológicas conduzidas nesta área tem visto a família negra como uma entidade patológica, enfatizando sua fraqueza, em vez de sua força (BILLINGSLEY, 1973).

As análises são feitas ignorando a existência de uma subcultura negra, a força de uma comunidade negra e a própria família negra que permitiu à gente negra sobreviver num meio ambiente hostil, por mais de quatrocentos anos. Ora, o que se faz, afinal, ao estudar, analisar e descrever a patologia que alegadamente constitui a vida desses grupos é acentuar o comportamento etnocêntrico do pesquisador, que, na medida em que os estuda, faz de seus partícipes os responsáveis por aquela situação.

Jamais o sistema social é visto como a fonte desta perspectiva marginal. Estes estudos são, no fim das contas, sobre as relações raciais entre negros e brancos, e não propriamente sobre a natureza da vida do negro. Evidencia-se, assim, a necessidade de se conhecer o problema em sua natureza mais profunda.

A noção de desvio ou de marginalidade nada mais é do que a invenção de um grupo que usa seus próprios standards como o ideal segundo o qual os outros devem ser julgados. E aqui chamamos a atenção dos cientistas sociais para um fato nem sempre levado em consideração: de como a ciência social pode (independente de sua vontade) tornar-se um veículo de propaganda, para promover a imagem negativa da vida do negro, podendo conter todas as armadilhas superficiais de uma monografia “objetiva” de pesquisa científica, e ser aceita por professores e editores.

Os pesquisadores não se preocupam em trazer dados que mostrem em que medida a extensão do não cumprimento de certas atribuições, e mesmo certas leis, podem ser a causa de tais “anomalias”, como a exclusão do emprego por questões raciais. Estas pesquisas quase sempre citam o número ilegítimo de filhos, lares destruídos, falta de educação, crimes, drogas… Tratam do problema negro/desemprego sem levar em consideração o problema histórico que justificaria todo um programa voltado a ele. Repetimos: este tipo de abordagem, não apenas contribui, como reforça a imagem negativa do negro.

A inferência sem dúvida será: – Bem estar branco. Patologia negra.[v]

A criminalidade do negro é sempre vista como de alta taxa, sem se pensar que pode ser irrelevante, se comparada com seu standard de vida e o standard universal prescrito. O que tal concordância universal reflete, nos estudos sobre o negro, é muito menos indicativo da pretensa objetividade, percepção, validade e fidedignidade da metodologia empregada, do que uma preocupação quase histórico-cultural com a documentação sobre as falhas dos negros.

É preciso que os cientistas sociais saibam que podem fazer o papel de propagadores desse folclore e que a sua falta de envolvimento com as consequências pode ser confundida com “objetividade científica”.

Num estudo para o negro, a nosso ver, seria antes de tudo necessário estudar os problemas do negro ou do grupo assim chamado de maneira que se colocasse o seu destino num marco de referência mais amplo da experiência humana, e não as falências sociais do negro; e, no quadro particular da sociedade brasileira, que se tem como uma sociedade mestiça, ele precisa ser encarado como estando dentro de uma sociedade que tem consciência da cor de seus indivíduos (altamente consciente das diferenças de cor) e agindo mais facilmente sobre os não-brancos do que sobre os italianos, portugueses ou judeus.

Assim, torna-se impossível à sociologia manter uma neutralidade valorativa em suas abordagens.

É preciso que se desenvolvam noções de pluralismo cultural e que a experiência negra entre nós seja abordada de uma perspectiva da transculturação. Faz-se necessário, também, um trabalho dirigido, que provoque mudanças entre o negro e a sociedade brasileira (mudanças na organização social e econômica) com repercussão na comunidade e nas instituições negras.

Também se faz necessária uma revisão dos conceitos que foram entre nós mais desenvolvidos na abordagem do problema negro, os de integração e de assimilação. A integração precisa ser vista como envolvendo a aceitação dos negros como indivíduos na organização social e econômica, e a assimilação (que envolve a integração) compreendida nas mais profundas camadas da vida social organizada do país.

A ideia de integração tem sido mais voltada para os aspectos superficiais da crescente participação do negro na organização econômica, social e política da nação. Nenhuma atenção tem sido dada ao fato de que a integração requer a interação da vida organizada do negro com a sociedade mais ampla. E isto não se verifica.

Por exemplo: a nova classe média negra, recém aparecendo quantitativamente, se vê confrontada com os problemas de assimilação, e os intelectuais não lhe oferecem uma faceta compreensiva do seu problema, tendo em vista seu desejo de encontrar aceitação dentro dos padrões e ideais de sociedade branca.

Deveriam ser desenvolvidos estudos dos processos, de como os povos em uma sociedade chegam a colocar valores positivos em traços raciais, e de como os fatores políticos e econômicos influenciam essas valorações.

Às ciências sociais dever-se-ia atribuir um novo papel: o de criar uma ideologia para massas negras, traçando uma conexão entre esta ideologia e uma análise social para a sua luta de libertação. Prover à gente negra de condições para começar a construir um pensamento baseado em uma análise que conduza a um compromisso com sua busca de identidade.

Neste aspecto, no que concerne ao negro (fugindo às implicações pragmáticas), a sociologia tem lidado, principalmente, com dois modelos teóricos – um baseado em atitudes e outro em comportamento. A abordagem de atitude focaliza o preconceito – até o uso de generalizações, prejulgando um grupo de gente ou de instituições na orientação de ações contra eles. A abordagem comportamental é baseada em discriminação, tratamento diferencial de gente que pertence a certos grupos identificáveis. É este enfoque que geralmente passa por análise de problemas raciais.

No fundo, as duas abordagens são, realmente, “dois perfis diferentes da mesma cara, que é a face escondida do racismo”, adianta-nos certo cientista social, “as teorias como preconceito e discriminação, fazem com que se olhem as árvores, ignorando a natureza essencial da floresta” (ALKALIMAT, 1973, p. 176).[vi] Com isto, esse cientista quer nos remeter a um conceito que fale ao sistema total.

O conceito de “racismo” até agora não foi suficientemente desenvolvido entre nós. Através desse conceito, atinge-se a natureza essencial da ordem social como ela é percebida pelo negro. Enquanto os conceitos de preconceito e discriminação podem ser úteis ao nível analítico da teoria – porque são facilmente operacionáveis e quantificáveis – racismo é a descrição teórica mais apropriada do problema, precisamente por capturar o caráter qualitativo da opressão. Assim, a compreensão do problema escapa à teoria estática descritiva do preconceito e da discriminação.

A ciência social tem construído uma série de termos para explicar o negro e suas experiências. Tem pretendido muito mais classificar a realidade social do que explicar sua natureza essencial.

Nós advogamos por uma ciência social mais significativa e prática no que se refere à realidade do negro, para o que se fazem necessários requisitos como: (i) premissas básicas de uma nova perspectiva; (ii) um “focus” básico metodológico; (iii) uma direção ideológica e um corpo de conhecimentos que seja aplicado ao problema que o negro enfrenta (WALTERS, 1973).

As teorias sobre economia, educação e personalidade não podem ser as mesmas para a gente negra e a gente branca. O branco brasileiro nunca foi escravo. As teorias aplicáveis e seus modelos devem ser derivados das experiências dos negros; como elas são percebidas e reagidas pelos negros (SCOTT, 1973).

É preciso que o cientista analise em verdade e profundidade a estrutura de classe negra; a condição econômica negra; a psicologia da negritude, e traduza estas fórmulas para uma ação de vivência prática. O que os economistas devem fazer, por exemplo, é incluir o fator racial em suas análises econômicas.

Uma vez que a discriminação racial, mesmo tendo um papel fundamental na vida dos negros, fica fora das teorias e modelos econômicos, é fácil concluir que estas teorias não se aplicam, por conseguinte, aos negros. Se a dinâmica da discriminação for incluída nas teorias e modelos econômicos, uma nova economia deve emergir com diferentes tipos de relações entre oferta e procura.

A classe dominante não apenas erigiu barreiras econômicas no avanço da produtividade negra, mas também barreiras psicossociais e políticas.

Para a emergência de tal ciência será preciso que adotemos uma premissa que pressuponha uma descolonização das ciências sociais, o que pressupõe que se deva conseguir desta ciência que se identifique com os interesses dos grupos e das classes oprimidas. Robert Blauner clarifica este ponto, diz ele: “Na medida em que a pesquisa científica não existe no vazio, suas teorias e práticas refletem a estrutura e os valores da sociedade. O controle e a exploração, que são componentes genéticos da opressão social, existem na relação entre o pesquisador e o pesquisado, mesmo que suas manifestações possam ser sutis e mascaradas por ideologias profissionais. Os problemas da vida e necessidade dos grupos estudados, somente afetam o cientista indiretamente; raramente eles são o ponto de partida para a teoria e a pesquisa” (BLAUNER, 1973, p. 311).

Isto nos conduz a uma de nossas preocupações básicas no caso dos estudos do negro. O papel que pode representar o cientista identificado com sua etnia ou classe social, o que poderá trazer modificações e contribuições às teorias e métodos aprendidos da sociologia geral, baseados em sua própria experiência de vida como negro, e seu empenho para a liberação sócio-psico-econômica de sua gente, de todo o vestígio de opressão, incluindo, sem dúvida, a opressão da ciência social mais geral.

Daí invocarmos a necessidade da formação de intelectuais negros (ou mesmo brancos), devotados à tarefa de esclarecer a natureza da experiência negra – mas de dentro.

Voltando às nossas perguntas anteriores: (a) Está a sociologia servindo aos propósitos que dizem ser seus fundamentos? (b) São relevantes suas análises dos fenômenos sociais que estão afetando a vida dos negros? Para quem? (c) Pode continuar a sustentar que seu papel é simplesmente o de observar, classificar e analisar esses fenômenos, ao invés de se empenhar na mudança social?

Com relação aos estudos sobre o negro, Roger Bastide diz o seguinte: “O sábio que se debruça sobre os problemas afro-americanos encontra-se, pois, implicado, queira ou não, em um debate angustiante, pois é da solução que lhe será dada que sairá a América de amanhã. Ele deve tomar consciência de suas decisões – não para dissimular o que lhe parece a realidade – mas para perseguir, no decorrer de suas pesquisas, outra pesquisa, paralela, sobre ele mesmo; uma espécie de ‘autopsicanálise’ intelectual, e isto, seja ele branco ou negro. Estamos aqui no centro de um mundo alienado, onde o sábio se acha, contra a sua vontade, também alienado” (BASTIDE, 1974, p. 8).[vii]

Cabe a nós, como negros, denunciar que, enquanto aparecerem impunemente nos jornais da soi-disant capital científica da nação (São Paulo), anúncios como os aqui estampados, tanto as ciências sociais quanto aqueles com elas identificados, têm que rever seus critérios do que entendem por ciência e por cientista, honestidade e responsabilidade social.

Fazemos nossas as palavras de Paul Baran: “O genuíno intelectual possui pelo menos duas características: o desejo de dizer a verdade e a coragem de fazê-lo” (BARAN, 1969, p. 14). [viii]

*Eduardo de Oliveira e Oliveira (1924-1980), mestre em sociologia pela USP, foi músico, ativista e professor.

Referências


ALKALIMAT, Abd-l (Gerald McWorter). 1973. The ideology of black social science. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 173-189.

BARAN, Paul. 1969. The commitment of the intellectual. In. The longer view: essays toward a critique of political economy. New York: Monthly Review Press, p. 3-15.

BASTIDE, Roger. 1974. As américas negras: as civilizações africanas no mundo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

BILLINGSLEY, Andrew. 1973. Black families and white social science. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 431-450.

BLAUNER, Robert; WELLMAN, David. 1973. Toward the decolonization of social research. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 310-330.

FORSYTHE, Dennis. 1973. Radical sociology and blacks. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 213-233.

LADNER, Joyce. 1973. Introduction. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. xix-xxix.

MURRAY, Albert. 1973. White norms, black deviation. . In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 96-113.

SCOTT, Joseph. 1973. Black science and nation-building. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 289-309.

STAPLES, Robert. 1973. What is black sociology? Toward a sociology of black liberation. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 161-172.

WALTERS, Robert. 1973. Toward of definition of black social science. In. LADNER, Joyce (edit.). The death of white sociology: essays on race and culture. Baltimore: Black Classic Press, p. 190-212.

Notas


[i] [Nota do editor do texto Paulo Fernandes Silveira]: Este texto foi apresentado em 8 de julho de 1977, no simpósio “Brasil negro”, na 29ª SBPC. Foi publicado em 17 de julho de 1977, no caderno “Anexo”, do Diário do Paraná, n. 6644, p. 4-6, disponível em: https://memoria.bn.br/pdf/761672/per761672_1977_06644.pdf Equivocadamente, a foto que ilustra o artigo no jornal é de Clóvis Moura, que participou com Eduardo de Oliveira e Oliveira do simpósio “Brasil Negro”. Uma cópia original desse texto encontra-se na Coleção Eduardo de Oliveira e Oliveira, série produção intelectual, unidade especial de informação e memória, na Universidade Federal de São Carlos. Elaborado para ser uma comunicação oral, o texto não indica todas as referências bibliográficas utilizadas. Nessa edição, foram incluídas algumas referências da coletânea de textos: The death of white sociology: essays on race and culture, editada por Joyce Ladner, disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/8274600/mod_resource/content/1/Ladner%20-%20The%20death%20of%20white%20sociology.pdf

[ii] Dr. Seraubit, “Cuba”, O Exemplo, 3 de novembro de 1895, Ano III, n. 147, p. 2, disponível em: http://www.ppgecim.ulbra.br/oexemplo/acervo/18951103.pdf Artigo citado por: Fernando Henrique Cardoso, 1962. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, p. 304 (nota de rodapé).

[iii] “A Ehiópia é nosso coração”, O Clarim da Alvorada, 26 de julho de 1931, p. 4, disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/844918/per844918_1931_00034.pdf

[iv] Para compreensão e discussão do problema Raça/Classe, ver: Octavio Ianni, 1972. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Ver também: Oliver Cromwell Cox. 1948. Caste, class and race. New York: Doubleday and Company.

[v] Atualmente, a campanha de vacinação veiculada pela televisão, campanha oficial do governo, mostra os negros como germes malignos que são vencidos pelas defesas naturais brancas, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=koGSTTPuUiw

[vi] Nota do editor do texto. O artigo “The ideology of black social science” foi publicado, originalmente, em 1969, na revista: The Black Scholar, disponível em: https://www.alkalimat.org/426%20ALKALIMAT%20and%20McWORTER%20-%201969%20-%20THE%20IDEOLOGY%20OF%20BLACK%20SOCIAL%20SCIENCE.pdf

[vii] Nota do editor do texto. O livro As américas negras, de Roger Bastide, foi traduzido pelo próprio Eduardo de Oliveira e Oliveira.

[viii] Nota do editor do texto. O artigo “The commitment of the intelectual” foi publicado, originalmente, em 1961, na revista: Monthly Review: An Independent Socialist Magazine, disponível em: https://monthlyreview.org/1961/05/01/the-commitment-of-the-intellectual/


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