Por JOÃO LANARI BO*
Comentário sobre o filme de Agnieszka Holland, em exibição nos cinemas
O que diria Immanuel Kant, famoso pela regularidade de seus passeios na amena Königsberg no mar Báltico – berço da cultura alemã durante séculos, bombardeada pelos Aliados e pelo Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial – diante do amontoado de tensão e violência retratado no pungente Zona de exclusão, longa que a polonesa Agnieszka Holland realizou em 2023?
Batizada de Kaliningrado após a ocupação soviética, em homenagem a Mikhail Kalinin, presidente do Soviete Supremo e herói da revolução, o enclave onde residia o filósofo fica a um passo da fronteira entre a Polônia e a Belarus – cenário de idas e vindas dramáticas dos migrantes que por ali transitam, que o filme descreve sem meias-imagens.
Sobra pouco espaço para o idealismo kantiano – praticamente ninguém age “conforme princípios dos quais considera que seriam benéficos caso fossem seguidos por todos os seres humanos”: desumanização é a palavra de ordem, alimentada por bielorrussos e poloneses que miram no crossfire uma variedade de nacionalidades, sírios, marroquinos, afegãos, África subsaariana, todos refugiados de instabilidades e conflitos. A ansiedade monta: guardas fronteiriços de ambos os lados humilham e expelem os transeuntes, numa espiral sem fim.
São inúmeras histórias que Zona de exclusão interliga, dentro e ao redor da região fronteiriça entre os dois países. A família síria fugindo de Assad e do ISIS, a mulher afegã dos Talibãs, africanos em busca de trabalho na opulenta União Europeia: do lado polonês, o guarda polaco que luta contra sua consciência, voluntários idealistas preocupados em aliviar dores e frustações dos viajantes, e a psicóloga que vive perto da zona de exclusão e se choca com o que vê – ela é a representante per se do imperativo categórico kantiano. As línguas faladas nessa Babel moderna se sobrepõem à medida que os vários personagens se juntam.
Tudo começou quando, em 2021, Aleksandr Lukashenko, o líder ditatorial da Bielorrússia, radicalizou: “ofereceu” passagem segura através da Belarus para migrantes desejosos de aportar no “paraíso” europeu, cruzando a área florestal conhecida como “Fronteira Verde” e chegando na Polônia. Imediatamente organizou-se um fluxo de intermediários dos mais díspares calibres, corruptos ou não, que passaram a explorar essa população desesperada. Faltou combinar, é claro, com o vizinho, àquela altura ainda governado pelo PiS (Partido da Lei e da Justiça) – de direita-raiz e, portanto, hostil até a medula em relação a estrangeiros de passagem. “Isto é uma guerra híbrida, eles são balas humanas de Putin e Lukashenko”, esclarece o comandante da guarda polonesa, falando para a tropa: “não quero cadáveres, se virem um, desapareçam com ele”.
Filmado em preto-e-branco, Zona de exclusão percorre matas densas, caminhões apinhados de perplexos, arames farpados, pântanos mortais – e oscila sequências de aflição com (falsas) calmarias. Bashir e sua família, fugitivos da Harasta (perto de Damasco), acreditaram numa fácil travessia para a Suécia: euforicamente entram na Polônia, Europa enfim, e logo são reenviados de onde vieram.
Acabam encurralados na “zona de exclusão” instituída pelo governo polonês, onde regras e direitos, em princípio, não se aplicam – inclusive para os ativistas, que podem ser presos simplesmente por viajarem dentro da área. Se alguém se ferir, as ambulâncias devem ser acompanhadas por guardas, que acompanharão os feridos de volta à Belarus após a recuperação.
Cinematograficamente, Polônia e Belarus conformam o plano e o contraplano da opressão. Lançado no ambiente político altamente polarizado polonês, às vésperas de eleições – que terminaram por alijar o PiS do poder – Zona de exclusão despertou óbvias e fortes reações. O então Ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, foi o mais vocal dentre os altos oficiais que se manifestaram: “No Terceiro Reich, os alemães produziram filmes de propaganda mostrando os poloneses como bandidos e assassinos. Hoje eles têm Agnieszka Holland para isso” – baseando-se não no filme, que admitiu não ter visto, mas em entrevistas da realizadora. Foi obrigado a recuar da comparação por decisão judicial. A entidade dos guardas de fronteira foi categórica: “um filme escandaloso e antipolonês … que glorifica o fenômeno patológico da imigração ilegal”.
Se a via bielorrussa funcionou como chamariz para os atônitos migrantes, o que veio a seguir extrapolou: no primeiro mês da invasão russa na Ucrânia, mais de dois milhões de ucranianos entraram na Polônia. Cerca de 9,5 milhões chegaram ao longo daquele ano, 2022: a maioria retornou ao país-natal, outros emigraram para terceiros países. O corredor aberto por Lukashenko caiu em desuso.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]
Referência
Zona de exclusão (Zelena granica)
Polônia/EUA/ França/República Tcheca/Bélgica/Alemanha/Turquia, 2023, 147 minutos.
Direção: Agnieszka Holland.
Roteiro: Agnieszka Holland, Maciej Pisuk.
Elenco: Jalal Altawil, Maja Ostaszewska, Behi Djanati Ataï.
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