Uma batalha perdida

Imagem: Kelly
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Por JOSÉ DIRCEU*

A esquerda rendeu-se à política da direita ao votar a favor das chamadas “saidinhas” dos presos, mesmo tendo grande parte da grande mídia contrária ao projeto de lei

Recebi apreensivo o voto da bancada do PT, incluindo a maioria de deputados federais e senadores do partido, contra as chamadas “saidinhas” dos presos. Explico a razão: trata-se de uma pauta da direita conservadora, que também defende a máxima de que bandido bom é bandido morto. Não por acaso o secretário de Segurança Pública de São Paulo, o deputado licenciado Guilherme Derrite, voltou à Câmara para relatar o projeto de lei que veio do Senado já aprovado. Mesmo com grande parte da mídia contrária ao projeto de lei, taxando-o de demagogia populista, as esquerdas votaram como a direita – a favor do fim das “saidinhas”.

Mais grave é essa votação ter ocorrido sem debate ou discussão do que realmente importa: o sistema penitenciário brasileiro e a legislação penal. É pública e notória a situação de superlotação e degradação do nosso sistema penitenciário, um problema reconhecido inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como um estado de coisas inconstitucional.

Sem comprometimento do Estado e com omissão da sociedade na busca de soluções dessa tragédia anunciada, os números se mostram alarmantes. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem em torno de 832 mil presos, sendo 44,5% provisórios sem julgamento. Cerca de 30% são cidadãos presos indevidamente, segundo o Conselho Nacional de Justiça. De 2005 e 2022, a população carcerária cresceu 215%. Hoje, 70% dela é composta por pessoas negras e jovens com idade entre 18 e 34 anos.

O Brasil tem penitenciárias que funcionam 54,9% acima de sua capacidade. Seis a cada dez mortes nos presídios ocorrem por doenças. Sem política de reinserção do apenado e com ausência total de infraestrutura e de profissionais, a reincidência dos egressos do sistema penitenciário é de 21% no primeiro ano e 38,9% no quinto ano.

Na realidade, em nosso sistema não há ofertas nem de emprego nem de estudo para a imensa maioria dos presos, nem mesmo para os não condenados ou para aqueles que cometeram crimes mais leves. Sem desconsiderar o fato de que há nas penitenciárias uma mistura de presos, independentemente do grau de perigosidade, de crimes cometidos e de penas de prisão, criando condições ideais para o recrutamento pelas organizações criminosas.

Tudo isso é agravado pelo fato de que mais da metade dos condenados por tráfico de drogas são, na verdade, usuários que, por alguma razão – como dívidas, ameaça ou chantagem –, colaboraram com o narcotráfico. São pessoas com família, profissão, muitas vezes casa própria, e condenadas a penas elevadas de prisão.

Com exceções dos presídios de segurança máxima do governo federal, é o crime organizado – do PCC ao Comando Vermelho e outras organizações criminosas – que controla grande parte do sistema penitenciário. Os laços e braços dessas organizações hoje se estendem aos poderes públicos e às instituições, ajudando a eleger políticos e exercendo influência em governos, como já vimos no passado em estados como Espírito Santo e Acre.

Não é de hoje que a demagogia e a desinformação alimentam políticas ineficazes e que, pelo contrário, fortalecem o crime organizado. Sem esquecer que há 28 mil foragidos e 302 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento.

Por outro lado, há uma gritaria histérica contra privilégios e regalias dos presos, uma campanha intensa segundo a qual os presos viveriam em hotéis “cinco estrelas”, quando a realidade é bem diversa: são as próprias famílias que fornecem roupa, material de higiene pessoal e de limpeza para as celas ou lavagem de roupas, além de alimentos para os presos. A campanha levou até mesmo ao fechamento das cantinas que existiam no interior dos presídios e à proibição do direito de receber 120 reais por mês das famílias para a compra de produtos básicos nestes pequenos estabelecimentos.

A tese dos “privilégios” foi incorporada inclusive por setores da mídia, a despeito dos presídios superlotados, da maioria degradada e da falta de agentes de segurança e de servidores. Mesmo os funcionários e médicos do setor de saúde e os educadores e técnicos do setor de educação são cedidos pelos governos estaduais.

Vimos e assistimos as cenas de horror dantesco nas nossas penitenciárias, como nos exemplos do Amazonas e em estados do Nordeste, com cenas de presos decapitados, execuções e disputas de poder entre organizações criminosas no controle das penitenciárias. É uma prova viva da urgente e necessária reforma de todo sistema que hoje é fonte de recrutamento e poder das organizações criminosas, agora também de caráter transnacional, como vimos em Roraima e na fronteira com o Paraguai, onde crescem pela ausência do Estado.

As famílias dos presos acabam sendo vítimas da pressão e chantagem dessas organizações criminosas e são recrutadas para apoiá-las ou mesmo fazer parte de sua rede de informantes ou logística – sem falar do surgimento das milícias, constituídas por ex-policiais que competem e disputam poder e áreas com o narcotráfico tradicional.

Diante desse quadro, qual a solução apresentada? Acabar com as cinco saídas anuais para visitar a família em feriado, estudar fora ou participar de atividades de ressocialização. Essa foi a primeira medida aprovada, mas logo veremos a proposta de acabar com a progressão penal e os indultos, como na prática fez o ex-presidente Jair Bolsonaro, que só indultou policiais condenados e seus apaniguados como Daniel Silveira.

A lei é clara: as saídas só são garantidas aos presos sob certas condições: regime semiaberto, 1/6 da pena cumprida se réu primário, ou 1/4 se reincidente, bom comportamento, e excluídos aqueles que cometeram os crimes hediondos ou com ameaça grave e violência. Mas ao invés de se discutir uma melhora do sistema penitenciário, como evitar a fuga de presos que não voltam da saída, ou até mesmo debater uma possível restrição do direito aos presos por narcotráfico, a esquerda omitiu-se e preferiu apoiar o fim as saídas, salvo para cursos supletivos, profissionalizante ou do ensino médio e superior. Outra questão grave foi a aprovação da exigência de exame criminológico para os presos terem direito às saídas e progressão penal, ou seja, a passagem do regime fechado para o semiaberto e deste para o aberto. Inexiste condição real para esse exame ser feito pela simples razão de que não há profissionais no sistema e condições materiais para realizá-los.

A gravidade do voto da esquerda está na rendição à política da direita que conhecemos há décadas e que não deu resultado na redução da criminalidade. Citemos desde a polícia mineira, o esquadrão da morte, a Rota na Rua, até as execuções na Operação Escudo, promovidas pelo governador de São Paulo Tarcísio de Freitas – que, na prática, funcionam como pena de morte, vedada pela Constituição Federal. Como vimos na Tropa de Elite da Polícia Militar fluminense, a liberação de todo tipo de violência, tortura e execuções sumárias criaram condições de impunidade e um caminho seguro para que a corrupção e o crime organizado penetrassem nas polícias e as dominasse. Sem falar na cada vez mais clara decisão de transformar as PMs, começando pela de São Paulo, em milícia bolsonarista.

O covarde e vil assassinato da vereadora Marielle Franco revela as relações de ex-policiais com o crime organizado e a política. A tentativa de golpe de 8 de janeiro mostra a que ponto chegou o envolvimento de setores militares com a violação da Constituição Federal, o que seria o suficiente para termos coragem de enfrentar o debate e o desgaste em setores da sociedade que são favoráveis à pena de morte, à execução sumária de criminosos ou ao linchamento. Fica o alerta: não seria um objetivo da direita bolsonarista criar um clima de rebelião e insatisfação nos presídios e depois culpar o governo federal pelas consequências geralmente trágicas dessas rebeliões?

Nada indica que o fim das “saidinhas” mudará o cenário de falência do sistema penitenciário. A questão que se coloca é: seremos omissos ou favoráveis às soluções como as do presidente de El Salvador, Nayib Bukele? Até onde cederemos? Como vamos mudar a compreensão de parcelas de nossa sociedade sem enfrentar o debate público e, ainda mais grave, sem apresentar uma alternativa de governo para reforma do sistema penitenciário?

*José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo. Autor, entre outros livros, de Memórias – vol. 1 (Geração editorial). [https://amzn.to/3x3kpxl]


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