A questão cubana e a esquerda no Brasil

José Clemente Orozco (1883–1949), On the Road, 1929.
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Por RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO*

Ao não compreender o que está em jogo em Cuba, parte da esquerda brasileira se declara abertamente antidemocrática

Nos últimos dias, muito tem sido dito sobre a questão dos protestos contra o governo cubano. A questão é de fato complexa, envolvendo o embargo americano, o minguado auxílio externo das “potências” socialistas, a quebra da economia com a pandemia, as limitações do sistema de saúde pública para lidar com a covid-19, a morte ou aposentadoria da geração da revolução. Por isso mesmo, as manifestações reuniram um público diverso, que vai desde os apoiadores de uma “invasão” e “anexação” americana, passando pelos aposentados e assalariados que ganham em moeda cubana, enquanto a economia vai adotando o padrão dólar, e os jovens insatisfeitos com a falta de perspectivas.

Mas há um setor das manifestações que é particularmente importante para definir o que está em jogo. São intelectuais, artistas e professores universitários (em parte, evidentemente), que questionam os métodos da ditadura cubana: repressão à oposição, com prisão e tortura a críticos do regime, censura à produção artística, que deve passar pelo aval do governo, e absoluta limitação do acesso à informação, monopolizada até hoje pelo órgão de comunicação do partido comunista, o Granma.

O que está em jogo em Cuba é o fato de que a precária abertura econômica, que favorece turistas e empresários locais que lucram com o turismo, mas mantém em situação de precariedade material a grande massa da população, não foi acompanhada de um mínimo de abertura política. Ao contrário, na última década a repressão política aumentou, e em 2018 a censura foi o que motivou a crítica cada vez maior da classe artística.

Padura demonstra a gravidade do problema, desde sua obra O Homem que Amava os Cachorros, que faz um duro retrato da ditadura cubana, do ponto de vista da liberdade de expressão.

Lamentavelmente, parte importante da esquerda brasileira é negacionista quanto aos problemas do regime cubano. A qualquer crítica, alegam que, ou nenhuma democracia liberal funciona, ou Cuba é sim democrática, pois há eleições. Não se dão conta que o que está essencialmente em jogo quando se trata do debate sobre o regime cubano é o cerceamento das liberdades políticas e dos direitos e garantias fundamentais. Lula, Dilma, e o PT em nota oficial, dão um aval ao regime cubano que só pode ser compreendido pelas relações de compromisso estabelecidas entre o PC Cubano e líderes da esquerda brasileira na época da ditadura militar, que para viabilizar a luta armada contaram com apoio logístico e financeiro do governo cubano.

Manter o apoio ao regime cubano, sem dizer uma linha sobre o problema dos direitos e garantias fundamentais em Cuba, é de uma indignidade que só se justifica por resquícios do pensamento stalinista, que submete os meios a supostos fins, e tem como resultado a criação de uma casta burocrática, associada com comandantes militares, que mantém o controle de forma autoritária, em um sistema de partido único e controle duro sobre a circulação da informação e da opinião.

Ao não compreender o que está em jogo em Cuba, parte da esquerda brasileira se declara abertamente antidemocrática, ao menosprezar a falta de garantia dos direitos de primeira geração. Ao se aferrar a um dogma da guerra-fria, parte da esquerda demonstra sua incapacidade para entender e enfrentar Jair Bolsonaro e seu projeto autoritário de poder no Brasil, que paradoxalmente se espelha em regimes como o venezuelano, com controle político por meio da cooptação de lideranças militares e paulatina supressão da divisão de poderes, com a submissão do judiciário e do legislativo ao poder executivo, para então assegurar a impunidade do desvio de recursos para uma casta política autoritária.

Ou enfrenta os seus fantasmas, ou a esquerda brasileira estará fora de qualquer possibilidade de ter protagonismo no enfrentamento ao bolsonarismo, que não significa apenas derrotar Bolsonaro eleitoralmente, mas afirmar a democracia, a liberdade de expressão e continuar lutando pela ampliação das garantias efetivas aos direitos humanos no Brasil.

*Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, sociólogo, é professor da PUC-RS.

 

 

 

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