Por RICARDO PAGLIUSO REGATIERI & LUCAS AMARAL DE OLIVEIRA*
Introdução dos organizadores ao livro recém-publicado
1.
Teoria social e desafios pós-coloniais é um projeto que nasceu ao mesmo tempo em que os trabalhos do PERIFÉRICAS – Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades e Colonialidades, que criamos em 2019 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), tiveram que ser readequados em decorrência da pandemia de coronavírus.
No segundo semestre letivo de 2020, propusemos um curso com o mesmo título do livro recém-publicado, reunindo colegas do Brasil e do exterior. O curso teve como objetivo problematizar as ciências sociais, a teoria social e as discussões que envolvem a ideia de “modernidade”, buscando ir além de enfoques eurocêntricos que limitam tanto geopolítica quanto intelectualmente o mundo ao Norte Global.
Criando tensionamentos entre enfoques eurocêntricos e abordagens que colocam em jogo visões mais alargadas da modernidade, procuramos questionar tendências universalistas que, em realidade, refletem não mais do que a perspectiva (provinciana) do espaço norte-atlântico. Como exposto na ementa do curso aberto, o objetivo foi apresentar enfoques a um só tempo, panorâmicos, interdisciplinares, críticos e descentrados de novos paradigmas epistemológicos das ciências sociais contemporâneas, com ênfase nas interlocuções entre teoria social e aportes pós-coloniais.
Paralelamente, as sessões do curso se mostraram um espaço privilegiado para refletir sobre os limites e os desafios dos movimentos de descolonização do conhecimento em sua dimensão empírica e epistêmica, diante das mudanças provocadas por uma década de ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras.
Oferecido como parte integrante do curso de Ciências Sociais – ofertado pelo Departamento de Sociologia – e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, desde o início de sua concepção, procuramos garantir que as sessões fossem acessíveis a todos/as os/as demais interessados/as que não fizessem parte da comunidade acadêmica de nossa universidade. Assim, em uma iniciativa que, naquele momento, desafiou nossos conhecimentos sobre plataformas de transmissão, e que envolveu a cada encontro uma equipe de professores/as e alunos/as, decidimos transmitir o curso pelo canal do PERIFÉRICAS no YouTube.
Esse espírito de abertura do conhecimento para além dos limites de nossa universidade espelhou a intenção que impulsionou o projeto: abrir e enriquecer a teoria social a partir de novos descentramentos. Ficamos muito felizes, e efetivamente surpresos, com a ampla e positiva repercussão alcançada pelo curso, o que foi decisivo para nos motivar a convidar os/as participantes a transformarem suas aulas em capítulos para um livro. Este livro representa o registro escrito de nossa experiência coletiva num momento tão desafiador no Brasil e no mundo.
2.
Teoria social e desafios pós-coloniais está dividido em três seções: “Sul Global e Novos Desenhos Epistemológicos”, “Crítica e Releitura das Tradições” e “Enfrentando Feridas Coloniais”.
No primeiro capítulo, “Sul pelo Sul: saberes que desafiam as fraturas abissais do nosso mundo”, Maria Paula Meneses, da Universidade de Coimbra, enquadra o Sul Global não só como espaço-tempo decisivo para o presente, mas também como fonte de teorização sobre a contemporaneidade. Articulando tradições multissituadas que delimitam diferentes processos político-culturais e demandas por justiça, a antropóloga moçambicana dilata a compreensão das ciências sociais a respeito do Sul Global, relacionando ecologia de saberes e experiência, conhecimento científico e realidade, produção intelectual e instituições. Esses eixos são atravessados por um repertório analítico estabelecido pelas Epistemologias do Sul, a partir das quais Meneses pensa formas de enfrentamento à globalização neoliberal.
Ao valorizar e amplificar saberes que resistem à ingerência capitalista-colonial-patriarcal, Maria Paula Meneses explicita as potencialidades de diferentes paradigmas de descolonização ontológica, epistêmica e política – como o (pan)africano, o latino-americano e caribenho, o sul-asiático e o de matriz islâmica, bem como a filosofia indígena e o pensamento feminista do Sul Global –, que colocam novos desafios ao programa das Epistemologias do Sul. As ecologias de saberes forjadas nas periféricas globais têm firmado condições para diálogos mais simétricos, tendo como centralidade as lutas por sociedades mais justas e uma produção de conhecimento que não se limite ao campo acadêmico.
O argumento é que, para entender a diversidade epistêmica do mundo, é imprescindível construir uma “teoria alternativa de alternativas” que contemple a heterogeneidade das demandas dos subalternizados em prol de um “mundo pós-abissal”.
No segundo capítulo, “Crítica da Crítica Pós-Colonial”, Paulo Henrique Martins, da Universidade Federal de Pernambuco, propõe que a teoria crítica não deve ser entendida como fenômeno intelectual geopoliticamente localizado na Europa ou, então, limitado ao desenvolvimento das ciências sociais no Norte Global, mas sim como programa de reflexão sistêmica, aberto, pluriversal. Enfrentando temas importantes da teoria social – como modernidade, desenvolvimento, imperialismo, injustiça social –, o sociólogo propõe uma “teoria crítica da colonialidade”, que se expressa globalmente em uma variedade de narrativas intelectuais de anseios libertários que vêm intercambiando informações de maneira horizontal, de modo a contribuir para uma crítica ampliada da realidade do capitalismo colonial.
Por teoria crítica da colonialidade, Paulo Henrique Martins entende um conjunto de aportes que buscam superar os universalismos ocidentais em direção a compreensões mais pluriversais, nas quais caibam outras perspectivas analíticas e formas culturais na organização das modernidades.
A teoria crítica da colonialidade sintetizaria, segundo o autor, uma “crítica da crítica”, na medida em que atualiza seus repertórios com contribuições pós e decoloniais, bem como com as demais revisões epistemológicas e metodológicas em curso nas ciências sociais e humanas, mantendo sempre o compromisso de superação da divisão do trabalho intelectual na contemporaneidade. Por um lado, Paulo Henrique Martins não ignora que tem havido um esmorecimento da aura otimista que rondou a ideia de modernidade, pois o futuro deixou de se abrir como espaço de possibilidades e expectativas, fechando-se como horizonte distópico.
Contudo, por outro, percebe que esse contexto tem servido para a articulação de redes transnacionais de intelectuais, ativistas, instituições e movimentos decisivos para reorganizar resistências democráticas à nova colonialidade global, atuando nas “brechas” do sistema no sentido de desmitificar discursos, imagens e práticas da colonialidade e vislumbrar alternativas para o amanhã.
No terceiro capítulo, “Descolonização Democrática e Política da Vitalidade: o Sul Global no adiamento do fim do mundo”, Luciana Ballestrin, da Universidade Federal de Pelotas, tensiona a ideia de Sul Global a partir de uma perspectiva descentrada. O objetivo é averiguar a relevância e atualidade da categoria, de modo a analisar em que medida ela tem sido eficaz para projetar alternativas contemporâneas à globalização neoliberal, considerando a revitalização de lutas por descolonização em diferentes contextos.
Para tanto, a cientista política estabelece um tripé analítico: parte de um resgate histórico da ideia e de seu desdobramento conceitual em diferentes latitudes, observando seus usos e apropriações; destaca os limites e as potencialidades do Sul Global como uma “força contra-hegemônica sistêmica”; e analisa os principais desafios contemporâneos do Sul Global postos pela confluência de múltiplas crises.
Herdeiro da imagem de “Terceiro Mundo”, o Sul Global carrega um potencial político que está, atualmente, em permanente disputa por forças progressistas e regressivas da ordem internacional – pós-colonial, neoliberal e multipolar. Contudo, ao mesmo tempo, Luciana Ballestrin percebe que o Sul Global vem figurando um espaço para a movimentação de projetos de representação e articulação de “identidades (geo)geopolíticas subalternas”. Com inspiração no intelectual, ambientalista e líder indígena Ailton Krenak, o argumento da autora é que a reconstrução crítica e a renovação estratégica da categoria devem estar moduladas em torno do princípio da descolonização democrática para o “adiamento do fim do mundo”.
Para tanto, é necessário que se afirme seu compromisso com as formas de vida humana, não humana e ambiental através de uma “política da vitalidade”, entendida como uma insubmissão ostensiva à violência, à necropolítica e à morte, politizando o direito à vida em uma perspectiva não liberal.
O quarto capítulo é de autoria de Muryatan Santana Barbosa, da Universidade Federal do ABC. O ensaio “Economia Política Africana: do desenvolvimento ao autodesenvolvimento” trata da história intelectual africana, mais designadamente do debate sobre desenvolvimento da segunda metade do século XX, passando pelas contribuições da economia política dos anos 1960 -1970 até as intervenções das ciências sociais a partir dos 1980.
O sociólogo e historiador parte da hipótese de que esse debate continental acarretou uma expansão teórico-metodológica que possibilitou tensionamentos da ideia de desenvolvimento, que pouco a pouco passou a ser compreendido como autodesenvolvimento (ou “desenvolvimento endógeno”), ou seja, um processo dialético de superação-conservação do “velho” para o surgimento do “novo”.
Nesse processo, o desenvolvimento passa a ser visto como algo endógeno, menos eurocentrado e, com efeito, mais relacionado não somente a fatores econômicos, mas também identitários, educacionais, culturais, filosóficos, científicos, tecnológicos, religiosos e políticos. Por essa razão, uma alternativa de desenvolvimento para o continente africano, no sentido de superação da ordem neoliberal, implica participação popular, parcerias transnacionais, acordos diplomáticos, democratização social real e diretrizes do Estado, ou seja, uma construção coletiva que envolva as nações e respeite a heterogeneidade do continente.
Para Muryatan Santana Barbosa, o campo acadêmico tem oferecido subsídios importantes para a concretização desse caminho, a partir de diferentes tradições intelectuais. Contudo, é importante que não se antagonizem essas tradições, a partir de geopolíticas limitadoras, mas que se busque complementariedades para a garantia das soberanias e a melhoria da qualidade de vida, sobretudo de grupos fragilizados.
O quinto capítulo abre a segunda seção da coletânea, “Crítica e Releitura das Tradições”. O ensaio intitulado “A Crítica Pós-Colonial de Fanon, Said e Mudimbe: ontologias outras para um ‘humanismo radical’”, de Adelia Miglievich-Ribeiro, da Universidade Federal do Espírito Santo, revisita a crítica pós-colonial a partir de um projeto de “subversão do humanismo”, que abra espaço para vozes subalternas e movimentos insurgentes que “rasuram” as narrativas hegemônicas e suas manobras coloniais. Esse exercício é feito a partir de uma interlocução cruzada com três representantes de diferentes tradições intelectuais do Sul Global: Frantz Fanon, Edward Said e Yves-Valentin Mudimbe.
Para Adelia Miglievich-Ribeiro, os três teóricos podem oferecer à teoria social contemporânea subsídios importantes para pensar saídas anticoloniais para o mundo e, por isso, devem ser tratados não apenas como precursores do pós-colonialismo, mas sobretudo como “humanistas críticos”, cujos aportes influem determinantemente no campo acadêmico, nos movimentos sociais e nas diretrizes políticas de diferentes contextos geopolíticos. A socióloga oferece, assim, uma releitura crítica da contribuição desses teóricos: o martinicano Fanon, por exemplo, é lido a partir de sua práxis revolucionária no Norte da África; Said, devido à sua atuação na arena pública de debates, em especial sobre a causa palestina; o congolês Mudimbe, em razão da forma como operou uma revisão radical do pensamento africano colonial.
O sexto capítulo é de autoria de Ricardo Pagliuso Regatieri, da Universidade Federal da Bahia. “Violência, Risco e Exceção na Periferia Global” empreende uma releitura das contribuições de três importantes tradições intelectuais: a primeira geração da teoria crítica da Escola de Frankfurt, o pensamento decolonial latino-americano e a crítica pós-colonial de autores oriundos da África e da Ásia.
A partir de um diálogo com Walter Benjamin e o teórico camaronês Achille Mbembe, Regatieri atualiza a reflexão sobre formas de exceção, violência e risco, no sentido de pensar colônias e ex-colônias do capitalismo contemporâneo. Esse diálogo é atravessado por uma análise do caráter intrínseca e incontornavelmente destrutivo do capitalismo contemporâneo, que impõe uma situação permanente de dependência – que Aníbal Quijano chamou de colonialidade do poder, entendido como padrões inscritos na cultura e na sociedade pós-coloniais que “sobreviveram” ao fim do domínio colonial.
Para Ricardo Pagliuso Regatieri, essa situação perpetua hierarquias, desigualdades e violências, mantendo as sociedades da periferia global em uma subordinação contínua em relação a países centrais, como grandes reservas de recursos naturais ou e força de trabalho. Um dos argumentos do autor é que as sociedades pós-coloniais foram e continuam sendo sociedades de risco, onde a exceção vale como regra, na medida em que indivíduos e grupos periféricos têm suas existências constantemente ameaçadas, sua reivindicação por condições dignas de vida negada e seus projetos políticos bloqueados.
No sétimo capítulo, “Marxismo e Pós-Colonialismo”, Pedro dos Santos de Borba, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Guilherme Figueredo Benzaquen, da Universidade Federal de Pernambuco, revisitam o debate entre marxismo e pós-colonialismo. De um lado, os autores tensionam as diferenças e proximidades entre as tradições, mostrando como a releitura desse encontro deve estar ancorado nas lutas contra o capitalismo colonial. De outro, explicitam que um terreno epistemológico e político cheio de potencialidades pode surgir da reconstituição analítica de linhagens comuns e problemas compartilhados. Pedro dos Santos de Borba e Guilherme Figueredo Benzaquen acreditam que o simplismo das análises que tendem ora a antagonizar um e outro, ora a colocá-los como complementos redutíveis um do outro, enfraquece a teoria crítica, decolonial e antieurocêntrica.
Por isso, os autores defendem que esses encontros devem ser explorados a partir de uma perspectiva descentrada do capitalismo colonial, que ao mesmo tempo fortaleça a crítica ao colonialismo a partir de uma mirada dialética. Os pesquisadores percorrem três caminhos na construção do argumento. Primeiro, enfrentam tensões no próprio pensamento de Marx. Em seguida, perfazem uma reanálise do pensamento pós-colonial, enquadrado como conjunto de aportes críticos oriundos da periferia do capitalismo global que têm suas raízes nas lutas de libertação nacional, mas que se diversificar em contraponto ao universalismo eurocêntrico.
Por fim, defendem uma articulação entre marxismo e pós-colonialismo que não blinde nenhum dos lados, tampouco acoberte limitações, apontando que esse encontro pode avançar cada vez mais se atravessado pelos tensionamentos na teoria crítica contemporânea. O sucesso do diálogo depende menos da predefinição dos campos e mais da identificação de conexões pertinentes.
Fechando a seção, no oitavo capítulo, “Releituras da Teoria Sociológica Brasileira”, Ana Rodrigues Cavalcanti Alves e Lucas Amaral de Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, discutem em que medida teorias sociológicas produzidas no campo acadêmico brasileiro dialogam com um movimento global de crítica à colonialidade e aos fundamentos eurocêntricos das ciências sociais. Para tanto, enfrentam alguns dos principais desafios subjacentes às tentativas de definição dessas duas abordagens teóricas, a sociologia brasileira e o pensamento pós-colonial, sem ignorar suas heterogeneidades internas.
Em seguida, analisam as tensões entre os campos intelectuais como condições de possibilidade para agendas de pesquisa que aproximem os dois aportes. Na parte final do texto, exploram o potencial epistemológico de uma dessas agendas, que corresponde a uma “releitura” da tradição sociológica brasileira à luz da crítica pós-colonial.
Esse exercício de releitura é feito a partir do projeto da “redução sociológica”, do sociólogo baiano Guerreiro Ramos, que indica uma via de mão dupla de interlocução entre sociologia brasileira e pensamento pós-colonial: um olhar descentrado sobre nossa tradição sociológica, mas que revela contribuições dessa tradição para o futuro das epistemologias pós-coloniais. Se os enfoques pós-coloniais já estabeleceram questões incontornáveis ao campo sociológico brasileiro, Ana Rodrigues Cavalcanti Alves e Lucas Amaral de Oliveira defendem que este último também pode contribuir para o avanço e o aprofundamento desse movimento crítico.
A última seção desta obra, “Enfrentando Feridas Coloniais”, se inicia com o nono capítulo, um desafiador ensaio de Alexandro Silva de Jesus, da Universidade Federal de Pernambuco. “Notas Sobre a Atualidade da Ferida Colonial” reconstrói as premissas sobre as quais se assentou o mau encontro colonial, entendido como relação assimétrica entre diferentes perspectivas éticas, políticas, ontológicas e civilizacionais, que produziu uma primeira “divisão do sensível” (a assimetria radical entre pessoas), uma comunicação distorcida e manipulada pelos colonizadores em relação à alteridade.
Para Alexandro Silva de Jesus, ainda não nos emancipamos dessa assimetria primordial, que se verteu em ferida, cuja permanência opera como lógica estruturante da nossa contemporaneidade. Recusando qualquer tipo de saída fácil sobre a possibilidade de inclusão política – pois a própria racialidade e o pacto narcísico da branquitude excluem grupos e impedem que a política ocorra –, o pesquisador recorre a algumas imagens conceituais para tensionar a atualidade e a extensão dessa ferida, mostrando que a persistência da ferida mantém o sujeito colonizado como “ex-propriado” e em uma dívida colonial eterna.
Os efeitos do mau encontro e a persistência da ferida não foram dissolvidos após a ficção jurídica encetada pelos processos formais de descolonização. Por isso, Jesus propõe que essa descolonização precária – a ideia-imagem de “des/colonial”, com o “s” barrado, inspirado no sujeito lacaniano, traduz sua condição inconclusa – não chegou a seu termo, sendo essa incompletude sua razão de ser. Em seguida, demarca aspectos dessa ferida com o pensamento e o arquivo ocidental, argumentando, de um lado, que o dispositivo da racialidade é traço de dissensão no interior da comunidade política moderna, mas, por outro, que o ser-negro constitui a condição de possibilidade do emergir da política enquanto institucionalização dos sem-parte. Não se trata se o ser-negro pode ou não falar enquanto sujeito rasurado, mas, sim, se o ser-branco poderá ou não calar a sua voz ensurdecedora que sustenta o monólogo histórico.
O décimo capítulo, “Documentos de Cultura e Barbárie: imaginário e colonialidade”, é de Patrícia da Silva Santos, da Universidade Federal do Pará, que propõe uma discussão sobre as possibilidades de interpretar documentos de cultura a partir de suas conexões com a violência colonial. Para a socióloga, os bens culturais modernos costumam ser contemplados como universais, na medida em que emergem como que purificados da dimensão política e bárbara do colonialismo e do imperialismo. No entanto, muitos deles preservam em sua origem, forma e transmissão elementos de colonialidade – portanto, não podem ser totalmente desembaraçados da destruição de modos de vida, da classificação racial e da imposição violenta da racionalidade ocidental moderna.
Tomando como referenciais autores como Edward Said, Mary Louise Pratt e Walter Benjamin, Patrícia da Silva Santos reflete o quanto a acumulação originária do imaginário cultural moderno está impregnada de colonialidade, mostrando que os documentos de cultura são “testemunhas sutis” das relações de poder, violência, silenciamento cultural e imposições de modos de vida e representação que tiveram lugar no colonialismo. Para tanto, a socióloga toma como base empírica documentos, relatos e imagens legados por viajantes do século XIX, a partir dos quais estabelece nexos inexoráveis entre cultura e barbárie em documentos culturais derivados do mau encontro colonial.
“Ensaio Sobre Desenvolvimento, Questão Colonial e Bem Viver”, de Felipe Vargas, da Universidade Federal da Bahia, é o décimo primeiro capítulo deste livro. Enfrentando o tema do desenvolvimento, mas em articulação com a colonialidade e o bem viver na América Latina e no Caribe, o sociólogo percorre três caminhos. Primeiro, estabelece uma aproximação teórico-conceitual entre críticas ao desenvolvimento e à questão colonial no continente. Em seguida, analisa alguns projetos de desenvolvimento, como os megaempreendimentos de matriz energética que assolam o Sul Global desde as décadas de 1970 e 1980, como atualização da lógica colonial.
Contudo, sua atenção recai sobre as vozes contra-hegemônicas que enunciam uma diferença em relação a essa lógica: o bem viver enquanto uma alternativa ao desenvolvimento. Por fim, traz essa discussão para dentro da atividade acadêmica, através de uma política do cuidado e da reeducação dos sentidos para enfrentar o arquivo aberto da questão colonial conjuntamente, no sentido de produzir “conhecimento misturado” a experiências outras. Como argumenta Felipe Vargas, submeter o saber acadêmico ao teste do Bem Viver, enquanto uma experiência outra do desenvolvimento, não é romantizar a alteridade ou tornar-se outro ontologicamente, mas ser afetado pelo cuidado em um presente que assola, em tempos e modos diferentes e assimétricos, todas e todos.
O penúltimo capítulo, “Enfrentando a colonialidade do poder: essencialismo, multiculturalismo e tolerância na construção da representação política”, de autoria de Maria Victória Espiñeira González e Danilo Uzêda Cruz, da Universidade Federal da Bahia, trata de um dos maiores dilemas dos debates pós e decoloniais: quais os limites da representação e da legitimidade da voz subalterna no enfrentamento da colonialidade do poder? Maria Victória Espiñeira González e Danilo Uzêda Cruz retomam algumas categorias importantes do debate político contemporâneo, como essencialismo, multiculturalismo, identidade, tolerância e construção da representação política, para analisar em que medida esses elementos são ainda válidos e como se articulam de forma a evidenciar as contradições no interior do modelo liberal que impedem a emancipação política dos subalternos.
De um lado, essa retomada é feita a partir de um exercício de revisão teórica radical dessas categorias, em que ambiguidades externas e limitações internas são enfrentadas. De outro, os/as autores/as reavaliam essas categorias a partir de dados levantados em dois estudos sobre políticas públicas – Nuetros Ninõs, no Uruguai, e Fome Zero, no Brasil.
Ainda que a intenção e os resultados dessas políticas tenham tido por objetivo “dar voz” aos/às subalternos/as, particularmente àqueles/as mais excluídos/as, marginalizados/as e, portanto, silenciados/as, elas acabaram por reforçar os sistemas de colonialidade. Por isso, os/as autores/as argumentam que pensar uma sociedade global mais justa mediante a ampliação da voz ativa do/a subalterno/a é partir de um outro arranjo institucional, de políticas redistributivas de “afirmação das diferenças”, que enxerguem o plural e escutem o diverso, reconhecendo e aceitando as demandas e as particularidades de grupos historicamente vulnerabilizados.
Por fim, o último capítulo, “Modernidade eurocêntrica idealizada na perspectiva da crítica pós-colonial”, de Clovis Roberto Zimmermann, da Universidade Federal da Bahia, problematiza as bases ideológicas do termo “modernidade”, tomando como base a forma como a ideia foi mimetizada pelo pensamento social latino-americano. Para o sociólogo, a modernidade foi arquitetada como imagem invertida do Norte Global, implicando uma relação espacial e temporal com as perspectivas coloniais de evolução e progresso. Devido a essa compreensão generalizada e virtual de uma modernidade eurocêntrica no continente, costuma-se considerar que a própria ideia de moderno figure como condição exterior e extemporânea – ou, se dentro da América Latina, quase sempre como uma condição futura, como projeto político que habita os discursos do poder, mas que permanece inalcançável em termos pragmáticos.
Em virtude disso, descreve-se a América Latina como uma promessa de futuro, relegando seu passado aos indultos do esquecimento e seu presente ao incessante fracasso social, econômico, político, ambiental. Assim, o autor associa a crítica pós-colonial à modernidade às contribuições alternativas que vêm despontando no debate latino-americano, sugerindo a utilização de alguns “tipos ideais de modernidade” para pensar o continente, transgredindo ideias eurocêntricas de singularidade e uniformização: modernidade produtivista, modernidade híbrida e modernidade não produtivista (baseada no Bem Viver).
*Ricardo Pagliuso Regatieri é professor de sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de Capitalismo sem peias: A crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento (Humanitas).
*Lucas Amaral de Oliveira é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Autor de Experiências estéticas em movimento: a produção literária nas periferias paulistanas (Ape’Ku).
Referência
Ricardo Pagliuso Regatieri & Lucas Amaral de Oliveira (orgs.). Teoria social e desafios pós-coloniais. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2024. [https://amzn.to/3QtaSXh]
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