O trabalhador inconsciente

Paul Nash, Paisagem de um sonho, 1936-8
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Por SAMO TOMŠIC*

Aliar marxismo e psicanálise consiste no reconhecimento de que a crítica da economia política sempre exige uma crítica da economia libidinal e vice-versa

A frágil aliança entre marxismo e psicanálise

Na última década, os desenvolvimentos do capitalismo impulsionados pela crise desencadearam um interesse renovado nas interseções teóricas e políticas entre o marxismo e a psicanálise. O valor político da psicanálise continua atrelado ao fato de que Freud ressignificou significativamente a problemática da alienação com sua teoria do inconsciente. Ademais, ele elaborou uma complexa concepção desnaturalizada da sexualidade e forneceu insights abrangentes sobre o entrelaçamento entre o poder e o gozo.

O fio condutor de várias tentativas históricas e contemporâneas de aliar marxismo e psicanálise consiste, portanto, no reconhecimento de que a crítica da economia política sempre exige uma crítica da economia libidinal e vice-versa. No entanto, a interação entre marxismo e psicanálise sempre foi marcada pela desconfiança mútua, pela crítica e pelo distanciamento. É claro que trabalhar em sua aliança não implica que o método terapêutico de Freud, seus marcos conceituais e objetivos clínicos, estejam inteiramente em sintonia com as perspectivas da política emancipatória.

Ainda assim, há lições importantes a serem extraídas da noção de inconsciente e de outros conceitos freudianos fundamentais, que questionam ou criticam as concepções modernas de subjetividade em termos de consciência, autonomia, intencionalidade e liberdade. Outra perspectiva política decorre do foco de Freud na gênese social das “doenças mentais”, sua exposição do impacto traumático dos imperativos estruturais e dos processos sociais. Em seus escritos sobre cultura, Freud reconheceu abertamente na exploração, na guerra e na crise três características essenciais do capitalismo, as quais uma etiologia traumática da neurose deve levar em conta.

Mais uma vez, esse reconhecimento por si só não faz de Freud um pensador da emancipação, mas seu nome e obra são o local de um conflito filosófico, epistemológico e político, um terreno que a esquerda deveria se esforçar para reivindicar, em vez de descartar Freud como um obsoleto ou pensador reacionário. O paradigma da apropriação emancipatória de Freud continua sendo a obra de Juliet Mitchell (2000). Uma discussão mais ampla sobre o lugar da psicanálise na história do feminismo pode ser encontrada em Campbell (2016: 233-52).

O método analítico de Freud tem sido suspeito de ser uma terapia de classe e suas teorias um reflexo da ideologia burguesa (de acordo com essa crítica clichê, o complexo de Édipo descreve a repetidamente patologia da família burguesa, o papel central do pai expressa as tendências patriarcais de Freud etc.).

A rejeição ocasional de Freud ao marxismo, bem como sua insistência de que a psicanálise não promovia e nem equivalia a uma visão de mundo política, parece estar presa em clichês e superficialidades. Sua polêmica visava contrariar a politização da psicanálise que ocorria nas obras dos primeiros freudo-marxistas, como Wilhelm Reich, Otto Fenichel e Otto Gross. Esses autores, como se sabe, optaram por uma aliança entre a psicanálise e o materialismo dialético.[i]

Para além da questão das visões de mundo políticas, o freudo-marxismo contornava uma importante ambiguidade na forma como Freud concebia a ligação entre as forças libidinais (pulsões) e as estruturas sociais (cultura). Para Freud, a pulsão era, em última análise, um fenômeno limite, nem “psicológico” (cultural) nem “fisiológico” (natural). Isso implicava que a pulsão era distinta do instinto,[ii] uma presumível força natural, sobre a qual a cultura imporia vicissitudes restritivas (Triebschicksale) – destinos, nos quais a pulsão só poderia alcançar satisfação mediada, parcial ou substitutiva. Em sua convicção de que as forças libidinais humanas devem ser liberadas, os primeiros freudo-marxistas restringiram o alcance maior dos pontos de vista de Freud.

Mais importante ainda, para Freud não há impulso natural incorrupto fora de seus destinos culturais; o impulso é uma força que exige satisfação mediada. Como as forças libidinais humanas não conhecem um estado natural incorrupto, a tarefa clínica da psicanálise não pode consistir em sua liberação, mas na transformação do destino problemático da pulsão. Aqui, Freud se separa fortemente do freudo-marxismo.

A renovação freudo-marxista da oposição entre as pulsões e a cultura leva seus representantes a um equívoco sobre a noção de “repressão” (Verdrängung). Esse mecanismo mental em Freud designa o destino mais comum da pulsão, assim como a sua satisfação por meio de contornos e desvios, enquanto que, em pensadores como Reich, passou a significar em exclusivo “opressão”.[iii] Além disso, no contexto freudiano, a pulsão representa uma força conservadora que supostamente explica a resistência subjetiva e social compulsiva contra a mudança no modo de gozo prevalecente.[iv] Da perspectiva freudiana, o gozo, portanto, não pode ser um fator político subversivo; mais do que tudo, é uma forma de trabalho essencial para o sistema.

Em contraste com a “ala marxista” da primeira comunidade psicanalítica, a visão da Escola de Frankfurt sobre as implicações políticas da psicanálise parece mais comprometida com a letra do freudismo clássico e com os seus desenvolvimentos especulativos, a exemplo da pulsão de morte. Theodor W. Adorno escreveu de maneira notória: “Para a psicanálise nada é verdade exceto os exageros” (Adorno, 2005: 29). De fato, foi ampliando a significação dos curtos-circuitos, dos erros e das perturbações aparentemente menores e insignificantes no pensamento consciente que Freud acabou por desenvolver uma teoria inédita da subjetividade humana e da condição cultural do ser humano.

Herbert Marcuse foi indiscutivelmente aquele que levou mais longe o envolvimento da teoria crítica com a psicanálise freudiana. Em um primeiro momento, a sua tentativa de combinar Freud com o marxismo pode receber a crítica Michel Foucault (1976), ou seja, que ele caiu na “hipótese repressiva”. Trata-se da já mencionada convicção de que os mecanismos culturais em geral e o capitalismo em particular privam as forças libidinais de satisfação direta.

Um olhar mais atento às opiniões de Marcuse sobre as relações entre libido e estruturas sociais, no entanto, mostra que a sua posição é mais ambígua. No centro de sua crítica está a ligação entre prazer e exploração, que ele examina através da mudança do antigo regime de repressão à especificidade da repressão no capitalismo industrial avançado e em sua sociedade consumista “unidimensional”. A economia libidinal no interior do sistema estava agora organizada em torno do mecanismo da “dessublimação repressiva” (Marcuse, 1991: 56-83).[v]

Da perspectiva psicanalítica, o capitalismo aparece de fato como uma cultura de gozo imposto. E os desenvolvimentos de Marcuse já apontam para a ligação entre gozo compulsivo e extração de mais-valor ou mesmo para a conversão do gozo em mais-valor. Este último representaria então o gozo quantificado, sistêmico, específico da organização capitalista da economia social e libidinal. É aqui também que entra em cena a contribuição lacaniana para a renovação do freudo-marxismo.

Se o próprio Freud estava no centro das discussões freudo-marxistas, os debates contemporâneos sobre o significado político da psicanálise concentram-se amplamente em Lacan. Eis que a sua obra madura combinou Marx e Freud por meio de uma leitura de orientação epistemológica e filosófica que apontou existir uma homologia entre as duas realizações teóricas. Eis que uma problemática estrutural é compartilhada por eles; e ela atravessa a crítica da economia política e a psicanálise.[vi]

Assim como para Marx “os indivíduos são… personificações de categorias econômicas, portadores de relações de classe e interesses particulares” (Marx, 1990: 92), para Lacan eles são personificações de categorias simbólicas e relações discursivas; seus corpos sofredores são o terreno, onde a autonomia e a causalidade da ordem simbólica, inclusive a econômica, se manifestam como perturbação e ação compulsiva.

 

O trabalhador inconsciente – a teoria de Freud do trabalho do inconsciente

Parafraseando a noção de “poder-saber” de Foucault, pode-se dizer que a psicanálise, desde o início, circulou em torno do nexo “poder-gozo”. Embora os primeiros comentários de Freud sobre a condição cultural ainda tenham se dado sobre o pano de fundo da oposição entre natureza e cultura, ele logo percebeu que as relações de poder e os laços libidinais formam um continuum.[vii] Como Lacan observou ocasionalmente “o único discurso é… o discurso do gozo” (Lacan, 2006b: 78).

Em outras palavras, a produção de gozo não pode ser eliminada de nenhum sistema simbólico, ato de fala ou vínculo social. Abolir esse excedente problemático exigiria, em última análise, a dissolução completa da linguagem. Por esta razão, a psicanálise também não pode subscrever ideais políticos como a “libertação da sexualidade” ou a “abolição da alienação”, os quais são frequentemente associados às versões popularizadas do freudo-marxismo (justificadamente com Reich, menos com Marcuse).

O próprio capitalismo parece ter introduzido sua própria versão de tal liberação por meio da mercantilização universal. Assim, para repetir o enquadramento do problema feito por Marcuse e Lacan, criou o seu próprio regime de dessublimação repressiva e de gozo imposto. Não é preciso lembrar que esse desenvolvimento não teve quaisquer consequências desalienantes ou libertadoras para o sujeito. Talvez, por outro lado, tenha demonstrado existir uma incompatibilidade entre gozo e emancipação.

A etiologia das neuroses de Freud vem lembrar que as ordenações socioeconômicas desempenham um papel significativo na gênese das “doenças mentais”. Em escritos como Além do princípio do prazer (1920) e A civilização e os seus descontentes (1930), Freud insiste abertamente que a proliferação de neuroses traumáticas é um dano colateral inevitável do capitalismo. Por um lado, há a evidente ligação etiológica entre a neurose traumática e dois aspectos cruciais do capitalismo, a guerra e a crise; por outro lado, há outro aspecto e este que diz respeito à problemática ligada à organização capitalista do trabalho e do gozo; eles giram em torno do insaciável imperativo sistêmico da produção de mais-valor e em torno da injunção do superego ao gozo.[viii]

Vista sob esse prisma, a subjetividade traumatizada ou danificada representa de fato um “sintoma social”.[ix] Naturalmente, seria errado ver nas neuroses uma criação do capitalismo (Freud não chegou a essa conclusão). Mas o desenvolvimento econômico e tecnológico parece reforçar, em vez de reduzir, o traumatismo cultural.

Lembre-se da figura grotesca do “Deus protético” que Freud introduz em sua discussão sobre o mal-estar da cultura moderna.[x] Em contraste com o homem econômico do liberalismo e do neoliberalismo, a psicanálise acentua a fraqueza do sujeito humano, cujos órgãos artificiais mal disfarçam a sua natureza incompleta e alienada.

Lacan foi mais longe nessa direção crítica, lembrando que o ponto final da alienação permanece ancorado no caráter abstrato e praticamente infinito do trabalho: “é verdade, então, que o trabalho (dos sonhos, entre outros) livra-se do pensamento calculador e mesmo julgador. Ele sabe o que deve fazer. É assim que se pode defini-lo: pressupõe um “sujeito” que é Der Arbeiter” (Lacan, 2001: 551). Lacan evoca aqui o controverso conservador alemão Ernst Jünger e seu livro de 1932, O trabalhador, mas também visa Marx e o seu “o trabalhador ideal, transformado na flor da economia capitalista” (Lacan, 1990: 14).

A psicanálise se depara assim com a problemática do trabalho abstrato, categoria econômica que Lacan associa explicitamente à descrição freudiana do trabalho inconsciente em A Interpretação dos Sonhos (1900). Como um ser estrutural – ou seja, como personificação de uma abstração econômica – o trabalhador não pensa, julga ou calcula: em outras palavras, o trabalho abstrato remete-se ao pensamento inconsciente. Embora o “trabalhador ideal” não exista, Lacan explica o modo problemático de existência do proletário, um corpo trabalhador consumido por abstrações econômicas e por imperativos sistêmicos: “há apenas um sintoma social – cada indivíduo é realmente um proletário” (Lacan, 2011: 18).

O proletário se remete ao sujeito do inconsciente, ou, para ser mais preciso, ao sujeito do inconsciente capitalista, já que Freud e Lacan não postulam a existência de um inconsciente transistórico ou transcultural (ao contrário de Carl Gustav Jung). Do ponto de vista de Lacan, a figura do proletariado de Marx e a figura do neurótico de Freud parecem compartilhar um destino comum. E o fazem à medida que trabalham compulsivamente, tanto física quanto mentalmente, para satisfazer um sistema simbólico explorador, que consome toda a sua existência.

Segundo Marx, a organização capitalista do trabalho social em torno da “produção pela produção” (Marx, 1990: 742) e seu imperativo de aumento constante do valor confrontam o sujeito trabalhador com uma tarefa virtualmente infinita e com uma demanda realmente insaciável. O condicionamento mútuo da produção pela produção e do trabalho abstrato – pode-se dizer, o trabalho pelo trabalho – impõe ao sujeito trabalhador uma ação compulsiva das mais problemáticas, que o leva à exaustão. Em sua análise da produção, Marx de fato se deparou com um “parasitismo do infinito sobre o finito” (Milner, 1995: 67).[xi] Em Freud está em jogo uma problemática homológica, mas para avaliar o alcance dessa homologia, é necessário dar todo o peso à noção de Arbeit (trabalho, labor).

Este último é de fato um conceito subestimado em Freud, ofuscado por conceitos fundamentais mais evidentes como inconsciente, pulsão ou prazer. No entanto, ao adotar a noção de trabalho, Freud assume uma dupla tese filosófica, que ressoa bem ao termo de Marx. Primeiro, a equação do pensamento e do trabalho: em A Interpretação dos Sonhos e em outras obras fundadoras, as operações intelectuais, como a condensação e o deslocamento ou a visualização do material do pensamento, são descritas como trabalho produtivo. O objetivo desses processos consiste em produzir prazer pelo prazer. Isso implica que, em certo nível, o pensamento não persegue mais os ideais intelectuais formulados pela filosofia ao longo da história (cognição, produção de conhecimento, desvelamento da verdade etc.). Pensar envolve uma atividade que não serve para nada:

Nossas atividades mentais buscam um objetivo útil ou um ganho direto de prazer. No primeiro caso, estamos lidando com julgamentos intelectuais, preparativos para a ação ou para a transmissão de informações a outras pessoas. Neste segundo caso, descrevemos essas atividades como jogo ou fantasia. O que é útil é em si mesmo – tal como se sabe – apenas um caminho tortuoso para a satisfação prazerosa. (Freud, 2001: 127)[xii]

O objetivo psicanalítico não é delimitar as atividades intelectuais úteis das fantasias inúteis, mas mostrar as consequências amplas de seu entrelaçamento ou indistinção, a mobilização do pensamento – isto é, do trabalho mental – e, mais geralmente, do discurso para produzir mais-gozo. Essa produção é imanente a todo processo de pensamento, ou, como Lacan chegou a dizer, pensamento é gozo. Ambos os aspectos do pensamento que Freud menciona na citação acima são tão inseparáveis e, ao mesmo tempo, tão distintos quanto o valor de uso e o valor de troca das mercadorias. A principal contribuição crítica da psicanálise para a crítica da economia política pode, assim, ser reduzida ao reconhecimento do vínculo entre pensamento, gozo e trabalho, sustentado pelo reconhecimento de seu caráter compulsivo.

Uma questão mais geral emerge aqui: o que fazer com o fato de Freud ter usado repetidamente metáforas e um vocabulário econômico para explicar o inconsciente e a sexualidade – na medida em que as características da economia libidinal se tornam difíceis de distinguir das características da economia capitalista? Freud descobriu na produção do mais-gozo um problema crucial, que está diretamente ligado ao que em alemão se chama Verausgabung, consumo no sentido econômico e esgotamento no sentido psicológico. Quanto mais as atividades mentais são canalizadas por meio da demanda pulsional de mais-gozo, mais o aparato mental do sujeito precisa sustentar o processo laborioso que é o pensamento como tal.

A centralidade do trabalho na obra teórica e clínica de Freud chama a atenção para algo como a exploração libidinal, que se manifesta como consumo e esgotamento da subjetividade. Dito de outra forma, Freud liga diretamente a produção de mais-gozo à exploração do trabalho. Se reconhecermos no vocabulário econômico de Freud mais do que mera retórica ou metafórica, faz sentido concluir que sua obra propõe uma teoria laboral do gozo. Tanto o freudo-marxismo quanto Lacan partem do pressuposto de que a proliferação de termos econômicos na obra de Freud não é coincidência e que o vocabulário econômico de Freud deve ser interpretado por meio de Marx.

A tese de que o trabalho inconsciente e o gozo formam dois lados do mesmo processo produtivo na vida mental vai contra a concepção “homeostática” do prazer que predominou na história da filosofia europeia desde Aristóteles. Na Ética a Nicômaco,[xiii]Aristóteles equiparou o prazer ao estado de repouso, no qual presumivelmente não ocorre nenhuma excitação corporal ou mental. Daí concebeu um estado de homeostase, visto como um ideal, ao qual os seres humanos devem aspirar e conduzir suas ações.

Aristóteles descreve o motor imóvel divino como o exemplo máximo de um estado tão prazeroso que sente qualquer falta ou exigência de satisfação. O prazer humano também provavelmente tende a essa homeostase ideal, quando os humanos agem de acordo com a justa medida. No cenário ético de Aristóteles, o prazer é entendido como um afeto que acompanha a satisfação das necessidades e sinaliza a renovação da homeostase, a diminuição da tensão provocada pela manifestação de uma necessidade fisiológica ou de uma demanda simbólica. A problemática do gozo excedente e do caráter compulsivo do trabalho inconsciente claramente não têm lugar nesse cenário.

Freud concentrou-se em duas tendências no aparelho mental, desejo e pulsão, que contradizem diretamente a suposição aristotélica da justa medida e que explicam a tensão constante no aparelho mental, o processo ininterrupto de trabalho inconsciente e o esforço das atividades mentais para a produção – não simplesmente de prazer, mas de aumento de prazer. O movimento do desejo é sustentado pela metonímia da falta; todo objeto alcançado vem como decepção e fracasso e não pode cumprir a tarefa de satisfazer o desejo.

O movimento da pulsão, por outro lado, é sustentado pela metáfora do excedente; aqui está em jogo uma fixação objetal, o objeto de satisfação foi encontrado e a pulsão não se farta dele, exigindo sempre mais, mas de uma maneira totalmente diferente do desejo. Para o desejo, todo objeto vem com uma falta, que direciona o desejo para outro objeto, enquanto para a pulsão há apenas um objeto excedente, que representa a materialização última do gozo. Desejo e impulso cada um demonstra à sua maneira a impossibilidade e o status fictício da homeostase ideal; e, além disso, em contraste com a justa medida aristotélica, cada um deles traça dois cenários, que demonstram a desmedida do prazer.

*Samo Tomsic é pesquisador do laboratório interdisciplinar Bild Wissen Gestaltung, na Universidade de Humboldt, em Berlin. Autor, entre outros livros, de The capitalism unconscius: Marx and Lacan (Verso).

Tradução: Eleutério Prado.

 

Notas


[i] O relato mais recente das (des)alianças históricas entre psicanálise e marxismo pode ser encontrado em Pavon Cuellar (2017). A crítica de Freud ao marxismo aparece no capítulo final de suas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (Freud, 2001, vol. 22: 176-182). Ver também Dolar (2008: 15–29).

[ii] A tradução inglesa do termo Trieb em alemão contém esse equívoco. Sustenta, assim, a impressão de que a doutrina freudiana da pulsão era naturalista e biológica. O próprio Freud muitas vezes recorreu a metáforas biológicas para fornecer uma “base científica” de sua noção central. Ainda assim, ele nunca abandonou a ideia de que a pulsão representa um fenômeno fronteiriço entre o fisiológico e o psicológico.

[iii] Para Freud, a repressão contém um redobramento interno, que a distingue da opressão simples: “é um erro enfatizar apenas a repulsão, que opera a partir da direção do consciente sobre o que deve ser reprimido; tão importante quanto é a atração exercida pelo que foi originalmente reprimido sobre tudo com o qual pode estabelecer uma conexão” (Freud, 2001, vol. 14: 79). Enquanto a opressão proíbe a satisfação, a repressão a constitui por adiamento, deslocamento ou mediação. Lacan trouxe essa nuance ao ponto quando traduziu o recalque como “renúncia ao gozo” (Lacan, 2006c: 17-19, 109-10), uma renúncia que visa obter mais-gozo. Assim, para Lacan essa renúncia fundamenta o que ele chama de “moral capitalista”.

[iv] A controversa noção de pulsão de morte representa a expressão máxima do caráter conservador das pulsões. Vale lembrar que o fenômeno que levou Freud a supor sua existência foi a repetição compulsiva. Os primeiros freudo-marxistas rejeitaram essa noção. Ver, por exemplo, Reich (1932: 303-51) e Fenichel (1985: 361-71). Para uma apresentação mais atualizada da pulsão de morte, veja Zupancic (2017: 94-106).

[v] A ideia de dessublimação repressiva de Marcuse aproxima-se da redução lacaniana do superego ao imperativo do gozo (Lacan, 2006a: 648-9; 1999: 3).

[vi] Um relato sistemático da relação de Lacan com Marx pode ser encontrado na obra de Slavoj Žižek (1989: 11-53; 2017: 149-223), bem como em minha própria tentativa (Tomšic, 2015). Para uma visão lacaniana mais ampla da ligação entre prazer e capitalismo, ver também McGowan (2016).

[vii] A esse respeito, o famoso ensaio de Freud “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921) permanece representativo de seu exame crítico do vínculo entre economia libidinal e poder social. O texto serviu como principal fonte para a análise do fascismo pela Escola de Frankfurt. Ver, por exemplo, Adorno (2003: 408-33). Para um comentário contundente da relação entre o indivíduo e o grupo em Freud, ver Copjec (2014).

[viii] Aqui aparece a tese de Lacan de que mais-valor e mais-gozar são homológicas, ou que no capitalismo a fruição obtém sua expressão socioeconômica no mais-valor. Assim, ele diz: “Mehrwert é Marxlust, o mais-gozar de Marx… é o mais-valor como causa do desejo, do qual uma economia fez o seu princípio: o da produção extensiva e, portanto, insaciável da falta de gozo” (Lacan, 2001: 435).

[ix] Segundo Lacan, a categoria de sintoma social foi inventada por Marx; eis que ele teria reconhecido o proletariado como sintoma do capitalismo (Lacan, 2006a: 194).

[x] “O homem tornou-se, por assim dizer, uma espécie de Deus protético. Quando ele coloca todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; mas esses órgãos não cresceram nele e às vezes ainda lhe causam muitos problemas” (Freud, 2001, vol. 21: 91-2).

[xi] Para antecipar desenvolvimentos posteriores, para conceituar esse parasitismo problemático, Marx introduz a noção de pulsão, que aproxima seus desenvolvimentos do exame crítico de Freud dos meandros do prazer.

[xii] Freud usa o termo Lustgewinn, que significa literalmente prazer-ganho. Sobre esse pano de fundo, Lacan pode propor a tradução “plus-de-jouir” (mais-gozo ou mais-gozar) para, em sequência, traçar a homologia entre o mais-gozo com o mais-valor.

[xiii] Os seguintes desenvolvimentos referem-se notavelmente ao Livro X da Ética a Nicômaco (Aristóteles, 1995: 1852-67).

 

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