Menos é mais – a infomania que se abate sobre nós

Imagem: Pascal Küffer
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Por MARILIA PACHECO FIORILLO*

O universo digital tornou-se o paraíso dos pesadelos e, na maioria das vezes, um culto à estupidez

1.

O universo digital é o paraíso dos pesadelos: a epidemia de opioides (como fentanil) que hoje mata mais pessoas que algumas guerras só tem um paralelo, igualmente mortífero: o patológico vício em redes digitais.

Esta é a opinião do filósofo coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han, que em seu livro Não-coisas -reviravoltas no mundo da vida, alerta para o insidioso e altíssimo risco de que o universo digital destrua a humanidade mais rápido que a crise climática, por exemplo. Para Byung-Chul Han, vivemos sobrecarregados e esgotados por zarabatanas de informações, a maioria mentirosa, o que nos transforma em zumbis desorientados e narcisistas. O mundo tangível se confunde com o mundo virtual, gerando uma sociedade deprimida, embrutecida e desmiolada. É a “sociedade do cansaço”.

A obsessão com o compartilhamento de informações e dados (sobretudo privados) nos converte em “infômanos” submersos num turbilhão de estímulos que corroem nossa estabilidade e tranquilidade, eliminando os pequenos rituais cotidianos, a pausa necessária à reflexão, a contemplação, o convívio.

“No começo da digitalização, se sonhava que ela substituiria o trabalho pelo jogo. Na verdade, ela explora impiedosamente a pulsão humana pelo jogo”, diz Byung-Chul Han. E o maior dispositivo de subjugação, vigilância e controle sub-reptício é o smartphone/celular, ao mesmo tempo uma prisão e um confessionário digital. O celular na mão é o rosário contemporâneo. E os likes são o amém digital.

No romance de Aldous Huxley Admirável mundo novo, o totalitarismo não operava pela violência explícita, mas pela administração de uma droga do prazer, o “soma”, que fazia de todos uns cordeirinhos satisfeitos. Assim é o universo digital, um anestésico potente. Isso no médio prazo. A curto prazo, a rede digital tem se mostrado uma poderosa ferramenta para fraudes, golpes, falcatruas, crimes financeiros e até armadilha para assassinatos.

2.

Notem o caso Elon Musk versus ministro Alexandre de Moraes, como ficou conhecido, mas que poderia ser definido concisamente como a luta agônica entre o vale tudo (salve-se quem puder) do poder cyber econômico versus as blindagens legais e legítimas para a proteção do cidadão-internauta.

Invocar a liberdade de expressão, o atual mantra da extrema direita, é para lá de ridículo. É estrambótico, estapafúrdio. Costumava ser o clamor típico (de serena pronúncia e empolada elocução) da “direita caviar”, aquela que ciosamente empunha tecnicalidades jurídicas quando se trata de salvar a pele de “moças ilibadas” ou apaniguados – nada diferente, passados quase 50 anos, da tese da “legítima defesa da honra” que absolveu Doca Street, assassino confesso de Ângela Diniz.

Doca Street apenas havia exprimido um descontrole compreensível, “sob forte emoção” diante de uma femme fatale provocadora –matou “por amor”. Não havia X, tik, insta e congêneres. Se houvesse, a decisão seria aplaudida por milhões de seguidores.

A extrema direita motociata aprendeu direitinho com a caviar, exceto gramática e sintaxe (haja vista o “conge” e o massacre do verbo haver), mas quem liga para a língua portuguesa, pois nem mesmo conteúdo importa, se não for bilioso? Ela macaqueia as mesmas proteicas tecnicalidades para fazer das suas, como liberar sem tornozeleira criminosos graúdos, desde que endinheirados.

É tudo lhano (ops, palavra “caviar”), íntegro, ilibado, perfeitamente compulsável nos parágrafos, alíneas e entrelinhas da lei. Pois a lei é para todos, não? Enquanto isso, as redes associais de direita ganham músculos e exultam!

Já passou da hora de combater essa predatória “infomania” (deglutir sem digerir) com a única arma que temos: não dar cadeira para flechadas digitais escandalosas e injuriosas, aquelas que mais viralizam. É bloquear e evitar o contágio. Mesmo quando a boa intenção é debochar dos absurdos, o efeito bumerangue acaba sendo multiplicá-los. Sim, o sensacionalismo é tentador e atraente, suculento e quase irresistível, pisca de graça para nós… e justamente por isso alicia e adoece tão rápido quanto o crack.

Vamos jogar no lixo o que não provém de fontes com credibilidade, e as fofocas de famosidades (antigamente eram celebridades, pois tinham algum talento além de se intitular influencers).

Estamos cansados de saber os efeitos devastadores desta mídia associal: a quantidade de suicídios juvenis que ela provoca, as toneladas de ódio que ela instiga, as megatoneladas de mentiras e calúnias. Sem falar dos abusos sexuais, redes de pedofilia, negócios criminosos, assassinato de reputações ou compras instantâneas de drogas, notadamente os tais opioides que geram lucros astronômicos para a indústria farmacêutica.

3.

Mas nem tudo no universo digital é o culto à estupidez.

Em um artigo publicado no jornal Washington Post em 8 de fevereiro deste ano, um grupo de economistas das universidades de Chicago, Berkeley e Colonia (Köln/Alemanha) mediu o quanto as pessoas pagariam para que estas plataformas sumissem do mapa. Resultado: a maioria pagaria bem, pois achava que não perderia nada se ficasse sem elas. Elementar: somos bombardeados com tal volume e velocidade de informações falsas, estúpidas e inúteis (embora não inócuas) que a atual infomania galopante (acumular, acumular, acumular obsessivamente o que cai na rede) não nos deixa tempo para selecionar, ignorar e, principalmente, pensar.

Isso quanto a informações. Já quando se trata de consumismo, a posição se inverte. Os novos endinheirados penhorariam a alma para adquirir um Rolex e não se sentir um perdedor diante do vizinho, primo ou amigo que ostenta esta ou outras grifes. Não é exatamente que queiram. É que ‘não possuir’ os transformaria em párias no seu círculo social. Que pacto fáustico mequetrefe, mixuruca, brega e perverso. Isso se chamava cobiça (desejar só por impulso de imitação). E, pior, o Rolex do vizinho provavelmente é falso.

Menos é mais. Mais confiável, seguro e proveitoso. E mais chique, até.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).


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